Pode ser hoje, pode ser amanhã
"Trapezista", Fernando Botero (2008)

Por Douglas Rodrigues Barros

Existe para as almas, facilmente impressionáveis, um momento angustiante que sobrevém no instante indeciso, em que ainda se leva muito a sério a si próprio; a penumbra da indecisão projeta suas tintas imprecisas sobre todos os acontecimentos, favorecendo o alvorecer de uma paixão que nunca se combina com os efeitos da realidade. A convicção, que quase sempre toma a consciência dessa alma afetada, torna-a particularmente cara aos que buscam formação através de um estudo profundo. Assim é essa a afecção atual de centenas de jovens, afecção fornecida pela democracia reduzida ao espetáculo das eleições.

Mamãe sempre dizia que nós somos os heróis principais de nossa própria história. O que ela queria dizer com isso, confesso, me é ainda hoje um enigma, mas o sentido prático que adotei para essas palavras é o de que ninguém pode me representar, minha carcaça é tão somente minha, e a peça de minha existência é escrita por meio de minhas escolhas. Soma-se a isso uma leitura, digamos muito precoce, de Thoreau mais uma adolescência eivada de existencialismo de periferia e então teremos o quadro perfeito de um anarquista de coração, comunista por obrigação.

Por falar em representação, nessa hora de magia “democrática”, uma jovem militante, mulher de talento, e que na política nada mais via do que a própria vida, estava trepando numa plataforma de aço que lhe servia para colocar uma grande e alta bandeira com a hashtag “EleNão”. Lá em cima, gritando-me, admirando a multidão, de boa-fé, mergulhada na corrente de seu entusiasmo, chegava numa dessas meditações que encantam a alma, ampliando-a e consolando-a pela miséria de nossa conjuntura. Seu devaneio durou pouco. Desceu e sua voz doce tirou-me do entorpecimento no qual me achava mergulhado.

– Mas que cara é essa? – perguntou-me – fique feliz, olha o tanto de gente aqui!
– Sim! Estou contente, afinal…
– Não só tem partidário aqui, veja – fez apontando uma bandeira rubro negra – existem muitas pessoas que se organizam fora dos partidos!
– Meu problema não é o partido, não são os partidos, é a noção de projeto, são as ideias… a projeção que se faz para além dos limites do circo do absurdo!
– Mas esse circo ainda não mostrou todas as suas criaturas, é preciso saber que muitas aberrações ainda podem surgir!
– Tudo bem! Mas então o que faremos, compraremos a pipoca e evitaremos que a aberração suba ao palco pra vermos desfilar criaturas exóticas e palhaços? Ou queimaremos o circo?
– Ninguém quer queimar o circo, nem se sentem presos nessa ideia, as pessoas acreditam, veja… elas acreditam!
– E você acredita?
– Eu não, eu finjo, eu me represento!
– E se estiverem todos fingindo, representando? Quando acabaremos com isso? Quando acabaremos com o espetáculo para ter democracia de verdade?
– Eu não sei, quem sabe? Pode ser hoje! Pode ser amanhã! Mas, por enquanto… me ajuda aqui…

Pode ser hoje, pode ser amanhã
“Trapezista”, Fernando Botero (2008)

5 COMENTÁRIOS

  1. Conversa de bar:

    Douglas Rodrigues Barros: “ninguém pode me representar, minha carcaça é tão somente minha, e a peça de minha existência é escrita por meio de minhas escolhas”…

    Karl Marx: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”

    João Bernardo: “no modelo que apresento, em que ocorre a completa integração da produção de força de trabalho no capital, os trabalhadores não oferecem no mercado a sua mercadoria, o valor de uso da sua força de trabalho, porque desde o início os capitalistas já a detêm. A condição de trabalhadores assumida a cada nova geração é fixada de antemão. Ela é uma condenação. No final dos anos de 1970 e na década seguinte e hoje ainda, tantas milhares de mãos anônimas escreveram pelas paredes de Paris “metro, boulot, dodo”, viajar entre a casa e o emprego, trabalhar, dormir — o circuito fechado que constitui o padrão capitalista para a vida de qualquer trabalhador, a integração durante 24 horas por dia nos processos do capital

    Belchior: Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos, e vivemos… Ainda somos os mesmos vivemos como os nossos pais…

  2. estruturalistas e posmodernos seguem dormindo o sono profundo.
    enquanto isso, a vida segue agitada nas ruas das metrópolis.

    Douglas, precisamos da determinação de tua escritura. Teus textos embalam a vigília dos que preferem não descansar quando se deparam com o impossível.

  3. Só quero dizer uma coisa: manda o endereço desse bar, se Belchior tiver na vitrola já é

  4. Conversa de bar noutro lado da rua:

    Conversa fiada: “segue agitada nas ruas das metrópolis”

    Bakunin:”o homem só se torna homem e só chega à consciência e à realização de sua humanidade em sociedade e somente através da ação coletiva da sociedade inteira; ele só se emancipa do jugo da natureza exterior pelo trabalho coletivo ou social que é o único capaz de transformar a superfície da Terra em lugar favorável aos progressos da humanidade. Sem esta emancipação material não pode haver a emancipação intelectual e moral para ninguém”

    Guy Debord: “Será que vivemos nós os proletários, será que vivemos? Será que os fracos remédios que tomamos não seria a doença que nos corrói?”

    Posmodernos: “A cidade de São Paulo, em parceria com a Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais (ANCLIVEPA-SP) disponibiliza aos moradores da capital dois hospitais públicos veterinários para o atendimento de Urgência e Emergência de cães e gatos. A ação que disponibilizou o hospital é da Coordenadoria Especial de Proteção a Animais Domésticos (CEPAD), criada em maio de 2012, responsável por medidas de bem-estar animal. O serviço é exclusivo aos moradores da capital e prioriza pessoas de baixa renda assistidas por programas sociais.

    Estruturalistas: “Oito anos após o fechamento do Hospital Sorocabana, na Lapa, Zona Oeste de São Paulo, ainda há equipamentos entulhados no local. O hospital funcionou por mais de 50 anos e foi referência para moradores da Zona Oeste. Construído em 1955 num terreno do governo do estado, era administrado pela Associação Beneficente de Hospitais Sorocabana e fechou em 2010 por causa de problemas financeiros”

    Eduardo Duzek: Troque seu cachorro por uma criança pobre sem parente, sem carinho, sem rango, sem cobre. Deixe na história de sua vidau ma notícia nobre…

  5. Enquanto a tendência, de um lado, é se abrirem delegacias de proteção aos animais (ou outras tantas delegacias especializadas nisto ou naquilo…), de outro, há tendência a se fecharem delegacias do trabalho, ministério do trabalho, justiça do trabalho…

    Eu queria ter nascido um cachorro…

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