Por Daniel Caribé

Há uma expressão anglófona bastante comum, cuja tradução para o português brasileiro ficaria mais ou menos assim: “o que é meu é seu” (what’s mine is yours), e que teria um equivalente, por exemplo, no mi casa, su casa dos hispanohablantes. Tais expressões passam a ideia de compartilhamento, de comunhão, e não seria difícil encontrar algo equivalente em cada um dos idiomas possíveis. Os lusófonos poderiam facilmente entender a tradução de ambas as expressões, a inglesa e a espanhola, ao pé da letra, porque afinal é isso que fazemos todos os dias, como o fazem praticamente todos os demais espalhados pelo mundo.

O livro de Tom Slee, aqui brevemente comentado, tem por título original What’s Yours Is Mine: Against The Sharing Economy [O que é seu é meu: contra a Economia do Compartilhamento], corrompendo a expressão da língua inglesa, tentando desde o início mostrar a inversão de valores praticada pela nova forma de acumulação capitalista. Por aqui, entretanto, ganhou um novo título: Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (Editora Elefante, 2017). É bem provável que o novo título atraia mais leitores, porém reduziu drasticamente o escopo do livro, mesmo tendo evidenciado a precarização do trabalho ausente no título original.

É verdade que, entre as muitas plataformas em uso, poucas estão em ampla atividade no Brasil, sendo o Uber uma das exceções. Devido ao modo agressivo e rápido pelo qual a empresa chegou ao país, se tornou o exemplo mais emblemático desta nova economia, cujo nome sequer é consensual. O autor chama de Economia do Compartilhamento (sharing economy) sabendo que há uma contradição no termo. Mas há também quem chame de Economia dos Bicos (gig economy), Economia da Viração, Consumo Colaborativo, entre outros, e na verdade cada termo destaca um dos aspectos desta nova configuração da exploração do trabalho e da apropriação das cidades. O autor, que está em outro contexto, é anglo-canadense, decidiu por adotar pragmaticamente o termo mais em voga, sabendo que dentro em breve poderá ser substituído por um conceito mais preciso.

Ora, não é difícil imaginar o aspecto generalista do compartilhamento enquanto prática social, mesmo que sejamos bombardeados com a ideia de que estamos em constante estado de competição, indiferença e imersos em nossas próprias individualidades. Por exemplo, no ambiente mais feroz no qual nos encontramos em nosso cotidiano, o famigerado trânsito, para cada motorista que nos fecha, centenas de outros nos dão passagem. E que para cada assalto nos ônibus, antes uma quantidade incontável de gentilezas nos são oferecidas por estranhos. Sem essas gentilezas seria impossível viver nas cidades, aliás, elas mesmas obras de um trabalho coletivo e expressão de bem comum compartilhado. Entretanto, mais do que gentilezas, oferecemos nossas competências, equipamentos, apoio, tempo e até dinheiro pelo simples motivo de não podermos existir se não for em coletividade. O compartilhamento prescinde de trocas monetárias e, mesmo se for caracterizado enquanto uma economia, ela se dá sob fundamentos diferentes da exploração.

Na verdade, se dava… Pois o compartilhamento é a última fronteira da expansão capitalista. É assim que a carona dada ao colega de trabalho pode agora virar uns trocados a mais, também o quarto dos filhos que já não moram mais em casa, e a ajuda que cotidianamente é oferecia gratuitamente à vizinha idosa. Mas, ok, talvez não haja mal nisso em tempos de aperto. E, graças aos novos retornos financeiros, muitos podem manter o apartamento e pagar as despesas médicas, exatamente da forma prometida pelos manifestos das plataformas da Economia do Compartilhamento. É esse discurso que transforma os negócios operacionalizados por estas plataformas em seres encantados, de difícil crítica e, claro, regulação.

As empresas da Economia do Compartilhamento, segundo Tom Slee, se autodefinem como “movimento social” sem deixarem de também se reconhecer enquanto um “novo tipo de negócio”. Seriam portanto uma síntese, superando a contradição existente entre lados até então opostos. Quase todas sediadas no Vale do Silício (EUA), a conhecida meca das novas tecnologias e povoada por startups, as empresas gestoras destas plataformas conseguem fazer fortunas utilizando de todo o jargão ativista e prometendo realizar os sonhos comunitários das novas gerações. Cada palavra de ordem se transforma em negócio o mais rápido possível, porque para cada demanda deve existir uma oferta ao invés de um direito. É claro que isso tem muito a dizer sobre os novos movimentos contraculturais e sociais, principalmente os ecológicos, vítimas mais dóceis da Economia do Compartilhamento. Mas foquemos no livro…

Então Tom Slee confessa os seus motivos:

Meu impulso central para escrever este livro foi uma sentimento de traição: o que havia começado como um apelo à comunidade, às conexões interpessoais, à sustentabilidade e ao compartilhamento, tornou-se o playground de bilionários, de Wall Street e de capitalistas de risco, que cada vez mais expandem seus valores de livre mercado sobre nossas vidas. A promessa de um caminho humano para o mundo corporativo é, ao contrário do que possa parecer, uma forma mais agressiva de capitalismo, com desregulação, novas formas de consumismo e uma nova onda de trabalho precarizado. (p. 285)

Portanto, o autor tem uma tarefa difícil que é mostrar o que se esconde por trás do discurso progressista dessas corporações. Por exemplo, o Uber garante que o sistema de avaliações feitas pelos usuários é mais eficiente do que a regulação municipal, assim a plataforma daria aos consumidores um serviço melhor e mais barato do que os oferecidos pelos táxis. Tom Slee nos mostra a precariedade que são tais avaliações e o porquê delas não atenderem ao suposto objetivo de regular o serviço. Aliás, as avaliações costumam ser fornecidas pelos usuários motivados pela gentileza, como se fossem uma forma de agradecimento, e não pelo ímpeto de regulação do serviço, sendo muito comum darem as mesmas “cinco estrelas” a motoristas que oferecem carros e serviços completamente díspares.

Além do mais, “às vezes parece que a empresa [Uber] está tratando de reintroduzir no cenário cada um dos problemas da indústria de táxi” (p. 130), a exemplo dos proprietários dos alvarás. Os proprietários dos alvarás são os que verdadeiramente ganham com atividade dos taxistas em diversas cidades do mundo. Ao acumular uma quantidade significativa de licenças, e estas sendo limitadas pelas administrações municipais, os taxistas passam a trabalhar, na prática, para os detentores dos alvarás. São os proprietários dos alvarás que ficam com fatia significativa da receita gerada pelo trabalho dos taxistas, e estes últimos são obrigados a trabalhar dia e noite em muitos casos, até auferir uma receita superior aos seus custos de operação. Ora, o Uber faz praticamente o mesmo, pois os motoristas repassam compulsoriamente até 30% das suas receitas à empresa e bancam sozinhos todos os custos da atividade. Muitos dos motoristas do Uber não podem abandonar suas atividades sem antes pagar os custos fixos gerados, dando-lhes condições de trabalho tão precárias e subordinadas quanto às dos taxistas, inclusive obtendo rendimentos muito próximos, como é no caso dos EUA.

E quem seria contra o Airbnb? É graças ao Airbnb que podemos agora conhecer cidades a partir das experiências dos seus próprios moradores, evitando os altos preços praticados pela indústria hoteleira, não é? Além disso, o Airbnb promete a cidade compartilhada dos sonhos de muitos dos militantes pelo Direito à Cidade:

Imagine se você pudesse construir uma cidade compartilhada. Onde as pessoas se tornam microempreendedoras e negócios locais florescem novamente. Imagine uma cidade que promove a comunidade, onde o espaço não é desperdiçado, mas dividido com os outros. Uma cidade que produz mais, mas sem produzir tanto lixo. Embora possa parecer radical, esta não é uma ideia nova. As cidades são as plataformas originais do compartimento. (p. 51)

Mas o Airbnb não nos conta sobre o rápido esvaziamento de bairros inteiros, a elevação dos preços dos aluguéis e o lucro exorbitante, tudo isso depositado na conta da plataforma. Além disso, a maior parte das experiências não se dá com os locais: os clientes do Airbnb já não alugam um quarto das casas, mas todo o apartamento, e os proprietários quase não são mais moradores dispostos a mostrar a cidade como ela é para os que lá habitam, mas capitalistas que administram diversos imóveis e especulam com o valor deles.

O que Tom Slee mostra em seu livro é que há empresários mudando por completo a lógica do compartilhamento, transformando em mercado o que antes eram redes informais de solidariedade. O modelo desses novos negócios, monopolistas/oligopolistas por essência, é a do “vencedor leva tudo”, pois a plataforma que consegue melhor realizar as mediações entre trabalhadores e consumidores tende a liquidar os concorrentes e “muito longe de exprimir a cooperação direta entre indivíduos, o suposto compartilhamento deu lugar à formação de gigantes corporativos cujo funcionamento é regido por algoritmos opacos, que em nada se aproximam da utopia cooperativista estampada em suas versões originais” (p. 15).

As relações de compartilhamento que cotidianamente se davam diretamente entre iguais passam a ocorrer agora entre trabalhadores e consumidores, mas sem que se reconheçam enquanto tal: são microempreendedores e usuários. O sucesso desta conversão de sentido das práticas sociais é possível porque os aplicativos para smartphones permitem finalmente a

ampliação da escala. Já não é mais necessário que o usuário se restrinja aos vizinhos ou à rede de apoio afetivamente constituída, o mundo todo pode agora estar à disposição. Então, uma relação que se dava entre duas partes passa a acontecer entre três (o aplicativo é o novo elemento); os laços de confiança dão lugar às avaliações e à ostensiva vigilância; e as trocas passam a acontecer necessariamente mediadas pelo dinheiro, sendo que uma parte significativa dele fica nas mãos do novo “parceiro”.

Porém o grande salto das plataformas de compartilhamento (mediado por corporações transnacionais) não é impulsionado somente pela assimilação de velhas práticas sociais e encapsulamento delas nos aplicativos. Há ainda a forma como se dá a gestão da força de trabalho (e aqui nos permitimos ir além do livro de Tom Slee). Enquanto nas empresas tradicionais os trabalhadores pouco aparecem para os consumidores, pois há especialização do trabalho no qual a entrega do produto ou serviço cabe à ponta da linha de produção, na Economia do Compartilhamento um serviço pode ser produzido quase todo por apenas um trabalhador, o mesmo que entrega ao consumidor o que foi demandado. Esse aparente controle sobre as diferentes etapas da produção é que dá aderência ao discurso que classifica a estes trabalhadores enquanto microempreendedores, patrões de si. Mas, é claro, as lutas contra essas plataformas já mostram que nem todos caem no conto, pois os parâmetros de controle vêm se mostrando mais rígidos do que os praticados pelas empresas tradicionais.

É assim que o Airbnb pode prometer “viver como um local” quando, na verdade, provoca gentrificação ao elevar o preço dos alugueis e expulsar indiretamente antigos moradores. Ou o Uber, que promete liberdade aos motoristas para fazerem dos seus carros o sonho do próprio negócio, mas os obrigam a aceitar mais de 90% das chamadas.

O livro não se resume ao Airbnb e ao Uber, apesar da ênfase dada pelo título brasileiro à segunda plataforma. Dois entre os nove capítulos são dedicados a eles, mas em um terceiro o foco é o TaskRabbit, que propõe fazer com que “vizinhos ajudem vizinhos” (ainda restrito aos EUA). E nos demais capítulos podemos adentrar no mundo de possibilidades (e assimilações) que se abrem pela Economia do Compartilhamento, conhecer os antecessores superados das atuais plataformas, além do se situar no debate sobre o Bem Comum, as resistências das administrações municipais contra a expansão dessas plataformas, o crescimento das corporações vinculadas às tecnologias do compartilhamento no mercado financeiro e suas interconexões com outros negócios etc. Sem dúvidas, o livro é uma excelente contribuição para aqueles que saíram da fase do entusiasmo e agora se colocam junto aos trabalhadores e citadinos contra a precarização da vida.

Slee, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres; notas de edição Tadeu Breda, João Peres. São Paulo : Editora Elefante, 2017. Título Original: What’s Yours Is Mine: Against The Sharing Economy.

 

3 COMENTÁRIOS

  1. Gostei bastante. Tem-se que o empreendedor é o patrão de si. E a ideologia dominante rotineiramente busca sustentar que isso é algo positivo, benéfico etc. Esqueceram de avisar que a figura do patrão é uma alienação seja ela externa — quando se é um assalariado — seja quando ela é internalizada — quando se é um microempreendedor. Se na primeira o patrão avilta o nosso corpo e espírito nas horas que estamos na firma, desconectando o nosso ser do nosso fazer; no outro ele nos avilta em nossa integridade, desconectando o ser do próprio ser, faz do espírito mercenário do próprio corpo!

  2. Parabéns Caribe, gostei muito do seu texto!
    Tens redes sociais para eu acompanhar?!

  3. Olá, Marcos, agradeço o elogio. Atualmente estou afastado das redes sociais e não sei se ou quando voltarei.

    Abraços.

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