Women's Strike for Peace-And Equality, Women's Strike for Equality, Fifth Avenue, New York, New York, August 26, 1970. (Photo by Eugene Gordon/The New York Historical Society/Getty Images)

Por Pedro Benevides*

Trabalhando ao longo de 1970 e 1971, Sheila Rowbotham produziu um manuscrito que seria um único livro sobre mulheres e revoluções, mas foi convencida a desdobrar o trabalho em dois livros separados: Women, Resistance and Revolution [Mulheres, Resistência e Revolução] foi lançado pela Penguin Books em 1972; e Woman’s Consciousness, Man’s World [Consciência de Mulher, Mundo de Homem] pela Pelican Books em 1973 (Rowbotham, 1974b, p. vii [p. 8]; Baxter, 1974, p. 667; Rowbotham, 2014). No primeiro livro, Sheila avalia “sucessivos estágios de interação entre pensamento feminista e revolucionário”, da revolução inglesa de 1648 até as revoluções russa, chinesa, cubana, argelina e vietnamita. O estudo demonstra cuidadosamente que “os objetivos de mulheres nunca foram plenamente coordenados com os objetivos expressos de qualquer revolução”. Assim, um dos nervos do feminismo socialista (que é a linha de Sheila) está em que “a libertação das mulheres tem permanecido marginal na teoria marxista – dependente da emancipação da classe trabalhadora” (Baxter, 1973, p. 742-743). É um problema duradouro, já amplamente reconhecido: o “ativismo [de mulheres] no movimento revolucionário significa sacrificar o feminismo em favor dos inabaláveis ideais de unidade e fraternidade [brotherhood]” (Paczuska, 1973, p. 25). Daí a necessidade de elaborar o feminismo socialista[1], que move Sheila ao longo de décadas e que tem no livro Woman’s Consciousness, Man’s World um ponto alto.

Além de seu conteúdo explícito, que não cabe redundar, esse livro também possui nexos latentes que exigem consideração. Uma das grandes qualidades da obra está em que suas formulações deliberadas são acompanhadas de arranjos implícitos entre as ideias, e esses são modos de as dinâmicas históricas nos interpelarem por meio da obra, desde que sejam interpretados. Em outras palavras, a relevância da elaboração de Sheila está não só nas ideias que expressa mas na organização dessas ideias, que assumem uma concatenação própria e não imediatamente visível. O objetivo desse estudo é explicitar essas conexões internas ao livro de Sheila.

Inglaterra

Esse tipo de análise só pode ser feita com obras que possuem alta densidade interna. O livro WCMW[2] foi concebido junto ao próprio movimento inglês de libertação das mulheres, que por sua vez emerge com a efervescência política do final dos anos 1960, quando a possibilidade de revolução estava ativamente ligada ao feminismo. Em linhas gerais e bem perceptíveis, essa energia feminista revolucionária inglesa vai do surgimento do movimento, em 1967, até a campanha “Além dos Fragmentos”, da qual fez parte um livro homônimo, publicado em 1979. Impulsionada por essas forças, Sheila publica diversas obras, dentre as quais o livro WCMW se destaca, a meu ver, justamente por possuir aquela densidade.

1. a curva geral do livro

1.1. o problema sem nome

Escrevendo no início dos anos 1970, Sheila toma como ponto de partida as elaborações que a precedem, como a de Betty Friedan e seu “problema que não tem nome”, encarnado pela esposa de classe média que não sofre carências materiais e convive com a sensação de vazio (Rowbotham, 1974b, p. 5 [p. 28]). Esse problema sem nome é desdobrado por Sheila em duas linhas: uma frustração latente na vida cotidiana e uma indistinção conceitual entre condições biológicas e percurso histórico.

Estados Unidos

Na primeira linha, baseada no trabalho de Friedan, Sheila resgata um conjunto de práticas e sensações que vigora entre as mulheres de classe média nos Estados Unidos dos anos 1950, como a satisfação de superfície, o descontentamento submerso e o radicalismo isolado (ibid., p. 5-11 [p. 28-37]). Com o fim da II Guerra Mundial e a expulsão das mulheres dos cargos qualificados na indústria, o retorno delas para posições “de mulher” é acompanhado da reafirmação da santidade da família. Uma combinação de prosperidade industrial, perseguição política em tempo de Guerra Fria e anúncios de eletrodomésticos criam um ambiente no qual a insatisfação das mulheres aparece como um fracasso pessoal solitário (ibid., p. 3-4 [p. 25-27]).

Na segunda linha, Sheila acompanha Simone de Beauvoir e levanta o problema da indistinção entre a condição de fêmea (femaleness) e a feminidade (femininity) (ibid., p. 3 [p. 25]). Como se sabe, o primeiro termo designa o nível biológico e o segundo o social, cultural e histórico. A negação da diferença entre esses dois níveis serve para reduzir o potencial feminino ao corpo: “Destino anatômico era falsamente extraído da história ou vice-versa” (ibid., p. 11 [p. 36]). Para Sheila, desde Freud há apenas esforços espasmódicos de distinguir biologia, psicologia e história (ibid., p. 9 [p. 33-34]) e o Segundo Sexo é a primeira tentativa de uma “síntese total do destino biológico, psicológico, cultural e histórico do conceito e situação das mulheres” (ibid., p. 10 [p. 35]). A ideia de destino anatômico implica que as possibilidades fisiológicas e as sociais se encontram mutuamente atadas e indistintas (ibid., p. 8 [p. 32-33]). Sheila sugere que importa entender a história das mulheres assim como sua anatomia. Essa não pode ser confundida com a história, ainda que seja fundamental para a compreensão do sentido histórico da opressão das mulheres. Essas diferenciações têm enormes implicações, como a de perceber que a própria ideia de humanidade tem caráter masculino (inclusive tal como usada no partido revolucionário) e serve para esconder as diferenças e desigualdades entre homem e mulher. Pensando assim, considerações sobre particularidades femininas podem afetar a própria noção de universalidade. Nesse grande passo de separação e rearticulação entre a condição de fêmea e a feminidade, oferecido por Simone de Beauvoir, Sheila vê uma nova possibilidade: desatar e reconectar possibilidades biológicas e históricas, numa passagem da passividade à liberdade (ibid., p. 11 [p. 35-37]).

Índia

Partindo da sensação de vazio e da fusão entre biologia e história, o feminismo socialista de Sheila Rowbotham sublinha fatores marginais às concepções socialistas consagradas, inclusive as sensações de incompletude e inexistência que marcam a experiência silenciada das mulheres de classe média em etapa capitalista de abundância material. O problema sem nome se torna material para a reflexão revolucionária.

1.2. da paralisia à autoconsciência

Sheila resgata análises precedentes no capítulo 1 e faz a sistematização de suas angústias e convicções pessoais no capítulo 2 do livro WCMW. Após a revisão teórica e o apanhado íntimo, o terceiro capítulo também sublinha o âmbito pessoal, só que agora para extrair da dimensão subjetiva o seu potencial emancipatório. Sheila vai além da mulher e toma em consideração uma vasta massa de seres humanos “invisíveis para eles mesmos” e que “experimentam uma espécie de paralisia de consciência” (ibid., p. 27 [p. 60-61]). Agora, o termo “paralisia” começa a deixar palpáveis as dificuldades que até então apareciam relativamente amorfas, além de ligar a mulher a todos os grupos oprimidos. Sheila identifica nas mulheres

um sentimento de não pertença. (…) Uma parte de nós mesmas faz chacota com a outra. Nós nos juntamos na ridicularização deles [dos homens] sobre as nossas próprias aspirações. (…) Parte de nós pulava para o mundo deles, parte de nós ficava para trás em casa. (…) nós estávamos sempre divididas em duas (…). Dessa divisão, nosso deslocamento material, veio a experiência de uma parte de nós como estranha, estrangeira e cortada da outra, que nós encontrávamos como paralisia titubeante sobre nossa própria identidade (ibid., p. 30-31 [p. 65-66]).

Estados Unidos

A autora elenca um conjunto perturbador de argumentos, que exprime um cerco sufocante, no qual todos os espelhos (ou seja, as imagens de si) se tornam questionáveis: mulheres se educam com mulheres moldadas por homens; algumas mulheres se projetam, de acordo com balizas masculinas, numa independência complacente; e mesmo os mitos a respeito da era dourada matriarcal são criações masculinas (ibid., p. 34 e 40 [p. 70-71; p. 78-79). Se a própria ideia de humanidade é masculina, o problema está além de encontrar termos específicos: “Assim que nós aprendemos palavras, nós nos encontramos fora delas” (ibid., p. 32 [p. 67]). Cercadas e atravessadas por modelos masculinos, as mulheres se tornam dispersas e sem solidariedade, virando notas de rodapé, periféricas, ecos, anexos, o pano de fundo da história (ibid., p. 34-35 [p. 70-72]). Construídas numa feminidade fora de seu controle (ibid., p. 40 [p. 78-79]), “é mais difícil para nós começar a experimentar nossa própria identidade como um grupo. Isso dá à consciência feminina um sentimento elusivo e desintegrado” (ibid., p. 35 [p. 72]).

Do ângulo de Sheila, inserida num movimento de mulheres em forte ebulição, a caracterização do problema é inseparável da possibilidade de sua superação. A disposição para se defrontar com essas imagens femininas emparedadas é movida pelo horizonte da ruptura com o capitalismo. O silêncio é percebido ao se romper. O espelho é identificado ao se rachar. “Todos os movimentos revolucionários criam os seus próprios modos de ver” (ibid., p. 27 [p. 61]), que começam fragmentados mas já racham o espelho capitalista.

Quando a concepção de mudança está além dos limites do possível, não há palavras para articular o descontentamento, então ele às vezes é dado como inexistente. (…) só podemos agarrar o silêncio no momento em que ele está quebrando (ibid., p. 29 [p. 64]).

Na primeira parte de WCMW, composta desses três capítulos, Sheila nos leva da frustração isolada à organização política, da subjetividade invisibilizada até a deliberação máxima de um projeto de sociedade. Temos aí uma conexão intransigente (no melhor sentido) de fatores subjetivos direcionados à transformação revolucionária. Veremos que essa direção não é automática, e existem dificuldades e armadilhas peculiares a cada um de seus componentes – formação de pequenos grupos, mobilização, ação direta, realização de congressos, criação de intimidade, elaboração de teoria, intuição sobre a opressão geral, articulação com outros grupos oprimidos etc. O que quero enfatizar agora é que, segundo Sheila: o silêncio, sem deixar de ser algema, pode se converter em matéria-prima para a “autoconsciência histórica” (ibid., p. 28 [p. 62]); essa conversão depende de ação revolucionária; e essa ação só faz sentido se articular todos os grupos oprimidos, sendo vazia uma saída apenas para mulheres. Compreendendo a linguagem do silêncio, “[nós] podemos começar a usar nossa autoconsciência estrategicamente” (ibid., p. 28 [p. 61]).

1.3. a posição da subordinação feminina

Feito o resgate teórico e pessoal (nos capítulos 1 e 2), a primeira parte do livro se encerra com um capítulo que se dirige sem hesitações para a construção de um feminismo revolucionário, tomando a paralisia como parte necessária da constituição de uma autoconsciência estratégica. Sheila não quer apenas exprimir um raciocínio. Ela quer acolher a leitora, entendida como sujeito real ou potencial de uma luta emancipatória. Contudo, acolhimento tem limite e a segunda parte do livro vai acelerar a elaboração teórica, obrigando a leitora a manter o passo, sem que a experiência de mulheres seja deixada para trás. Se a primeira parte transita principalmente pela esfera subjetiva (seja ela pessoal ou organizativa), a segunda parte se distingue por superar esse âmbito, concentrando-se sobre o vínculo entre os fatores subjetivos e os objetivos.

Irã

Esse vínculo se coloca em dois eixos. O primeiro é a relação entre produção e reprodução, sendo a organização da produção de mercadorias marcada por sua força determinante sobre uma variedade de componentes domésticos, familiares e sexuais, que por sua vez carregam vitalidade própria. O segundo eixo é a possível incidência da subjetividade sobre a objetividade, não como iniciativas individuais ou esforços reformadores, e sim como ação deliberadamente revolucionária.

Vejamos o primeiro eixo. Nos conflitos vividos em fábricas, encontramos turnos, bônus e metas de produtividade funcionando como truques contínuos dos burgueses para corroer as barganhas dos trabalhadores. Uma manobra recente, diz Sheila, é o sistema de três turnos, projetado para manter valiosas máquinas funcionando sem parar (ibid., p. 51-52 [p. 96-97]). E então ela acrescenta: as tensões internalizadas e acumuladas pelos trabalhadores voltam para casa e atingem a família. Apetite alterado, úlceras, artrite, infecção respiratória, dores de cabeça “são a dívida capitalista acumulada sobre o tecido humano esgotado”. Enquanto declara seu respeito sagrado pela vida pessoal e pela família, a organização capitalista do trabalho penetra e fere a vida privada e familiar, rindo de seus protestos (ibid., p. 51-52 [p. 96-97]). Essa é uma das muitas formulações de Sheila a respeito da determinação da produção sobre a família e a sexualidade. Com a vida girando em torno do trabalho, esse persegue o trabalhador no ócio, enquadra a emoção como desperdício e leva o amor a ser espremido nas brechas da produção (ibid., p. 49-51 [p. 94-96]).

Turquia

A partir dessas coordenadas básicas, radicadas na relação de determinação da produção sobre a família, Sheila consegue situar um amplo conjunto de experiências, cuja vivacidade não é anulada sob o peso das forças determinantes. O próprio funcionamento da determinação depende dessa vivacidade. Segundo ela, a família é vista como um retiro e a sexualidade como um alívio. O refúgio e a segurança são valores impossíveis de serem atribuídos ao trabalho e então são descarregados sobre o lar e associados ao caráter da mulher, vista como uma cuidadora. Esses ideais visam compensar a exploração e a alienação do trabalho, como uma válvula de escape emocional, escorada sobre a mulher. A partir da produção, tais valores ganham força para envolver a família, o lar e o amor, e então aparecem como entidades separadas do trabalho produtivo (ibid., p. 53 [p. 99-100]). Além de sofrerem a projeção das imagens acolhedoras de refúgio, a família e a sexualidade têm papel ativo na reprodução de valores que reforçam o mundo do trabalho: as cisões entre trabalho e consumo, sacrifício e prazer, razão e emoção são continuamente reelaboradas na esfera privada, com relativa autonomia.

O poder de impor as noções de família, infância, feminilidade, sexualidade como separadas e distintas do mundo lá fora, em geral duro e competitivo, onde apenas os homens são fortes o bastante para governar, serve para reforçar e manter o capitalismo (ibid., p. 56 [p. 103-104]).

Sheila entende que a promessa de repouso e carinho desmorona sob o peso de tamanha expectativa depositada nesse âmbito aparentemente isolado – esse amálgama de família, casamento, maternidade, lar, amor romântico etc. Incapaz de realizar seu próprio estereótipo, a família se torna uma usina de ressentimento e agressividade. Subordinado no trabalho e soberano no lar, o homem fica à vontade para impor uma ditadura mesquinha dentro de casa, canalizando sua frustração sem desafiar o sistema. Ele pode exercitar o individualismo, o autoritarismo e a hierarquia, que se tornam o prazer inconfessável da vida privada, na qual ele se vê como homem e não como trabalhador – e, logo, se identifica com seu patrão (ibid., p. 58 [p. 106]). Paralelamente, essa violência será diluída pela mídia como tragédias ou comédias – uma eterna e inevitável guerra dos sexos (ibid., p. 57 [p. 104-105]).

Homens e mulheres devoram suas crianças, tratando-as como propriedade; eles usam seu “amor” como chantagem, carinho se torna um investimento. “Depois de tudo que eu fiz por você.” Pais batem em suas crianças para o seu próprio bem, porque seus pais fizeram isso com eles. Na velhice, eles apelam para o masoquismo e seus filhos os tratam como fardos (ibid., p. 53-54 [p. 100]).

Em termos de sexualidade, o orgasmo resiste e as pessoas ousam, entretanto o que tende a se socializar é a competição sexual e a exigência do desempenho certo na cama, que acompanham a mercantilização do prazer. Com tudo isso escoltado pelo ideal romântico sagrado, que supõe uma paixão separada, o que enfim prevalece é a tendência de as pessoas se violentarem (ibid., p. 55-56 [p. 101-102]).

África do Sul

Isso colocado, Sheila observa que, por maior que seja a autodevoração humana dentro e fora da família, é nesse espaço familiar que se põe a única possibilidade de amor contínuo oferecido pelo capitalismo. A imagem de refúgio tem também um fundamento verdadeiramente afetivo. Essa reserva de carinho pode levar as pessoas a resistir a mudanças impostas pelo Capital sobre a família, cujos valores podem entrar em fricção com o sistema. Os recuos e alívios permitidos dentro do lar pelo capitalismo podem ser usados pelas pessoas como autodefesa contra a desumanidade dos valores mercantis externos (ibid., p. 59-60 [p. 108]). Carregando valores locais e não nacionais, e às vezes antagônicos à centralização do Estado, a família pode reagir quando o Estado torna educação obrigatória e proíbe o trabalho infantil (ibid., p. 60 [p. 109]). Do mesmo modo, a intensificação da exploração do trabalho pode colocar a família em atrito com o mercado. Simultaneamente, a família é o espaço da reprodução, define quanta força de trabalho é liberada para a produção e afina a separação de papéis de gênero que serve ao mercado de trabalho (ibid., p. 60-61 e 66 [p. 110-111; 117]). Em síntese, a família é suporte e também pode ser um freio à expansão do Capital – essa é a “ambiguidade da vida ‘pessoal’ ” (ibid., p. 59-60 [p. 109]). As qualidades arcaicas da família tornam seus valores tão racionais quanto irracionais para a acumulação (ibid., p. 66 [p. 117]). Mas essa ambivalência encontra um limite vital. Todas as noções mais positivas – do amor incondicional à solidariedade entre parentes – que podem aparecer como alternativa à brutalidade e à indiferença de espaços externos são impotentes como contraponto aos valores propriamente mercantis, como a competição e o interesse próprio (ibid., p. 65 [p. 115-116]). Ainda que possa levantar restrições ao Capital, a família permanece subordinada à produção de mercadorias e assim “não pode iniciar mudança a partir de si mesma” (ibid., p. 66 [p. 117]).

Argentina

O capitalismo herda e engloba a divisão sexual do trabalho, que é remodelada como uma dissociação entre produção e reprodução, agora ativada pela acumulação de Capital. Se a família era espaço de produção, cujos bens podiam ser inclusive objeto de troca comercial, com o capitalismo a casa se torna um espaço de produção mais imediata que a indústria e não voltada à troca (a produção diária de comida, por exemplo). A revolução industrial consolida a separação entre lar e trabalho, determinando diferentes atribuições de valores (ibid., p. 61 [p. 110]). O homem é identificado com o “trabalho fora” e a mulher, quando tem chance de ser operária, é submetida a uma dupla carga, entrando e saindo do trabalho nas fábricas a depender de oscilações na produção (ibid., p. 63 [p. 113]).

Antagonismo entre homens e mulheres é então efetivamente construído dentro da separação entre o ponto da produção e o ponto do consumo, que foi um produto da organização capitalista do trabalho (ibid., p. 57 [p. 105]).

A divisão sexual do trabalho, anterior ao Capital, será ativada por esse para dispor de homens e mulheres em diferentes pontos da estrutura, de maneira desigual e atribuindo a ambos diferentes valores materiais e culturais (ibid., p. 58 e 61 [p. 107 e 110-111]). Essa é a grande transformação estrutural, determinante da posição de mulheres e homens no capitalismo central dos séculos XVIII, XIX e XX. A partir daí, o lugar de inserção da mulher será sempre subordinado: a entrada da mulher no trabalho assalariado depende de demandas da produção e das disponibilidades da reprodução; suas ocupações tendem a estender papéis definidos a partir do lar; e seu salário é rebaixado para jamais eliminar seu atrelamento à família e sua dependência em relação ao homem (ibid., p. 59 [p. 107]).

* * *

Espanha

As concepções do livro possuem um segundo eixo: o parâmetro revolucionário. No começo dos anos 1970, últimos instantes do auge da prosperidade no núcleo do capitalismo, Sheila exprime o senso de que vidas são roubadas por esse modo de existir (ibid., p. xvi [p. 19]), que funciona como um veto ao pleno desenvolvimento das pessoas (ibid., p. xv [p. 18]). Esses obstáculos vitais exigem uma solução equivalente. Em dois trechos do livro, o seguinte objetivo é explicitado: “da passividade e do silêncio, através do espelho da história, até o comunismo” (ibid., p. 46 [p. 87]; conferir também p. xvi). A superação do capitalismo se torna um critério que coloca exigências ao raciocínio e que nos convoca a conceber difíceis vínculos.

Não basta lutar por reformas particulares, por mais importantes que sejam. A menos que entendamos a relação entre os vários elementos internos à estrutura do capitalismo dominado por homens, nós vamos descobrir que os melhoramentos que alcançamos são torcidos contra nós, ou servindo a um grupo em prejuízo dos demais (ibid., p. 122 [p. 198]).

Aqui se exprime a aspiração de redirecionar a práxis em sentido emancipatório e a convicção num modo de pensar centrado na “necessidade de transformar as relações sociais entre todos os seres humanos” (ibid., p. xii [p. 13]). Nesse tipo de formulação, Sheila funde não só feminismo e socialismo como também todas as lutas contra as diferentes opressões – sendo o poder negro e a frente de libertação gay as correntes mais citadas por ela. Nessa ampla articulação está a aspiração máxima da autora.

Todos os capítulos de WCMW são atravessados por um horizonte de transformação, que se instala por força das obstruções que o próprio sistema coloca e também pelas brechas que ele abre. Revolução é necessidade e possibilidade: essa ideia marxista é alargada para abarcar todas as opressões. Todas as qualidades do livro, com suas vivas observações e abrangentes conexões, dependem desse impulso à ruptura, que penetra todo o texto. Sheila tem sempre presente uma ligação do problema pontual e isolado com o rompimento profundo e geral.

Contra a noção de que a militância rebaixa o intelecto, temos em Sheila a dimensão utópica como termo de referência indispensável, que aciona no livro uma alimentação mútua entre política e teoria, numa amplitude frutífera e audaciosa. A inclinação de rotular como panfletária toda a relação entre luta e elaboração conceitual se desnaturaliza e fica palpável a intimidação hoje em vigor diante do menor traço de imaginação sobre a ultrapassagem da forma social capitalista.

Notas:

[*] Professor do curso de jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

[1] Na mesma linha, escreve Annette Baxter: “A análise socialista sobre o movimento de mulheres não tem sido especialmente inventiva, concentrando-se na exploração das mulheres como um caso especial da exploração do trabalho pelo capital. De acordo com o argumento familiar, a vulnerabilidade econômica das mulheres produz um exemplo exacerbado de uma condição geral. Em tempos recentes nós temos testemunhado uma reação contra essa supersimplificação. Que a experiência de mulheres ofereça não simplesmente uma ilustração rebaixada da opressão capitalista mas sim um eficiente ponto de partida para o reexame do próprio socialismo doutrinário é uma ideia propagada pelas mais audaciosas feministas radicais. A Inglaterra tem uma articulada defensora dessa posição em Sheila Rowbotham” (Baxter, 1974, p. 666-667).

[2] A partir daqui, uso o acrônimo WCMW para me referir ao livro Woman’s consciousness, man’s world. Considerando alguns problemas da tradução brasileira, optei por fazer minha própria tradução dos trechos citados. Assim, todas as citações presentes nesse texto são retiradas da edição da Penguin Books de 1974, que é uma reimpressão da edição da Pelican Books de 1973, quando o livro foi originalmente lançado. Para que as leitoras tenham a opção de consultar a versão brasileira com facilidade, coloquei o número da página da tradução brasileira entre colchetes. O livro foi traduzido no Brasil pela Editora Globo, de Porto Alegre, em 1983, recebendo o título A conscientização da mulher no mundo do homem.

Continua aqui.

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