Inhabited Canvas 1976 Helena Almeida born 1934 Purchased with the assistance of Armando Cabral, Manuel Rios and Manuel Fernando da Silva Santos 2012 http://www.tate.org.uk/art/work/P80033

Por Pedro Benevides

Leia a 1a parte

2. as reentrâncias da opressão

O predomínio do homem no trabalho assalariado cria condições para a hegemonia cultural masculina, da qual fazem parte as imagens idílicas da mulher, da família e do lar (ibid., p. 67 [p. 119]). Além de receber pagamento destinado a manter toda a família (ibid., p. 69 [p. 121-122]), o homem trabalhador sofre uma exploração quantificável, tendo a produção como medida de seu valor individual (ibid., p. 50 [p. 94]). Esse mesmo parâmetro projeta na mulher um sentimento de nulidade (ibid., p. 69 [p. 123]). O valor atribuído ao trabalho assalariado faz do trabalho doméstico uma espécie de não-trabalho, o que é uma maneira de torná-lo invisível. Esse é um modo de distinguir a tangibilidade do trabalho do homem e a invisibilidade do trabalho da mulher. No entanto, Sheila faz essa distinção justamente para explicitar a necessidade de ir além: “a real natureza do trabalho [doméstico] faz dele invisível em outro sentido” (ibid., p. 70 [p. 124]). Aqui, Sheila dá um segundo passo, distinto de uma avaliação econômica, ainda que a organização produtiva continue sendo critério. A exposição desse “outro sentido” pode nos levar a um patamar diferenciado da existência social, num raciocínio que considera o modo de produção como algo mais que um conjunto de relações econômicas.

Segundo Sheila, além de não contar com salário, sindicato ou greve, o trabalho doméstico não possui nem mesmo ócio. Ele não oferece possibilidade de entrar e sair, e absorve todo o tempo e o todo o espaço da existência da mulher. “Uma mulher não vai para o trabalho, ela acorda para o trabalho. Casa é trabalho e trabalho é casa. (…) Ela só está a salvo no banho” (ibid., p. 71 [p. 124-125]). Cada operação doméstica pode ser infinitamente subdividida, num esforço que some logo que se realiza, sugando a mulher para uma rotina cujas demandas são sempre maiores que a força empregada. Trata-se de outro tipo de exaustão. A busca de um tempo para si mesma se desintegra não na monotonia mas na futilidade, até que se desista de buscar algo a mais. A superfície da mente extirpa qualquer pensamento, porém esse vácuo mental, tomado de pequenas tarefas, jamais será vazio o bastante para ser realmente preenchido por algum raciocínio articulado. Há desinteresse da mulher pelas suas próprias obrigações, que contudo jamais podem ser abandonadas e serão ridicularizadas pelos próprios filhos, tornando a mulher “hilariantemente irreal”, inclusive para ela mesma (ibid., p. 70-73 [p. 123-127]).

O parágrafo anterior é uma amostra do que estou chamando de reentrâncias da opressão: um conjunto de componentes formando uma dimensão social específica, que se distingue da economia e que se baseia em qualidades próprias da família e da sexualidade. No parágrafo anterior, parafraseei apenas quatro páginas de WCMW. O livro inteiro está atravessado por esse tipo de análise, numa capacidade admirável e angustiante de encarar o insuportável. A seguir, mais um exemplo, que aparece em Sheila como citação direta retirada de uma publicação feminista de 1970.

Eu devo me fazer de modesta (…) e não fazer quaisquer exigências para ele [o marido], ou fazer qualquer coisa que possa ofendê-lo. Eu me sinto morta agora, mas se ele deixar de me amar eu estarei realmente morta, porque eu não sou nada por mim mesma. Eu preciso ser notada para saber que eu existo. Mas se eu me faço de modesta, como posso ser notada? É uma contradição básica (Meredith Tax apud Rowbotham, 1974b, p. 74-75 [p. 129]).

Sheila exprime uma cisão profunda entre homens e mulheres, e indica a existência de um âmbito oculto de relações sociais. “Quando você sai para trabalhar o emprego é algo que você faz. Mas o trabalho de uma dona-de-casa e mãe não é apenas algo que você faz, é alguém que você é” (ibid., p. 76 [p. 132]). Trata-se de outro grau de diferenciação social, que não se confunde com a crescente especialização profissional demandada pelo mercado. A ideia de salário desigual, por exemplo, corresponde a um problema real, porém não dá a ver a profundidade da cisão. Essa ganha substância própria com observações como as citadas anteriormente. Dada a impossibilidade de distinguir o que se faz do que se é, temos que o senso feminino de nulidade tende à ubiquidade. O terreno delimitado da família e da sexualidade se torna um universo, e não se pode escapar de algo que não tem fronteiras. Entretanto, esse todo intransponível não perde o pé das determinações estruturais, que Sheila sistematicamente vincula aos traços específicos do problema: “A neurose da nulidade vem diretamente da natureza do trabalho das mulheres em casa. Autoafirmação só pode vir por meio de autoabnegação” (ibid., p. 76 [p. 131]). Na primeira frase dessa citação, eis o enfático nexo produtivo; e, logo na frase seguinte, temos as minúcias da opressão da mulher.

* * *

Essa cisão é permanentemente conservada a partir de diversas linhas de construção do condicionamento feminino ou do chamado lugar da mulher. Vejamos algumas dessas linhas. A ligação entre nulidade e produção também é uma conexão entre diferentes opressões e uma dominação geral. Para Sheila, o condicionamento social das meninas dirigido à feminidade e à domesticidade tem o mesmo sentido da construção da imagem do trabalhador ignorante e do negro conformado: a aceitação sem resistência – que Sheila classifica como função econômica (ibid., p. 77-78 [p. 133-134]). Nessa formulação, o interesse da classe dominante vem a primeiro plano, como raiz geral e também como fator de unificação de diversos grupos oprimidos e explorados.

Se não há dúvida sobre o papel da escola, da família, da igreja e da mídia como algumas das principais instituições que promovem o condicionamento da mulher, cabe notar que o próprio teor do espaço e do trabalho domésticos serve para montar imagens de submissão. Assim, a completa ausência de especialização do trabalho doméstico contribui para que ele apareça como mais livre e afetuoso, em comparação às especialidades profissionais competitivas. Mesmo que a violência exploda na família, seu contraste com o mercado é real e colabora para que o castelo defensivo apareça como lar; a submissão, como ternura; e a posse, como amor (ibid., p. 77 [p. 133]).

Entendido por Sheila como um verdadeiro confinamento, o isolamento da mulher no lar se completa com o parto: “Sua criança indefesa é o seu carcereiro [da mãe]. A dependência total da criança é seu poder total, ela dita o humor dela [da mãe] pelo seu humor” (Redfern, 1970 apud Rowbotham, 1974b, p. 79 [p. 135]). A criança cresce e a mulher segue vivendo nos limites da família, como um prisioneiro que tem pavor da liberdade. Finalmente, a moral restrita adquirida com o trabalho doméstico dá à mulher poder suficiente para prender o marido e as crianças em casa, junto com ela (ibid., p. 80 [p. 137]).

A própria mulher encontra um lugar ativo na construção de “um mito alternativo de autorrespeito”, como fazem outros grupos subordinados (ibid., p. 78 [p. 134]). Ciente de que sua situação é intolerável, ela precisa se desligar, bloquear a realidade e acreditar que o trivial tem importância (ibid., p. 79 [p. 136]). Ela cria seus próprios espaços: o longo banho, as compras desnecessárias, o trabalho inventado para ela mesma, cultivando o fetiche de uma limpeza infindável (ibid., p. 78 [p. 134]). Ela precisa alimentar a fantasia de que “eles precisam de mim”, de modo que a falta de propósito ganha ares de indispensabilidade e ela cria uma cultura própria do espaço doméstico: só falar de casa, crianças e mulheres (ibid., p. 79-80 [p. 136-137]). A imagem sagrada do lar depende dessas cores lançadas pela própria mulher sobre seus anos de sacrifício. A mulher será respeitada, mas apenas se cumprir esse papel (ibid., p. 77 [p. 133]). Ela é então pressionada a sentir orgulho por seu martírio e a encontrar seu próprio valor no trabalho sem sentido (ibid., p. 79 [p. 136]), que ganha traço masoquista (ibid., p. 78 [p. 134]). O mito alternativo nunca se torna hegemônico, permanece fragmentado, entretanto oferece à mulher uma noção de inteligibilidade – um repertório que se volta contra ela mesma (ibid., p. 78 [p. 134]).

Portanto, as linhas de construção do condicionamento vão dos interesses da burguesia até a inclinação da mulher oprimida em buscar sentido próprio, passando pela configuração do espaço doméstico e mesmo pelo modelo socialmente naturalizado de gestação e cuidado infantil. Do topo à base, vemos uma mobilização abrangente de disposições individuais – partes que só podem ser compreendidas pelo crivo do dinamismo maior que Sheila procura elaborar.

O problema do vazio pode ser entendido nos termos do trabalho assalariado, socialmente encarecido na mesma medida em que o trabalho doméstico tem sua importância anulada. O vazio também pode aparecer como autorrespeito masoquista que sacraliza o suplício doméstico. Sheila elabora outro modo de ver, diferente do enquadramento econômico (que é insuficiente) e dos valores familiares (que são ideológicos). Ela busca um sentido para a invisibilidade que não seja nem a nulificação que decorre do valor atribuído ao trabalho assalariado, nem a sacralização do confinamento. Além do nexo monetário (a “função econômica”, como já vimos), que é real e não pode ser subestimado, o sentimento de inexistência ganha sentido maior como parte de um dinamismo social próprio, que Sheila agarra justamente ao penetrar as manobras íntimas que tornam tolerável o trabalho doméstico. Se, em termos de salário, percebemos uma relação desigual e injusta, nos termos do suplício da autoanulação doméstica encontramos relações que beiram o insuportável, feitas de profundo sofrimento físico, degradação rotineira e congelamento intelectual. No gesto feminista de liberar a voz represada que registra e escancara o senso de vazio, esse momento essencial de denúncia e desabafo vai além: é parte de um raciocínio capaz de apreender uma dinâmica específica. O silêncio é rompido pelo testemunho, que é elevado à reflexão, numa compreensão do vazio articulada a uma concepção de sociedade, montada do ângulo socialista feminista inscrito no movimento de libertação de mulheres. Um senso de determinação combinado a uma cuidadosa capacidade de capturar a rotina das mulheres em seu desespero rarefeito é capaz de configurar teoricamente uma dimensão vital e oculta da sociedade.

* * *

Vimos que as relações determinantes da produção sobre a reprodução não são imediatas e exigem a consideração de meandros peculiares, que dão espessura aos nexos gerais. Vimos também que as ambiguidades contidas nos vínculos entre produção e família não são capazes de romper a subordinação a partir de si mesmas. Agora, quero enfatizar o momento emancipatório que Sheila encontra na relação entre produção e reprodução. Aqui se trata da capacidade de romper com a sujeição. Existe uma determinação objetiva que impõe ajustes subjetivos, mas essa relação também contém potencial de ultrapassar aquelas mesmas imposições. Sheila detona as esperanças de libertação de mulheres por meio da inserção na universidade e no mercado de trabalho. Ela destaca as possibilidades de revolta e organização políticas das mulheres que se gestam nas ligações entre família, trabalho, sexualidade, educação etc. (ibid., p. 99-100 [p. 166]).

A produção engloba e direciona a reprodução, e depois se apropria dessa subordinação uma segunda vez ao abrir vagas para mulheres no mercado de trabalho (ibid., p. 85 [p. 144-145]). O problema da dupla carga de trabalho feminino se coloca em Sheila como aparição de uma contradição do Capital: esse se alimenta do trabalho doméstico feminizado e ao mesmo tempo demanda mão-de-obra feminina em posições assalariadas. O trabalho doméstico é subordinado e confinado, enquanto a força de trabalho das mulheres é convocada e disponibilizada para o salário. A partir de exigências de aumento de produtividade, que precisa de novas fontes de força de trabalho (ibid., p. 82-83 e 87 [p. 141-142; 147-148]), o capitalismo sustenta a imagem moderna de uma tendência igualitária e de contínua abertura de espaços de escolarização e trabalho para as mulheres, que então são reconduzidas a um lugar rebaixado. O estudo de Sheila tem vários exemplos expressivos. Na metalurgia francesa, mulheres são substituídas por máquinas e depois novamente empregadas “quando as máquinas precisavam de cuidado e atenção”. Empregadores afirmam que mulheres são incapazes de operar maquinaria complexa e elas são colocadas nas atividades mais repetitivas e monótonas, o que por sua vez as torna mais suscetíveis de serem substituídas por máquinas, além de receberem salários mais baixos. A própria coordenação motora das mulheres é aproveitada pela indústria, abrindo vagas que repetem o uso de braços e mãos no trabalho doméstico (ibid., p. 84-85 [p. 143-144]). Mesmo o combate sindical pode reforçar essa reposição da subordinação dentro da indústria. Numa greve, as mulheres recebem a proposta de salário igual, desde que aceitem o turno noturno, que os homens já executam. Elas recusam. A legislação que protege as mulheres de trabalho noturno para evitar exaustão se torna pretexto para negar salário igual e para considerar as mulheres menos capazes e menos confiáveis (ibid., p. 92 [p. 155-156]). Incentivadas a ocupar vagas no mercado, as mulheres vão reencontrar seu confinamento na segmentação sexual permanentemente recolocada pelas mudanças estruturais do Capital (ibid., p. 93 [p. 156-157]). O vínculo familiar sempre persegue a mulher, presa ao baixo salário e enredada em posições menos qualificadas (ibid., p. 94 [p. 158]). Em relação à sexualidade, o orgasmo liberado pela pílula assume a forma do sexo mercantilizado e cheio de iniciativa (ibid., p. 114 [p. 186-187]) – similar à tendência de educar o trabalhador para ser criativo no seu posto de trabalho, sem deixar de obedecer ordens da chefia (ibid., p. 115 [p. 187-188]). A indústria de cosméticos projeta ideais femininos, moldados pelo olhar masculino e humanamente inatingíveis, gerando insegurança e ansiedade com o mesmo gesto que oferece autoestima e beleza. Desse modo e mais uma vez, o mundo feminino é tanto isolado e preservado quanto ameaçado e depreciado (ibid., p. 109 [p. 180]).

Na universidade, a mulher estudante vai viver o conflito entre a competição acadêmica e os papéis femininos aprendidos na família. Além disso, ela vai se deparar com um fosso entre as promessas liberais contidas no diploma e a realidade ocupacional que repõe papéis femininos (ibid., p. 90-91 [p. 153]). No trabalho, na sexualidade e na educação, a mulher sofre tensões entre proteção e humilhação, promoção e rebaixamento. No entanto, ela também percebe essas tensões – e aí se abre o potencial crítico. Então,

enquanto elas se tornam críticas de sua própria socialização, elas se tornam cada vez mais cientes da natureza contraditória dos seus empregos e continuamente conscientes do fracasso, porque o sucesso no contexto do trabalho frequentemente significa um tipo de domesticação da rebelião (ibid., p. 91 [p. 154]).

Dessas ambiguidades específicas emana uma perspectiva própria incitada nas mulheres pelo próprio sistema. Ao condicionar as mulheres a cultivar afeto e cuidado, e ao obstruir seu trânsito em espaços de estudo, trabalho e organização, o capitalismo cria uma posição e um ângulo diferenciados das mulheres sobre a agressividade competitiva masculina.[3]

Simplesmente porque as mulheres têm expectativas diferentes daquelas dos homens, simplesmente porque as mulheres foram mantidas fora de certas áreas do capitalismo, elas estão bem equipadas para perseguir outra forma de organização social. Elas são capazes de ver através de algumas das “realidades” que os homens consideram como “normais” (ibid., p. 101-102 [p. 169]).

É metódica em Sheila a capacidade de fazer a crítica e a autocrítica fluírem articuladamente ao longo de todo o texto: as mulheres alimentam ativamente sua própria opressão, sem que isso elimine sua capacidade emancipatória. Nas reentrâncias da opressão, Sheila encontra alguns fatores que podem viabilizar uma força feminista revolucionária.[4]

3. consciência como contenção

Sheila não se interessa em definir o termo “consciência” explicitamente em nenhum ponto do livro, que ao mesmo tempo trabalha sua concepção do início ao fim. As opções acadêmicas que oscilam entre especialidades e multidisciplinaridade ficam deslocadas diante desse livro[5]. Se hoje a universidade ensina a igualar o termo “referências” à bibliografia de pesquisa, o livro WCMW coloca um quadro de referências de outra qualidade. Esse quadro é feito de: decantação de experiência pessoal em grupos autônomos de mulheres, marxismo que não ceda à ortodoxia, combates que se multiplicam em escala mundial (Vietnã e França sendo apenas pontos mais célebres), dificuldades da mobilização comunitária, movimentos cegos da acumulação de Capital, vícios autoritários da educação infantil, impasses da organização política revolucionária, liberação mercantilizada do orgasmo e assim por diante. Um dos sentidos da contrarrevolução (que Sheila viveu a partir do regime de Thatcher) foi justamente jogar esse tipo de quadro de referências em descrédito, senão em esquecimento quase completo[6].

Sheila enfoca a consciência de mulheres e a consciência de oprimidos. A opressão geral que Sheila identifica entre as massas invisíveis de todo o mundo (ibid., p. 27 [p. 60-61]) ganha um contorno específico, como alienação de mulheres. Paralisia, vazio, silêncio e invisibilidade são alguns dos vários termos que Sheila acumula para apreender essa especificidade, como quem reúne um patrimônio de autossuperação. Esses termos indicam uma combinação de percepção e comportamento – ou, nos termos do livro, silêncio e paralisia, respectivamente. Estou sistematizando com esses dois termos a variedade de fatores trabalhados no livro. São dois pilares que constituem a consciência da mulher. Como silêncio, a consciência engloba moral, medo, crença, padrão de beleza, mito, respeito, sensação, fetiche, valor, sintoma, autoimagem, papéis, educação (ibid., p. 75-80 [p. 130-137]); e como paralisia, engloba hábito, gestos, operações cotidianas, trânsitos, rotinas, inclinações práticas etc.

Com tantos elementos em jogo (como vimos no quadro de referências), por que o destaque dado por Sheila à consciência? Se trabalho e produção, família e sexualidade, são termos tão relevantes para ela, por que garantir à consciência lugar no próprio título do livro? Se não estou enganado, a senha para essa questão pode ser encontrada no texto “Libertação de Mulheres e a Nova Política”[7], no qual Sheila escreve: “Se a situação social externa nos enfraquece, é a nossa consciência que nos contém” (Rowbotham, 1983a, p. 6). Tal posição vital da consciência como contenção faz dela um ponto-chave na passagem do silêncio à ação organizada. Voltando a WCMW: “Nossa opressão é mais internalizada (…). Não podemos apenas ocupar palavras existentes (…) [pois] ‘ela’ representa uma mulher mas ‘ele’ é humanidade. Se ‘ela’ entra na humanidade, ‘ela’ se perde no ‘ele’ ” (Rowbotham, 1974b, p. 33 [p. 70]). Você pode dizer a um operário ou a um homem negro: “levante-se e seja um homem” – mas não a uma mulher (ibid., p. 34 [p. 70]). Vimos como o isolamento da mulher leva qualquer queixa a ser facilmente cercada de reprovação, e o protesto individual a ser revertido em culpa solitária (ibid., p. 3-4 [p. 25-26]). “A exclusão das mulheres de toda linguagem existente demonstra nossa profunda alienação de qualquer cultura que possa se generalizar. Isso é tão verdadeiro para a consciência e atividade revolucionárias quanto para quaisquer outras” (ibid., p. 34 [p. 70]). Na sistematização que proponho, a paralisia é o impedimento primário à ação, assim como o silêncio bloqueia a reflexão e a expressão. Paralisada e silenciada, a consciência se torna a primeira força de contenção sobre as mulheres. A consciência certamente não é o centro do dinamismo social entretanto ela se torna um componente central do livro de Sheila pois efetivamente possui posição fundamental como obstáculo para as mulheres. Portanto, além da dupla caracterização da consciência como paralisia e silêncio, temos em Sheila a compreensão da consciência como contenção. Para além de qualquer definição estrita de consciência, o relevo se encontra nessas duas elaborações combinadas.

Sheila constantemente formula distinções entre um âmbito interno e outro externo. Ela separa “o mundo externo da produção [e] (…) o mundo interno da família e da sexualidade” (ibid., p. xiv [p. 17]). Ela pensa como as “[relações] externas são mantidas parcialmente” pela separação de papéis sexuais, pelos valores autoritários e pelo ideal familiar (ibid., p. 59 [p. 107]), enquanto que as relações internas são basicamente determinadas pela produção. Ela defende que o capitalismo deve ser atacado “não só no ponto da produção mas também no ponto da procriação” (ibid., p. 66 [p. 117]). O interno é composto por

incontáveis áreas de experiência às quais nossa compreensão da consciência de classe política não se estende. Por exemplo, não é claro qual é a relação entre sonhos, fantasia, visões, orgasmo, amor e a revolução. (…) Uma parte essencial de nossa emergência política é descobrir nossa própria particularidade, mas nós somos continuamente ensinadas a desconfiar do sentimento particular que não se encaixa (ibid., p. 44 [p. 84-85]).

Essas áreas de experiência, que compõem o “mundo interno”, correspondem ao termo “pessoal” no célebre lema “o pessoal é político”. É possível afirmar que essa ferramenta de agitação e propaganda (o lema) encontra sustentação teórica na distinção entre interno e externo. Não estou afirmando que Sheila tem ascendência sobre o lema. Ela foi apenas uma entre muitas teóricas de seu tempo e o lema transita entre várias correntes e ângulos. O que quero sublinhar, para os fins dessa sistematização, é a correspondência entre os termos “mundo interno” e “pessoal”. Os dois termos designam o mesmo âmbito de existência. A consciência da mulher é uma parte desse âmbito. Ela radica primordialmente no mundo interno, que por sua vez é determinado pela organização capitalista da produção. Ainda que Sheila não coloque nesses termos, é possível entender a opressão feminina como esse conjunto amplo de relações, uma área de experiência subordinada ao modo de produção dominante.

Ao conceber a consciência como contenção e também como paralisia e silêncio, Sheila oferece sempre uma articulação implícita com as relações de produção: a desvalorização do trabalho da mulher pode assumir diferentes formas de desprezo, “mas é fundamentalmente uma relação material” (ibid., p. 68 [p. 121]). Em várias dimensões da vida, as mulheres são colocadas em posição de inferioridade, porém

não é simplesmente que as mulheres sejam criadas para se acreditar inferiores aos homens, é também que elas são socializadas numa forma de produção na família que é qualitativamente diferente da produção no trabalho (ibid., p. 97 [p. 163]).

Dito isso, aquela articulação entre o externo e o interno não pode ser desligada de um entendimento sobre a opressão.

[…] a emergência política das mulheres tem que estar ao mesmo tempo distinta de e em conexão com homens. Mas nossa consciência da distinção não pode vir apenas do mundo externo do trabalho, ou dos encontros externos da vida. A consciência revolucionária feminina vem da escuridão da nossa infância esquecida. Apenas aqui a extensão de nossa colonização se torna realmente evidente (ibid., p. 35 [p. 72]).

No mesmo sentido, a peculiaridade da opressão da mulher pode ser encontrada inclusive no amor, com delicadezas compondo uma tirania gentil e íntima, que Sheila chama de “subjugação extática” (ibid., p. 34 [p. 71]). Essa é uma das várias manifestações da consciência como contenção: a submissão calcada no êxtase amoroso. Amarradas ao âmbito interno, as mulheres são levadas a exaltar a própria mutilação, na promessa de ficarem mais fortes. “Reconhecer que nós somos as vítimas do nosso próprio masoquismo é nosso começo político” (ibid., p. 42 [p. 82]).

Por fim, é preciso sublinhar que não se trata apenas de teoria. E nem mesmo de teoria e prática. Eis mais um dos deslocamentos que o feminismo impõe sobre as concepções de esquerda. A consciência e o capitalismo não podem ser compreendidos apenas teoricamente: num tópico intitulado “a política do irracional”, Sheila diz que seus receios eram insolúveis em termos racionais e que era preciso modificar a sua noção de feminidade e combater seu senso de seriedade, aprendido na política de esquerda (ibid., p. 44-45 [p. 84-86]).

Eu conheci um homem que me amava pacientemente até que eu tivesse orgasmos e que resolutamente me constrangeu a entrar no marxismo. Minha conversão foi oportuna mas dolorosa. Ele era muito melhor em argumentar logicamente do que eu, e eu me desmanchava em lágrimas toda vez que eu era derrotada. (…) Marx me parecia escrever sobre o passado de um jeito que eu sempre quisera descobri-lo. (…) Eu fiz de Emma Goldman minha heroína. Eu a admirava por lutar como uma mulher mas eu ainda não fazia nenhuma conexão feminista (ibid., p. 17 [p. 47]).

A conexão veio com a ascensão do movimento de libertação de mulheres. No livro, as linhas de libertação são incontáveis e vão de uma greve até o mal articulado mundo dos exames ginecológicos, realizados pelo médico que não experimenta os sintomas e que acusa a mulher de exagero em suas queixas (ibid., p. 37 [p. 74-75]). O aprendizado pode vir também do toque sexual, de modo que a exploração da sexualidade e de “áreas internas da consciência é uma necessidade política para nós”, enquanto os homens definem a política em termos externalizados, como greves, reuniões massivas, manifestações (ibid., p. 36 [p. 73]). Tais embates e compreensões só são possíveis para Sheila quando outras mulheres os experimentam e os comunicam, e isso começou com os pequenos grupos de mulheres, que iniciaram o movimento de libertação (ibid., p. 45 [p. 86]). Esse foi mobilização social e também uma rede de ligações afetivas cultivadas em espaços independentes, começando pelo quarto de algumas mulheres em 1967 até transbordar para auditórios e avenidas, tomadas por centenas e depois por milhares de mulheres na Inglaterra, no começo dos anos 1970.

Continua…

Notas

[3] Annette Baxter também realça esse ponto. Ela entende que, em Sheila, a análise da posição degradada da mulher está entrelaçada com a compreensão de que “as atitudes das mulheres frequentemente têm um conteúdo humano progressista que é completamente indomável” (Rowbotham, 1974b, p. 101 [p. 168] apud Baxter, 1974, p. 667). Essa é, para Baxter, “a base do seu [de Sheila] revisionismo socialista. Por causa da visão única que as mulheres adquiriram em suas vidas duais como fazedoras do lar e participantes no mundo do trabalho, elas estão singularmente equipadas para desafiar algumas das premissas econômicas pelas quais os próprios homens têm sido há tanto tempo tiranizados” (Baxter, 1974, p. 667). Essa avaliação é muito diferente da ideia de que existe uma essência feminina redentora independente da história. Diz Sheila, em entrevista: “Não creio que, por natureza, as mulheres são menos autoritárias do que os homens” (Rowbotham, 1998, p. 10). A posição feminina diferenciada foi produzida historicamente como opressão e, ao mesmo tempo, carrega potencial revolucionário. No texto “Caro Dr. Marx”, Sheila escreve: “Não é possível, então, ver na valorização das capacidades desenvolvidas pelas mulheres como mães uma forma de resistência a não serem reduzidas a ‘meros instrumentos de produção’? Vejo bem que, ao fundamentar na maternidade nossa demanda por direitos, podemos nos isolar e perdermos nosso lugar no território dos iguais. Por outro lado, uma igualdade puramente abstrata, concebida de acordo com a lógica masculina, pode eclipsar uma experiência única das mulheres como sexo. Esse dilema tem sido ardentemente debatido pelas mulheres socialistas já há duas décadas e, ainda assim, o senhor [Marx] não o menciona. Ele tem também implicações para a questão mais geral de como os oprimidos vencerão. Se eles não têm conhecimentos para contribuir com o grande projeto de regeneração social, como é que eles vão impedir as pessoas privilegiadas, com oportunidades e conhecimento, de, mais uma vez, obterem a liderança?” (Rowbotham, 2009a, p. 174).

[4] Na obra de Sheila Rowbotham, esse potencial foi desdobrado ao máximo no livro Além dos Fragmentos (lançado na Inglaterra em 1979 e traduzido no Brasil em 1981), voltado ao questionamento de modelos de organização política e à busca de linhas de organização feministas. Conferir também a edição de 2013, da Merlin, que traz capítulos inéditos.

[5] Essa linha acadêmica se expõe numa resenha da época: “A utilidade desse livro [WCMW] para cientistas sociais é muito limitada. Ao oferecer muitas afirmações mas poucas evidências concretas para sustentar essas afirmações, Sheila Rowbotham produziu um livro que acrescenta pouca substância à compreensão dos papéis sexuais e do movimento de mulheres. (…) Talvez a coisa mais incômoda nesse livro, assim como em muitos outros trabalhos recentes sobre papéis sexuais, seja o modo como ideologia, esperanças e sonhos interferem com o processo de buscar conhecimento sobre homens e mulheres. (…) A gritaria e o gemido ideológico que atravessam muito da literatura corrente sobre papéis sexuais e o movimento de mulheres são muito bem ilustrados nesse livro” (Feinman, 1975, p. 451-452). Em direção oposta, Rosalyn Baxandall classifica Sheila como “provocadora de pensamento e ação”, sem que isso seja incompatível com o rigor do trabalho teórico (Baxandall, 1995).

[6] Rosalyn Baxandall avalia o significado das ideias de Sheila em relação à teoria feminista dos anos 1990, que corre o “risco de falar apenas consigo mesma por meio de uma linguagem acadêmica (…). A aquisição de teoria se tornou mais um exercício competitivo do que um processo politicamente interativo e questões cruciais são contornadas. As lutas feministas se estreitaram, de modo que apenas conflitos de gênero são vistos como corretos. A rica história dos movimentos populares de mulheres que não podem ser reduzidos a antagonismo sexual é agora vista como fora do círculo sagrado do feminismo” (Baxandall, 1995, p. 158).

[7] O texto “Women’s Liberation and the New Politics” foi escrito em 1969 e publicado como panfleto. Em 1972 fez parte da primeira coletânea inglesa de libertação de mulheres, The Body Politic, organizada por Michelene Wandor. Foi republicado na coletânea organizada por Sheila Rowbotham em 1983, Dreams and Dilemmas [Sonhos e Dilemas] (Rowbotham, 1983a, p. 5).

As ilustrações da seção 2 são da fotógrafa estadunidense Francesca Woodman (1958-1981). As da seção 3 são da artista plástica portuguesa recém falecida Helena Almeida (1934-2018).

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