Por Manolo

Desde 2005 pelo menos, durante a crise do “mensalão”, vem sendo agitada pelos setores da esquerda então no governo – especialmente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), mas não só – a palavra-de-ordem do “golpe”. De que a direita estaria preparando um “golpe” contra a esquerda. Que era preciso estar vigilante, pois o “golpe” aconteceria a qualquer momento. Esta palavra-de-ordem, e a consequente mobilização política dela derivada, era agitada ou guardada a depender do nível de tensão na conjuntura.

Com o impedimento de Dilma Rousseff, o “golpe” se transformara em golpe? A própria presidenta hesitou muito antes de incorporar a seu repertório retórico esta palavra-de-ordem já corrente em meio à militância. Só depois de praticamente isolada no Palácio do Planalto passou a denunciar o “golpe” usando a palavra. Um alto quadro do PT e candidato à presidência em 2018, Fernando Haddad, chegou a dizer que “golpe é uma palavra um pouco dura, que lembra a ditadura militar. O uso da palavra golpe lembra armas e tanques na rua” (pouco tempo depois, talvez acossado pelas críticas de militantes do seu partido, Haddad corrigiu a fala da entrevista, ainda que não a tenha negado, dizendo tratar-se de “golpe, porra”).

Em meio às dificuldades encontradas para igualar a um golpe de Estado a paulatina perda da capacidade de governar, setores próximos ao Partido dos Trabalhadores, e mesmo os chamados “apoiadores críticos”, foram à teoria política em busca de sustentação para a palavra-de-ordem, de legitimação “acadêmica”, “científica” para a disputa em torno do sentido do processo político. Foi aí que certos intelectuais reencontraram-se com o velho 18 Brumário de Marx (de onde alguns chegam a recolher a bibliografia criticada por Marx como se a houvessem lido por inteiro) e com o Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio e Matteo Pasquino, de onde sacaram o verbete sobre golpe de Estado escrito por Carlos Barbé e destrincharam-no como se houvessem feito eles próprios a pesquisa. Foi aí, também, que estes mesmos intelectuais enfrentaram obras clássicas sobre o tema, como os livros The man on horseback, de Samuel E. Finer, Tecnica del colpo di Stato de Curzio Malaparte e, mais notadamente, Coup d’État: a practical handbook, de Edward Luttwak.

Este último é, entre todos, um dos menos conhecido do público lusófono porque, enquanto Malaparte é um clássico frequentemente referido da ciência política, o livro de Luttwak, embora traduzido para vários idiomas desde sua publicação em 1969, parece ter tido menor circulação no Brasil. Ainda que exista uma tradução dele publicada em 1991 pela Paz e Terra, ela é um pouco difícil de se encontrar, mesmo em sebos.

Por isto, dei-me ao trabalho de resumir do que trata o livro. Levantei um pouco do contexto de seu uso no debate político recente no Brasil. E como sua obra tem sido usada para sustentar uma palavra-de-ordem que seu conteúdo não autoriza.

 

O autor

A principal fonte para a biografia de Edward Luttwak é uma reportagem do The Guardian de setembro de 2015, que veio a ser traduzida ao português pela Piauí em abril de 2016. Existe também disponível um artigo do cientista político estadunidense Corey Robin, especialista no pensamento conservador dos EUA, e um curto currículo de Luttwak.

Vida

Nascido em 4 de novembro de 1942 na Romênia numa rica família de judeus que fugiam dos soviéticos, Edward Luttwak foi criado em Palermo (Itália), onde passou pela educação básica, e na Inglaterra, onde completou sua educação e recebeu treinamento militar básico no exércico britânico. Graduou-se em economia analítica pela London School of Economics em 1964, e depois de prestar serviço aos militares da Grã-Bretanha, França e Israel mudou-se em 1972 para os EUA, onde doutorou-se pela universidade Johns Hopkins em 1975. Daí em diante seu tempo divide-se em inúmeras consultorias a militares, governantes e empresas, além da publicação de artigos em revistas como a Commentary.

Corey Robin diz que nos anos 1970 Luttwak foi consultor de vários ramos das forças armadas dos EUA, mas que, ao contrário do que se espalha, nos anos 1980 Luttwak recusou vários cargos no governo dos EUA. Quando, ainda em meados dos anos 1980, Luttwak se tornou mais crítico do ritmo lento (do seu ponto de vista) com que o Pentágono aumentava suas exigências por gastos militares, foi retirado do rol de consultores. Isto não o impediu de seguir sua carreira de consultor militar junto a outras forças armadas.

O perfil que emerge das fontes biográficas consultadas mostra um Luttwak beligerante, promotor e defensor de políticas militares cada vez mais agressivas – um falcão, para usar a terminologia do Pentágono. Com o fim da Guerra Fria, Luttwak tornou-se um crítico do capitalismo – crítico conservador, crítico pela direita, mas crítico. Seu livro Turbo-Capitalism: Winners and Losers in the Global Economy (1999) marca esta guinada.

O intelectual público

Sob a máscara de um consultor militar focado na chamada “grande estratégia”, Luttwak é na verdade o que os estadunidenses chamam de futurologista: um tipo muito especial de charlatão intelectual que se aventura a usar de sua vasta erudição para projetar cenários futuros dos quais pouco se aproveita senão algumas linhas gerais que qualquer um em seu tempo poderia ter “previsto” olhando para os fatos mais simples da vida social. É um campo de muitos best-sellers – e também de erros homéricos.

Luttwak “previu” em The grand strategy of the Soviet Union (1983) que a invasão soviética ao Afeganistão seria exitosa, pois “a resistência continua, mas a União Soviética não mostra ser inclinada a correr da briga”, e “a resistência é uma questão menor para as forças da União Soviética”. Sabemos hoje o resultado. No mesmo livro, Luttwak “previu” que a URSS entraria em guerra com a China caso o “Ocidente” aumentasse seu volume de armas nucleares; sabemos hoje que sob a administração Reagan o poderio militar americano cresceu, mas não houve qualquer guerra entre URSS e China. Para fechar as “previsões” de Luttwak sobre a URSS, num artigo de 1989 para a revista Commentary, Luttwak “previu”, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim, que a perestroika e a glasnost resultariam num aumento do poderio militar da URSS.

Os equívocos de Luttwak não param por aí, pois sua “futurologia” voltou-se também para os EUA. Num artigo de 1992 para a revista Commentary, Luttwak “previu” futuro sombrio para os estadunidenses: “quando os EUA se tornarão um país de terceiro-mundo? Uma estimativa estabelece a data mais ou menos por volta de 2020. Uma projeção mais otimista pode adicionar outros dez ou quinze anos. De qualquer modo, se as tendências do presente simplesmente continuarem, todos os estadunidenses, salvo uma pequena minoria, ficarão empobrecidos dentro em breve, deixados a sonhar sem esperanças com a perdida era de ouro da prosperidade americana. Nem pode tal declínio manter-se exclusivamente no campo econômico. As artes e ciências não podem florescer e se desenvolver sem a prosperidade que paga pelas universidades, centros de pesquisa, livrarias, museus, teatro, orquestras e companhias de balé”. Para o Luttwak de 1992, portanto, os EUA encontrar-se-iam em 2020 numa situação próxima à do filme Mad Max.

E o que diz o Luttwak de 2016 sobre os EUA? Aparentemente esquecendo seu prospecto distópico, lançou outra “previsão”: segundo ele, num artigo de março de 2016 para o Wall Street Journal em defesa de Donald Trump, Luttwak “previu” que Trump não se envolveria em guerras contra a Síria e Líbia, não promoveria cortes orçamentários nem travaria guerras comerciais. Sabemos hoje o resultado.

O chute dos chutes quanto aos EUA, entretanto, foi em julho de 1970, quando Luttwak “previu” num artigo publicado na Esquire um cenário detalhado para… um golpe militar nos EUA. Está reservado para o futuro, entretanto, o desenlace do cenário mais catastrófico já imaginado por Luttwak: segundo ele, a China não se tornará a próxima potência mundial, apesar de seu enorme potencial. O chute do século será, entretanto, se a “dinastia Trump” se consolidar na Casa Branca por dezesseis anos como “prevê” Luttwak.

Não deixa Luttwak, entretanto, a oportunidade de sugerir políticas, ainda que seja para sugerir o que já vem sendo feito para depois clamar a autoria do que foi feito. Veja-se como, em fevereiro de 2017, Luttwak sugeriu em artigo publicado no site estadunidense Politico que Trump bote a Rússia para brigar com a China.

Como se vê, a erudição de Luttwak costuma colocá-lo em maus lençóis quando se trata do futuro. Por outro lado, enquanto historiador, sua carreira é mais estável. O livro Coup d’État: a practical handbook situa-se neste campo, onde a produção intelectual de Luttwak costuma ser mais coerente.

O livro

Coup d’État: a practical handbook foi traduzido em 1991 para o português pela editora Paz e Terra. Como a edição é difícil de encontrar, foi tomada como base a edição americana de 1969 publicada pela editora de Alfred A. Knopf, fácil de achar na internet em PDF.

O livro tem cinco capítulos.

Primeiro capítulo

O primeiro capítulo é uma definição do golpe de Estado.

Sua principal preocupação é o papel que a moderna burocracia joga nestes processos, e o fator crucial que tem a forma de ligação desta burocracia com a liderança a ser alvejada pelo golpe.

Luttwak, em seguida, tipologiza os golpes de estado como “revoluções”, “guerras civis”, “pronunciamientos”, “putsches”, “libertações”, “guerras de libertação nacional”, “insurgências”. Na sequência, Luttwak dá a definição de golpe de estado preferida pelos defensores da tese de que a agitação política contra Dilma Rousseff e o PT teria sido um “golpe”: “um golpe de Estado envolve alguns elementos de todos estes diferentes métodos pelos quais o poder pode ser tomado, mas, diferentemente da maioria deles, o golpe não é necessariamente assistido seja pela intervenção das massas, ou, em qualquer nível relevante, por alguma força militaresca”.

Dá ainda outra definição: “um golpe consiste na infiltração de um pequeno, porém crítico, segmento do aparato estatal, que é então usado para remover o governo de sua posição de controle sobre o restante do Estado”.

Voltaremos a estas definições adiante.

Segundo capítulo

O segundo capítulo estabelece as condições que facilitam golpes de Estado.

O principal fator contrário aos golpes é a existência de uma população politicamente ativa, ou no mínimo interessada na continuidade do sistema político, que venha a fazer frente contra um golpe.

Atuam em favor de golpes de Estado, segundo Luttwak, vários fatores, que podem existir isolada ou conjuntamente numa conjuntura: atraso econômico (e suas consequências: doença, analfabetismo, altas taxas de natalidade e de mortalidade, e crises periódicas de fome); independência política (tanto formal quanto real); influência relativamente limitada de potências estrangeiras na política interna; participação política restrita a um grupo pequeno da população; concentração do poder político num centro unificado, ao invés da dispersão regional; estruturação dos centros de poder em moldes políticos, não étnicos; consentimento ou neutralidade das coletividades não-políticas (empresas oligopolistas centralizadoras da economia, grupos étnicos numerosos etc.).

Luttwak destaca igualmente as dificuldades causadas por governos de coalizão, mas não qualifica nenhuma delas como causadoras, por si só, de golpes de Estado. Não qualifica como golpe de Estado, por exemplo, o recurso a De Gaulle na crise francesa de 1958, nem tampouco a contínua instabilidade da política italiana e seus governos de coalizão no segundo pós-guerra.

Terceiro capítulo

O terceiro capítulo define a estratégia para um golpe de Estado.

Interessa o fato de Luttwak levar em conta as complexidades das sociedades ditas “modernas”, com sistema político bem estabelecido, pluripartidarismo efetivo etc.

O capítulo levanta uma consideração fundamental: “se aqueles que levam adiante o golpe aparentam desbaratar uma estrutura poderosa simplesmente pela tomada de alguns prédios, pela prisão de algumas figuras, e pela ‘liberação’ da estação de rádio, é porque seu principal feito passa despercebido. Trata-se do perigoso e elaborado processo pelo qual as forças armadas e demais meios de coerção são neutralizados, e as forças políticas são temporariamente forçadas à passividade”.

Daí a necessidade de alta velocidade na fase de transição posterior ao golpe, e a necessidade de neutralização completa das forças opositoras antes e imediatamente depois ao golpe. Daí a necessidade de neutralizar as forças de defesa do Estado, sejam as forças armadas, seja a polícia, sejam as agências de inteligência e segurança.

A conclusão: as forças relevantes para um golpe são aquelas – militares ou não – cuja localização e/ou equipamento permite-lhes intervir no local onde se dá o golpe (geralmente a capital) no intervalo de 12 a 24 horas que precedem o estabelecimento do controle dos golpistas sobre a máquina de governo.

Luttwak desce às minucias da priorização das infiltrações nas forças armadas, hierarquizando-as mediante fatores como a estrutura de comando, a estrutura técnica, a presença e o peso de comandantes com características de liderança etc. Tal infiltração pressupõe neutralizar a capacidade de as forças armadas intervirem contra o golpe em curso. Luttwak chega a testar, hipoteticamente, como se daria esta infiltração, tendo as forças armadas de Portugal e da (então) Alemanha Ocidental como exemplos. Para a neutralização da polícia, Luttwak toma a Gendarmerie, a Préfecture de Police e a Sûreté Nationale francesas como exemplo,

Quarto capítulo

O quarto capítulo estabelece os passos para o planejamento de um golpe de Estado.

O primeiro passo é a identificação precisa das forças políticas e militares a neutralizar antes do golpe.

Entra aqui novamente a distinção de Luttwak entre sociedades “sofisticadas” e “economicamente atrasadas”: enquanto as primeiras “refletem em suas atitudes divergentes a diversidade de uma sociedade complexa”, nestas últimas “a estrutura da sociedade é mais simples, e qualquer conflito de interesses, ainda que tenham a mesma força [daqueles das sociedades “sofisticadas”], é representado numa arena menor, e com menos participantes”. Em todo caso, as forças políticas devem ser neutralizadas porque podem mobilizar massas, e porque podem manipular um aparato técnico sob seu controle para debelar o golpe. Este “aparato técnico” é composto pelos meios de comunicação de massa; por organizações de massa com estrutura própria; e por meios de transporte de massa. A neutralização das forças opositoras ao golpe passa pela tomada deste aparato técnico.

Certas forças opositoras precisam ser neutralizadas pela identificação e isolamento de suas lideranças, ou pelo desbaratamento de sua organização. Para Luttwak, tais medidas justificam-se apenas caso estas forças sejam suficientemente resilientes e militantes para intervir contra o golpe ainda que a infraestrutura do “aparato técnico” tenha sido neutralizada. A neutralização das forças opositoras precisa ser feita mediante a escolha de objetivos que serão tomados ou postos fora de ação por equipes de forças leais ao golpe.

Vem daí, segundo Luttwak, a necessidade de planejar três coisas. Primeiro, uma análise do quadro de lideranças governamentais que precisa ser isolado, e de quais podem ser tranquilamente ignoradas. Segundo, um estudo das instalações físicas que determine quais são relevantes durante o golpe, para que sejam tomadas ou neutralizadas. Terceiro, uma investigação sobre as forças políticas que possam manter um nível de capacidade de intervenção depois das duas medidas anteriores, de modo a prepararem-se os golpistas para sua neutralização.

Quanto às lideranças de governo, diz Luttwak, todas aquelas com poder real devem ser presas pelos golpistas. Neste particular Luttwak desenvolve uma extensa e pragmática tipologia de governos para facilitar o trabalho de identificação daqueles a prender e isolar.

Quanto às instalações físicas, Luttwak chega a desenhar mapas exemplificativos para o estabelecimento de barreiras rodoviárias, e destaca a necessidade de controlar portos, aeroportos e outras instalações do ramo de transportes. Ressalta com igual ênfase a necessidade de tomar os meios de telecomunicação e de comunicação de massa (telefones, telégrafo, rádio, televisão, jornais etc.). No que diz respeito a prédios públicos, Luttwak destaca a necessidade de ocupar permanentemente as instalações físicas onde sejam prestados os serviços de telecomunicações, comunicação de massa e transporte de massa; quanto às residências das lideranças de governo, sua ocupação deve durar apenas o necessário para a prisão das lideranças selecionadas, e outros prédios governamentais deverão ser ocupados num golpe apenas quando associados à posse de poder político.

Quanto aos grupos opositores ao golpe, Luttwak estabelece que devem ser neutralizados aqueles capazes de organizar uma resposta “rápida e dramática” ao golpe, em especial em contextos onde os conflitos políticos sejam violentos e onde todas as forças organizadas, sejam elas políticas ou não, possam ser arrastadas para a disputa política. Luttwak despreza como irrelevantes as forças opositoras em países onde o conflito político esteja “limitado à dimensão verbal”. Os extremistas minoritários, para Luttwak, não devem ser neutralizados, pois sua oposição resulta em apoio ao golpe por parte das forças políticas que temem muito mais os extremistas que os golpistas, e também em associação pelos golpistas das forças opositoras com os extremistas, facilitando a repressão à oposição realmente efetiva.

(Curioso mesmo, neste capítulo, é a defesa por Luttwak da tese de que as organizações religiosas islâmicas eram ainda em 1969 uma força menor, a ser desconsiderada durante um golpe de Estado. Mais uma vez, o futurismo pragmático de Luttwak mostra seus limites.)

Seguindo adiante com o planejamento, Luttwak trata dos partidos políticos. As máquinas partidárias de corte clientelista e fisiocrático restariam paralisadas por um golpe, pois seu principal mecanismo de mobilização (a troca de votos por benesses como empregos, dinheiro etc.) seria quebrado. Nos esquemas de Luttwak os partidos insurrecionais (de esquerda ou de direita) são irrelevantes nas sociedades “sofisticadas”, embora possam representar uma ameaça em sociedades “economicamente atrasadas”, e por isso precisam ter suas lideranças isoladas.

Luttwak recomenda igualmente ignorar os partidos únicos “paraburocráticos”, pois a mobilização de massas a que talvez pudessem recorrer em sua fase “insurrecional” teria sido comprometida pela superfluidade política do partido em seguida à sua chegada ao poder. Seu funcionamento como um tipo de organização fiscalizadora da burocracia estatal, seu desligamento da vida política das massas, faziam dele um aparato sem qualquer outra função senão a coleta de informações e inteligência.

Nos países “sofisticados”, segundo o esquema de Luttwak, os partidos políticos não se apresentam como uma ameaça direta ao golpe de Estado, pois nem eles nem seus membros dominam as técnicas de agitação de massas. Conquanto possam representar perigo devido à capacidade de informação e coordenação que seus diretórios e organismos ainda possam vir a ter depois de um golpe, Luttwak recomenda apenas fechar estes aparatos por meios administrativos.

Os sindicatos são especialmente destacados por Luttwak pelo fato de o conflito industrial e trabalhista acostumar quadros às técnicas de agitação de massas. Nos casos onde o sindicalismo mantenha um caráter militante, não se restrinja a fazer-se notar pelos trabalhadores apenas durante as eleições sindicais e onde os sindicatos tenham algum tipo de estrutura nacionalmente centralizada, Luttwak recomenda neutralizá-los por meio da prisão de suas lideranças e do fechamento de suas sedes.

Quinto capítulo

O quinto capítulo trata da execução de um golpe de Estado.

Sequência operacional e tempo para o golpe

Luttwak não deixa margem a dúvidas: “a fase ativa de um golpe é como uma operação militar – e com ainda maior certeza. Se o princípio geral da tática é a aplicação da força no lugar correto, o golpe consegue-o com precisão cirúrgica ao atacar no coração organizacional do Estado inteiro; se a velocidade é frequentemente importante nas operações militares, no golpe é um requisito essencial. Mas o golpe difere da maior parte das operações militares num aspecto crucial: enquanto na guerra é muitas vezes vantajoso manter algumas forças como reservas para fases posteriores (e possivelmente mais críticas) do conflito, num golpe o princípio do comprometimento total se aplica. A fase ativa toma lugar num curto período de tempo, e as forças retidas hoje serão inúteis amanhã: todas as nossas forças devem, portanto, ser empregues no único combate decisivo”.

Luttwak é ainda mais incisivo quanto à velocidade necessária a um golpe: chega a dizer que a dimensão “tempo” em sua fase ativa praticamente não existe.

Por isto mesmo, Luttwak reforça a necessidade de um planejamento minucioso antes da execução. Não há margem para erros. Não há tempo para corrigi-los, não há segunda chance. Novamente, o tempo: “Logo que o golpe tenha início, o grupo regente saberá que algo acontece, mas salvo se golpes forem muito frequentes no país não saberão o que, exatamente, acontece; pode ser um motim, uma insurreição, o estouro de uma guerra de guerrilha, ou mesmo o começo de uma invasão por uma potência estrangeira”. Confundir as autoridades estabelecidas é fundamental.

As equipes devem sair de suas bases e proceder de imediato á tomada dos alvos designados, agindo como grupos independentes. O porta-voz do golpe deve estar com o grupo que tomará o rádio e a televisão. O chefe das forças de segurança do golpe deve estar com o grupo que ocupará o quartel-general da polícia. Cada liderança deve acompanhar os grupos táticos responsáveis pelas tarefas de sua área, de modo a criar vários pontos de ataque e fragmentar a resistência ao golpe; assim a superioridade numérica poderá ser dissipada, e forças menores (como costumam ser os golpistas) poderão ter maiores chances.

Luttwak começa a tratar de um assunto antes ignorado: o isolamento das forças legalistas da linha-dura. Segundo ele, todas as medidas anteriores terão servido para identificar o tamanho, qualidade e localização das forças legalistas, e as medidas gerais de neutralização (de comunicação, de transportes, de lideranças opositoras ao golpe etc.) terão reduzido sua eficácia. Necessita-se apenas isolar estas forças legalistas por algumas horas, tempo suficiente para a consolidação no poder e para a posterior desmobilização e desbaratamento destas forças legalistas por meio de medidas administrativas. Em última hipótese, Luttwak recomenda cercar estas forças onde estejam concentradas, ou proteger todas as entradas da capital, e ainda causar confusão entre ordens e contraordens em meio às tropas legalistas para solapar a legitimidade de suas lideranças.

Daí em diante Luttwak entra em detalhes práticos, minuciosamente ilustrados por quadros, tabelas e gráficos: coordenação dos cronogramas de execução das equipes, redução do “ruído” nas informações circuladas em meio aos golpistas, priorização de alvos (primeiro os prédios e instalações mais bem defendidos e guardados, depois as instalações técnicas, em seguida os indivíduos a prender).

Terminada a “fase ativa” do golpe, Luttwak descreve como consolidá-lo de imediato. Distingue três áreas de atuação: a estabilização das forças golpistas, para evitar que militares ou policiais usurpem o poder dos golpistas por meio de outro golpe; a estabilização da burocracia por meio da cooptação; e a aceitação do público.

A estabilização das forças golpistas se consegue, segundo Luttwak, mantendo-se sob controle das forças golpistas todos os meios de comunicação, de modo a tornarem-se elas o único elo entre os comandantes das forças armadas mobilizadas. Não está excluída a cooptação por meio de aceleração de promoções, a dispersão dos comandantes mais perigosos espalhando-os em postos distantes (de preferência no estrangeiro) e a “promoção” para posições de menor influência e perigo operacional.

Quanto à burocracia, Luttwak recomenda nunca permitir-lhes ter real noção do quão pequeno é o grupo golpista, para que não venham a sentir-se em posição de poder. O próprio golpe, por si só, encarrega-se de amedrontar os burocratas, pois a situação de risco, segundo Luttwak, levá-los-ia a considerarem-se deslocados de seus grupos e afiliações, e isolados estariam fracos e receosos por suas próprias carreiras. Luttwak recomenda, entretanto, que esta sensação de insegurança seja minorada por meio de garantias aos burocratas de mais alto escalão de que suas posições não serão comprometidas pela restruturação institucional e política instaurada pelo golpe. Nenhum acordo, entretanto, deve ser feito açodadamente, ou do contrário estes altos burocratas desconfiarão rapidamente da fraqueza numérica dos golpistas.

Quanto à aceitação do público, Luttwak ressalta: “nosso objetivo de curto prazo é a garantia da ordem pública, mas nosso objetivo de longo prazo é a conquista da aceitação das massas para que a coerção física não seja mais necessária para assegurar a observância de nossas ordens. Em ambas as fases [antes e depois do golpe] devemos usar nosso controle sobre as infraestruturas e os meios de coerção, mas na medida em que o golpe afasta-se no tempo os meios políticos tornam-se de maior importância, e os meios físicos de menor importância”.

As primeiras medidas para aceitação do público propostas por Luttwak são duras: imposição da imobilidade física por meio de toques de recolher; interrupção de todas as formas de transporte público; fechamento de todos os prédios e instalações públicas; interrupção dos serviços de telecomunicações. O controle dos meios de comunicação de massa mostra sua utilidade: no esquema de Luttwak, por meio deles se pode cumprir tanto o objetivo de desencorajar a resistência pela ênfase da força dos golpistas (seja ela real ou não) quanto o de reduzir o medo que de outro modo daria azo a uma tal resistência.

Por último, há a questão do reconhecimento diplomático ao golpe. Como Luttwak identificou uma tendência ao reconhecimento de governos golpistas que conseguissem se sustentar depois de certo tempo, em especial quando comprometem-se a manter os compromissos anteriormente assumidos pelo país, a manter-se nos mesmos tratados e alianças, a respeitar as relações internacionais etc.

Apêndices

Luttwak deixou para o fim do livro alguns apêndices curiosos.

O primeiro ensina como promover o desenvolvimento econômico por meio de aumento de impostos – acompanhados por muita propaganda e repressão; Luttwak diz que sem estes dois elementos qualquer majoração tributária conduz à revolta, à insatisfação, e abre as portas a golpes de Estado.

O segundo detalha muito minudentemente como formar e posicionar as equipes necessárias ao golpe.

O terceiro contém uma interessantíssima tabela que lista os países do mundo segundo sua renda per capita, a existência de golpes de Estados recentes e a data destes golpes. Outra tabela lista os golpes e tentativas de golpe ocorridas entre 1945 e 1967. Uma terceira tabela trata da “eficiência” dos golpes frente a outras formas de conflito político como a desordem pública, a revolta militar, a insurreição, a guerrilha, a guerra civil, o conflito de fronteiras, a guerra limitada, a invasão disfarçada, as sanções e embargos econômicos e as ameaças. Uma quarta tabela analisa a frequência de golpes de Estado pelo mundo em períodos selecionados, comparando-os com os tipos de conflito já descritos.

Comentários

Luttwak, como se vê, não passa de um atualizador de Curzio Malaparte. Seus conselhos práticos são muito semelhantes aos da Tecnica del colpo di Stato. Visto em resumo o conteúdo do livro, pode-se agora comentá-lo.

Golpe de Estado é tomada violenta e ilegal do poder

Toda a conceituação, o estabelecimento das condições e da estratégia, planejamento e execução de um golpe de Estado, tal como descritos por Edward Luttwak no livro Coup d’État: a practical handbook impõe apenas uma única conclusão: golpe de Estado é tomada violenta e ilegal do poder. Ponto final.

Quer sejam os militares, quer sejam os civis a tomar a iniciativa, no modelo de Edward Luttwak um golpe político é o uso da força para a tomada do poder. Não há espaço para qualquer interpretação do conteúdo do livro que saia desta linha.

Os exemplos fornecidos por Edward Luttwak no livro referem-se, sem qualquer exceção, a golpes de força, à atuação de minorias militantes, à tomada de poder com ruptura e paralisação momentânea da ordem institucional. É no mínimo leviano pretender que tenha feito o contrário.

Todas as técnicas descritas por Edward Luttwak são técnicas de força. Infiltração em forças de segurança, prisões, barricadamento de estradas, sitiamento de forças opositoras, nada disto é metafórico, alegórico ou conceitual, e nem poderia sê-lo no que se pretende um manual prático. Quando Luttwak fala de barricadas, é de sacos de areia e metralhadoras que está a falar. Quando fala de sítio, é do cerco de prédios por homens armados que está a falar. Quando fala de prisões, é de gente sendo imobilizada e arrastada por gente armada até aposentos isolados, reforçados e fortemente vigiados que está a falar. Quando fala de infiltração em forças de segurança, é de conspiradores arriscando a própria vida para convencer futuros comparsas pelos meios mais eficazes que está a falar. Não há espaço para qualquer outra interpretação.

Mas de onde vem a ideia muito circulada de que o livro de Edward Luttwak seria o “guru” oculto da tese do “golpe” que Dilma Rousseff teria sido vítima em 2016 quando foi impedida de exercer a presidência?

Carlos Barbé comenta o livro de Edward Luttwak

Antes de prosseguir, gostaria de ressaltar que o livro de Edward Luttwak foi também comentado por Carlos Barbé, autor de um muito citado e pouco referenciado verbete sobre “golpe de Estado” no Dicionário de política organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Como o verbete de Barbé é, ele próprio, usado em conjunto com o livro de Luttwak nos debates recentes sobre o “golpe” de 2016, vou citá-lo e comentá-lo em profusão.

O verbete de Barbé é citado como defensor de um conceito “alargado” de golpe de Estado que vá além dos golpes de força. A base para tal afirmação é o seguinte parágrafo: “O significado da expressão Golpe de Estado mudou no tempo. O fenômeno em nossos dias manifesta notáveis diferenças em relação ao que, com a mesma palavra, se fazia referência três séculos atrás. As diferenças vão, desde a mudança substancial dos atores (quem o faz), até a própria forma do ato (como se faz). Apenas um elemento se manteve invariável, apresentando-se como o traço de união (trait d’union) entre estas diversas configurações: o Golpe de Estado é um ato realizado por órgãos do próprio Estado” (Dicionário de política, 11ª ed., verbete Golpe de Estado, p. 545.).

Enquanto os comentadores deste verbete ficam por aqui, Barbé prossegue. “Na verdade, no início dos anos 70, mais de metade dos países do mundo tinha Governos saídos de Golpes de Estado, por conseguinte, tornou-se mais habitual como método de sucessão governamental que as eleições e a sucessão monárquica. Mas os atores do Golpe de Estado mudaram. Na maioria dos casos, quem toma o poder político através do Golpe de Estado são os titulares de um dos setores-chave da burocracia estatal: os chefes militares” (Dicionário de política, 11ª ed., verbete Golpe de Estado, p. 545.). Constatação empírica: golpe de Estado é, via de regra, coisa de militar. Isto até os anos 1970.

Barbé não para por aí. Dá outras características do golpe de Estado. “Na grande maioria dos casos, o Golpe de Estado moderno consiste em apoderar-se, por parte de um grupo de militares ou das forças armadas em seu conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder político, mediante uma ação repentina, que tenha uma certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral, a violência intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física” (Dicionário de política, 11ª ed., verbete Golpe de Estado, p. 546). Barbé neste aspecto assemelha-se a Luttwak ao ralar da ação repentina, da rapidez, do tempo rápido, da surpresa.

Barbé fecha o verbete com cinco características para classificar um evento político como golpe de Estado. “1) Na tradição histórica, o Golpe de Estado é um ato efetuado por órgãos do Estado. Em suas manifestações atuais, o Golpe de Estado, na maioria dos casos, é levado a cabo por um grupo militar ou pelas forças armadas como um todo. Num caso contrário, a atitude das forças armadas é de neutralidade-cumplicidade. 2) As conseqüências mais habituais do Golpe de Estado consistem na simples mudança da liderança política. 3) O Golpe de Estado pode ser acompanhado e/ou seguido de mobilização política e/ou social, embora isso não seja um elemento normal ou necessário do próprio golpe. 4) Habitualmente, o Golpe de Estado é seguido do reforço da máquina burocrática e policial do Estado. 5) Uma das conseqüências mais típicas do fenômeno acontece nas formas de agregação da instância política, já que é característica normal a eliminação ou a dissolução dos partidos políticos” (Dicionário de política, 11ª ed., verbete Golpe de Estado, p. 547).

O verbete de Barbé interessa neste ensaio principalmente por fazer uma crítica de fundo ao livro de Luttwak: “..para Edward Luttwak, autor de um dos mais modernos tratados sobre o assunto, o Golpe de Estado consistiria na ‘infiltração dentro de um setor limitado, mas crítico, do aparelho estatal e na utilização dela para privar o Governo do controle dos demais setores’. Esta caracterização, todavia, é abstrata e entre outras coisas não é rigorosamente verdadeira. Apesar do próprio Luttwak sublinhar que hoje o Golpe de Estado se faz basicamente utilizando setores-chaves do sistema — empregados estatais de carreira, forças armadas e polícia —, sua tese de que bastaria a infiltração num destes setores críticos, mesmo que seja da parte de um pequeno grupo não militar, não é confirmada pelos exemplos mais modernos. Antes de tudo, não existem Golpes de Estado baseados apenas na burocracia ou na polícia, se excetuarmos pequenos Estados, onde a polícia é a única força armada. Além disso, a existência de aperfeiçoadíssimos serviços de informação em cada um dos setores das forças armadas, o rígido controle que elas exercem sobre oficiais, tanto da própria como das demais armas, implica que a mera infiltração de um grupo não militar não é suficiente para influenciar um grupo de oficiais. Hoje não existe Golpe de Estado sem a participação ativa de pelo menos um grupo militar ou da neutralidade-cumplicidade de todas as forças armadas” (Dicionário de política, 11ª ed., verbete Golpe de Estado, p. 546.).

Ou seja: tanto a conceituação de Barbé quanto a de Luttwak acerca do golpe de Estado são tomadas pelos defensores da existência de um “golpe” em 2016 em suas versões mais gerais, mais abstratas, mais separadas do substrato empírico, em suas versões mais fracas, indefinidas – e, portanto, mais suscetíveis de uso “flexível” e “criativo”. É esta a base para o “alargamento” do conceito de golpe de Estado.

Alargamento do conceito de golpe de Estado em 2016

Edward Luttwak tornou-se moda na esquerda brasileira depois de ser tomado como base, já em 2016, para um “alargamento” do conceito de golpe de Estado.

Este movimento intelectual foi promovido, entre outros, por Álvaro BianchiMateus Matos TorminRenato PerissinottoLuís Felipe MiguelLucas Pereira Rezende e Joelza Ester Dominguez.

Nada contra o “alargamento”. Qualquer ideia, qualquer conceito, qualquer teoria pode – e deve – ser constantemente retrabalhada, sempre que a realidade o exija.

Bombardeio do Palácio de La Moneda (Chile, 1973)

Acontece que alguns dos defensores da tese do “golpe” querem colocar no texto dos cientistas políticos onde vão buscar referências para definir o impedimento de Dilma como “golpe” coisas que não estão lá. Demonstrei, no caso de Luttwak e de Barbé, que nenhum dos dois defende qualquer concepção “alargada” de golpe; pelo contrário, são bem precisos. Barbé inclusive restringe o sujeito dos golpes de Estado existentes até a década de 1970 quase somente aos militares.

Ainda há os que “pinçam” em alguns textos trechos escolhidos a dedo para justificar teorizações que são suas, e de mais ninguém. Estes casos de desonestidade intelectual é bom que nem se comente.

Outros, mais coerentes, tomam a literatura da ciência política como base para “alargar” o conceito de golpe de Estado. Com estes é possível dialogar.

Do ponto de vista que emprego, quem propõe o “alargamento” de um conceito diz também, nas entrelinhas, que há um conceito, uma ferramenta intelectual bem estabelecida, e que esta ferramenta não se adéqua bem aos fatos que se pretende explicar. Para seguir com seu uso sem precisar de substituição por outro(s) conceito(s) mais adequado(s), que expliquem os fatos de imediato sem “alargar” nada e nem dar muitas voltas e explicações, há quem opte por alargar seu conteúdo semântico. Sem isto, não conseguirá este conceito referir-se ao que antes não se referia, não explicará o que antes não explicava.

Desta forma, ao invés de partir daquilo que a realidade mostra, opta-se por “alargar” um conceito (por razões muito diversas) até que se adeque ao que querem os proponentes do “alargamento”. Com isto, a força explicativa dos conceitos vai sendo perdida, até que toda e qualquer coisa possa ser explicada por meio deles. Já se fez operação semelhante com o “comunismo”, com o “socialismo”, com a “autogestão” e muitos outros conceitos políticos, sucessivamente “alargados” e desnaturados até um ponto em que dificilmente seus proponentes originais o reconheceriam. O “alargamento” do conceito de golpe de Estado resulta em perda semelhante de precisão e de poder explicativo.

(Sei que nenhuma palavra é unívoca. Que todo significado, em especial quando se trata de conceitos políticos, está sujeito a disputas no campo semântico. Por isto mesmo, sei também que o “alargamento” do golpe de Estado atende a interesses políticos, tanto quanto sua restrição ao conteúdo original. Falarei deles adiante.)

Para aqueles na esquerda que defendem a via eleitoral e parlamentar como válida para a construção do socialismo, para quem aceita as “regras do jogo”, mais interessante teria sido, por exemplo, aproveitar o processo de impedimento de Dilma Rousseff para mostrar os mecanismos da democracia formal pelo que são. Da inevitabilidade, no sistema político de “presidencialismo de coalizão”, da construção de maiorias parlamentares em conjunto com as eleições para os cargos executivos. Demonstrar paulatina, didática e enfaticamente a necessidade de aumentar de modo drástico a bancada parlamentar e, ainda no mesmo exemplo, preparar desde 2016 uma campanha maciça pela eleição de deputados e senadores de esquerda em 2018 para barrar o poder dos adversários de classe. A esquerda brasileira, entretanto, demonstrou preferir o martírio ao pragmatismo, a mística do “golpe” a um processo massivo de construção das condições de possíveis vitórias eleitorais em 2018 tanto nas eleições majoritárias quanto nas parlamentares. Resultado: agora poderá mesmo vencer as eleições majoritárias, mas por não ter feito qualquer movimento no sentido de incorporar as eleições proporcionais na estratégia, poderá ao fim e ao cabo ter vencido mais uma vitória de Pirro. E se perder, aprofundará a mística do “golpe”.

(Antes que venham me dizer que o que eu queria é ter sido o estrategista eleitoral do PT em substituição a gente muito mais experiente neste campo do que eu, ressalto que se trata de um exemplo, de um thought experiment simplório. Não é por este caminho que penso ser possível construir o socialismo.)

Consequências

Que conclusões políticas tirar, então, quando se descobre que o que houve em 2016 não foi um golpe de Estado?

Disse-o em outra oportunidade, mas o corta-e-cola permite desenvolver melhor os argumentos.

Não acreditar que o impedimento de Dilma tenha sido um “golpe” implica em apoiar o governo Temer? De forma alguma. Nenhum alinhamento político automático com o governo Temer pode ser “deduzido” da discordância com a tese do “golpe”. Tal “dedução” não passa de um non sequitur, de uma conclusão que não se pode concluir a partir da premissa apresentada. “Dedução” por sinal bastante útil, pois permite estabelecer (ao menos no discurso, porque a prática das alianças eleitorais em 2018 prova o contrário) uma distinção entre as “vítimas” e os “perpetradores” do “golpe”. Este zdanovismo redivivo, este simplismo do “nós contra eles”, pode ser até eficiente, mas é a forma mais autoritária, mais irracional e menos efetiva de construir alianças políticas. Trata-se de forçar toda a esquerda a unificar-se numa só fileira, ao invés de “bater juntos, marchar separados”.

Não acreditar que o impedimento de Dilma tenha sido um “golpe” implica em viver de fazer detonação com tudo o que fazem hoje os integrantes do campo político apeado do poder? De forma alguma. Claro, há quem aposte nisso (os agitadores do “necrogovernismo” e que tais), mas fora de um contexto de futrica de redes sociais e picuinha de intervalo do 6º ano do ensino fundamental isto não se sustenta. Há espaço para que concordemos em questões pontuais e muito específicas. Por sinal a maioria de tais questões já vinha sendo pontuada pela extrema-esquerda durante os governos Lula e Dilma – mas, já dizia o velho Léon Blum, “a gente muda perspectiva quando vira chefe de governo”.

Por isto mesmo, passo reto por ações conjuntas cujo único objetivo é jogar água no moinho petista. Em especial em 2018. É possível, sim, encontrar convergências práticas com este campo. Greves, ocupações de imóveis, luta contra a violência policial, apoio a presos, tudo isto são campos onde a atuação comum foi e é possível. Sempre com muito tato e cuidados, pois a posição oposicionista do campo político capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) é conjuntural e há a tendência nele de esquecer o passado – exceto o que lhe aproveita, claro.

Edward Luttwak

20 COMENTÁRIOS

  1. Manolo,

    Obrigado pro trazer outras referências que atestam que golpe de Estado é conceito apropriado para descrever o que houve em 2016. Aliás, cada vez fica mais claro. E já há os que em 2018 reconhecem como golpe o que em 2016 não reconheciam.
    Se em Luttwak o núcleo central, essencial de um golpe de Estado já estava explicitado, como você bem mostrou, no capítulo da Definição, autores mais atuais já enfatizaram as características não necessariamente militares – estereotipadas diria – do golpe de Estado, a partir da realidades mais recente.

    Luttwak define claramente num capítulo dedicado a isso o que é golpe de Estado. Depois ele trata de táticas nas realidades e contextos que eram mais frequentes. Ora, você passa a definir golpe de Estado pelas táticas descritas no livro.

    Uma pergunta. A destituição de Mussolini em 1943 foi um golpe de Estado?

  2. Eis aí um exemplo das mentalidades destes tempos difíceis: ao ver derrubado o fundamento de sua tese política, Leo Vinicius diz, contra os fatos e cinicamente, que ela saiu reforçada. E arruma um espantalho para fingir diálogo.

  3. Mas por que razão e com que objectivo teria ocorrido um golpe, ou mesmo um “golpe”?

    Há poucos dias, a propósito do recente processo contra Fernando Haddad, enviei uma mensagem a um amigo em que observava: «É realmente curioso que a social-democracia seja tratada como bolchevista». E ele respondeu-me dizendo «Também fico intrigado com essa prática de transformarem os moderados petistas em vermelhos radicais. […] desde a graduação fui chamado de dinossauro por um ou outro professor pelo fato de ler Marx e outros autores marxistas. […] Nada disso mudou ao longo de quase 20 anos em universidades, como estudante e como professor, mas de uma hora para outra começou-se a falar em hegemonia marxista e coisas do gênero. Do que eles têm tanto medo?»

    Eu tomei o mote para responder com mais perguntas: «Do que eles têm tanto medo? O PT conseguiu para o governo uma base social para a qual não encontro similar em nenhum país do mundo. Nomeadamente no último governo de Dilma, com a Kátia Abreu na Agricultura e o MST na base de apoio do governo. Isto é deveras prodigioso. A base social dos governos PT ia desde as maiores transnacionais brasileiras até aos movimentos sociais. Para que isto sucedesse era necessária uma chuva de ouro como a de Danae. Chamou-se a isto “corrupção”. Eu chamo-lhe: máquina bem lubrificada. A política dos editais foi a cereja no pudim, inserindo todo o meio artístico na base de apoio. Por que motivo se quis destruir este paraíso do capitalismo, que é a harmonia de classes? E para substituí-lo por um governo que conta com uma enorme taxa de rejeição, ou seja, que irá recomeçar e agudizar as lutas sociais. Para quê? Quem pode beneficiar disto, a não ser a polícia? Que sectores do capitalismo estão interessados numa coisa destas? Tudo perguntas para as quais não encontro resposta. E é necessário encontrá-la.»

    No mesmo dia o meu amigo respondeu-me: «O PT realmente conseguiu uma adesão sem precedentes ao seu projeto de poder. Como sabemos, a gestão das relações de produção sustentada na harmonia de classes foi uma obsessão não apenas do Estado Restrito, mas sobretudo do Estado Amplo. Apesar das especificidades em termos de organização dos processos de trabalho, da Ford à Toyota, me parece ter sido esse um objetivo comum dos capitalistas: conseguir gerir as relações sociais a partir da premissa de que capital e trabalho podem e devem ter os mesmos objetivos e viver em harmonia total. Lula, enquanto gestor advindo do sindicalismo, tinha essa obsessão e foi bem sucedido. Também concordo contigo a respeito da “chuva de ouro” ser o lubrificante para o funcionamento da engrenagem. Me lembro de alguém tê-lo colocado no campo da extrema direita (não encontrei o site), anos atrás, por você afirmar isso. Mas esse pessoal que deixou de compreender a exploração como o cerne das relações sociais de tipo capitalistas não é capaz de ver na “corrupção” um processo de repartição da mais valia entre as elites.
    Pois bem, chegamos à mesma encruzilhada. Essas explicações petistas de que o “golpe” foi deflagrado porque a “casa grande” não se conformou com o fato de filhos da “senzala” chegarem às universidades, de pobres viajarem de avião e coisas do tipo nunca me convenceram; são insuficientes. Não nego o fato de que uma parte das elites e da classe média (não me agrada o conceito) tem ojeriza aos pobres (lembra-se do vídeo pobre voa? https://www.youtube.com/watch?v=jrUVle5wdPY ), mas isso parece explicar apenas a superfície. Eu tenho tentado pensar em termos de relações de trabalho, da precarização extrema da força de trabalho e da consequente destruição do projeto de harmonia social. Para usar uma expressão tão em voga entre jornalistas e comentaristas: “o governo Bolsonaro pode dar certo”? Entendo que “dar certo” para esse governo significa conseguir implementar o projeto de flexibilização extrema do trabalho e de neoliberalismo radical. Isso o PT não poderia fazer, pois mesmo com uma base social sem precedentes, implementar esse projeto levaria à implosão da referida base.
    E nesse ponto também fico sem respostas e só tenho mais perguntas a somar às suas: a implementação do projeto do Paulo Guedes deverá ampliar significativamente a gritante desigualdade social no país. Isso não deverá ter reflexos sobre o consumo? Se uma parcela significativa da população tiver menos poder de compra, isso não deverá resultar em superprodução? A intensificação da repressão não tenderá a tornar a situação ainda mais explosiva? A falência completa do sindicalismo de minimização de conflitos não poderá estimular a formação de movimentos verdadeiramente radicais? Pretendem resolver tudo com repressão? […] Estamos no fim ou no início de um novo ciclo da mais-valia e, por conseguinte, de lutas?
    Por fim, outro temática que tem me inquietado refere-se ao tal do Olavo de Carvalho. Nunca li o guru dessas figuras peculiares, mas seus argumentos parecem ser tão ridículos que me questiono quais são seus reais objetivos, para além de alcançar o poder. Ou esse era o objetivo primordial? O Bolsonaro e o Dória reviveram um discurso de Guerra Fria que, para dizer o mínimo, é de um anacronismo gritante. Parecia que a URSS estava de pé e o muro sólido. Escrevo isso para retomar aquela questão que você colocou a respeito de tratarem a social democracia como bolcheviques. Seria apenas o discurso necessário (por mais ridículo que seja) para extirpar o PT e sua capacidade sem igual de construir uma base social?»

    No mesmo dia o meu amigo voltou às interrogações. «Pois eis a questão: a quem interessa o Bolsonaro? Quando ele fala em acabar com a unicidade sindical, para estimular a concorrência entre os sindicatos, dá para deduzir que o objetivo de fundo é gerar uma pulverização extrema dos sindicatos que resulte no completo enfraquecimento dos mesmos. Somando-se isso ao projeto da carteira verde e amarelo, o desastre para os trabalhadores seria colossal. Porém, há uma possibilidade disso resultar numa situação explosiva e estimular novas formas de organização, inclusive por meio da utilização das tecnologias de comunicação.»

    Isto foi anteontem. Hoje eu escrevi novamente ao meu amigo: «Às questões por resolver, as suas e as minhas, acrescento outra. Usualmente a esquerda era ideológica e a direita era pragmática, e esta era mesmo uma das grandes críticas feitas pela direita à esquerda, acusando-a de utópica. Pois bem. Desde o começo dos governos do PT e ao longo desta última campanha eleitoral e ainda agora a esquerda afirma-se como pragmática e é o Bolsonaro quem se revela como puramente ideológico. Mais ainda, é esta uma das principais críticas que a esquerda faz ao presidente eleito, o de ele se guiar pela ideologia e não pelo pragmatismo. Esta inversão de valores provocou então no Bolsonaro uma reacção complementar. Ele é tão ideológico que tem de ideologizar um inimigo que na realidade é simplesmente pragmático, daí a conversão do PT real em fictício papão bolchevista.» Mas só por uma questão de estilo escrevi isto como uma afirmação, porque na verdade é uma dúvida, para somar a tantas outras.

  4. Marcelo,

    Essa é a melhor pergunta. Formalmente pela definição do Luttwak o impeachment do Collor seria um golpe de Estado.

    Mas não havia ninguém interessado em gritá-lo, a não ser o próprio Collor. A esquerda nunca o quis, a direita que o elegeu e os eleitores que votaram nele já não o queriam mais. E não havia um programa diferente para ser posto no lugar. Não houve mudança de programa, de governo.

    Manolo,

    Como que não foi reforçado que houve golpe de Estado com esse seu texto? Ora, pelo menos seguindo Luttwak foi golpe de Estado, como você bem mostrou os destrinchar o livro. Qualquer um lendo sua própria resenha do livro chega à conclusão que pela definição (no capítulo de definições do livro) o que ocorreu em 2016 no Brasil foi um golpe de Estado. os outros capítulos como você bem aponta tratam de condições para um golpe, táticas etc. Como eu já apontei, você procura extrair a definição de golpe dele nas partes que ele está discutindo a prática, a tática dos golpes nas condições existentes. Só que como você bem apontou a definição de golpe dele está no primeiro capítulo, dedicado á definição.

  5. Partindo do pressuposto de que o desenvolvimento das forças produtivas é uma exigência constante do modo de produção capitalista, tudo que está relacionado à produção, por conseguinte, também deve se desenvolver. Portanto, não são apenas as máquinas “máquinas” que se desenvolvem, mas também as instituições. Instituições em sentido amplo. Por exemplo, se a família, tanto burguesa como proletária, do século XIX, ou do século XX, era “fabricada” de determinada maneira para desempenhar uma dada função produtiva, no século XXI, ela é constituída segundo as necessidades do século XXI. Portanto, o trabalhador ou o burguês de determinado momento histórico nunca é produzido exatamente da mesma forma que o trabalhador e o burguês de outro momento histórico. E como os trabalhadores de hoje são produzidos? São produzidos, cada vez mais, sob a égide de identitarismos e multiculturalismos os mais variados, e se estes atualmente ainda não são plenos, buscam implacavelmente se firmarem como totais (totalitariamente…). E mesmos os trabalhadores produzidos sob outras condições históricas (condições tecnológicas, ideológicas, sociais, etc) acabam sendo forçados a se adaptarem às exigências produtivas de hoje para sobreviverem. E esta condição é uma universal e mundial do capital e, por isso, a social-democracia, não só do PT, como também dos “bolivarianismos” e afins mundo a fora, foram fundamentais na implementação deste desenvolvimento das forças produtivas e, ao mesmo tempo e contraditoriamente, criaram as condições para sua própria derrocada e superação, pois o que são os identitarismos e multiculturalismos que não mediadores dos conflitos entre o capital e o trabalho e, por que não dizer também, agentes ativamente promotores do próprio capitalismo? Por isso não acredito nem em golpe nem em “golpe”. Acredito que a intensificação da fragmentação da classe trabalhadora através de identidades e culturas são um novo desenvolvimento das forças produtivas e que o PT foi um agente ativo neste desenvolvimento.

  6. O cinismo vai por aí; apostar no argumento furado e repeti-lo como se fosse válido. A definição é lida em contexto no texto inteiro, e inclusive ressalta-se como ela é retirada de seu contexto para legitimar o que quer que seja. No contexto, há outro fator fundamental: o tempo. Melhor dizendo: a velocidade e a surpresa. Golpe se faz de modo rápido, inesperado, surpreendente, irresistível. As conspiração (que por si só não é parte do golpe e está presente em toda política) pode demorar bastante, mas o golpe vem num átimo atordoante. Tudo se faz em alta velocidade para que a reação seja impossível. Mas claro, como não agrada tratar do que se discorda, passa-se reto, recorta-se o que interessa e oculta-se o que não interessa. E assim vão os cínicos, de falácia em falácia, fechando os olhos para o óbvio ululante em nome de audiência nas redes sociais. Isto tem consequências políticas mais sérias do que se imagina.

  7. Manolo,

    A pergunta continua: e respondo para você. A retirada de Mussolini do poder em 1943 para você, segundo sua definição, não foi golpe de Estado.

    Sei que a questão não entra no racional, pois se passasse pelo racional bastariam as próprias declarações de diversos atores: Temer (anunciando publicamente nos EUA os motivos programáticos da Dilma ter sido derrubada), o comandante das Forças Armadas colocando twitter nas ruas (e mais recentemente declarando que se o PT não fosse mantido fora do governo via impedimento do Lula haveria tanque nas ruas).

    Mas como o golpe teve como corporação ponta-de-lança o Judiciário, não faltou sequer a declaração do atual presidente do STF, fazendo o paralelo do Judiciário atual com as Forças Armadas em 64.

    Isso é tipo crime confesso, à luz do dia à queima roupa… e sim, é preciso muita falácia e defesa de teoria e identidade alheia à realidade para ficar fechado no negacionismo:

    “ele [Toffoli] reconhece que o ativismo político do judiciário tem o mesmo caráter golpista que teve o golpe militar de 1964: “É hora de o Judiciário se recolher ao seu papel tradicional. Deixar a política e os representantes eleitos pelo povo assumirem as proposições. […] Nós não podemos cometer o mesmo erro que os militares cometeram [em 1964].

    E conclui com uma afirmação estapafúrdia, que deturpa a história: “O que a sociedade pediu [?!] foi para eles [os militares] entrarem, solucionarem o problema e saírem” [sic];” https://www.viomundo.com.br/denuncias/jeferson-miola-jantar-de-toffoli-expoe-promiscuidade-entre-o-chefe-do-poder-judiciario-com-multinacionais-influentes-e-o-governo-dos-eua.html

  8. A estratégia cínica agora, além da telepatia, é colocar na boca das pessoas palavras que não foram ditas.

  9. Telepatia ou leitura sintomal?
    Essa logomaquia bem que poderia ser resolvida com um duelo ao pôr do sol…

  10. Acerca da conjuntura:
    A definição pode ser usada coerentemente para dizer que foi golpe. A questão, contudo, não é essa, pois golpe, dentro do constitucionalismo, seria qualquer subversão da constituição para destituir o governo. Logo, a discórdia acerca do rótulo do golpe seria essencialmente jurídica, porque independentemente de ter havido um “processo constitucionalmente previsto”, o teor do processo é suficientemente vago para defender que ela cometeu ou não crime;

    Por que um processo com teor vago foi sólido o bastante para derrubá-la?

    Dilma “CAIU”, como dizem, e não foi retirada à força, porque a própria esquerda entende, ou deveria, que sua INABILIDADE política, mesmo com todas as bases que o PT construiu nos mandatos, resultou em seu golpe. É evidente que caiu com a sistemática ajuda da direita – esta, por sua vez, irritada por não se sentir mais representada pelo “consenso de classes” do PT, e pela incapacidade eleitoral do PSDB em derrotá-lo, viu uma janela aberta e trabalhou para explorá-la, mas quem realmente chutou o pau da própria barraca foi a Dilma.

    O que realmente define o caráter golpista do impeachment não está no processo legal, nem na luta da Direita para se livrar do PT.

    Está no fato de que Michel Temer, eleito dentro da mesma chapa de Dilma, deveria governar alinhado aos interesses ideológicos desta, e no entanto, já anunciava, antes mesmo de oficialmente selar o processo de impeachment, diretrizes totalmente opostas ao governo do qual fazia parte e era peça-chave (vice-decorativo foi motivo de chacota da esquerda e direita). Ou seja, há prova de legalidade do processo de impeachment, contudo, o golpe se deu com o Vice emplacar uma agenda contrária à eleita nas urnas de 2014.
    Daí a ilegitimidade do governo de Temer! Esta é diferença, na minha visão, marcante quanto ao processo do Collor.

    Pode-se argumentar que a Dilma também contrariou suas propostas de 2014, claro, mas é evidente que existe uma margem de atuação, na medida em que ela ainda era uma presidenta eleita, e portanto, há mecanismos institucionais de corrigir seu rumo e lhe fazer frente (como o próprio Cunha usou, ainda que de forma pervertida); o impeachment é sempre uma última escolha, pois o Vice, ainda que eleito, nunca o é diretamente, e nenhum impeachment é mero processo legal, via de regra, é sempre crise política também.

  11. Agora a falácia do alinhamento programático entre cabeça de chapa e vice. Sim, no TSE o programa é o mesmo, mas dizer que o PMDB inteiro fechava integralmente com aquele programa, convenhamos, é falso. Tanto assim que, vistas as coisas no longo prazo, o PMDB começou a relação com os governos do PT numa oposição tímida, com setores querendo manter o vínculo com o PSDB e outros querendo vincular-se ao governo então recém eleito (2002). O PMDB entrou de mala e cuia no bloco hegemonizado pelo PT quase em seguida ao ápice da crise política de 2005 (o “mensalão”), quase como que convidado pelo próprio PT quando aquela técnica de garantia da maioria parlamentar foi destruída. Aliança de ocasião dá nisso.

    Outra falácia: a vinculação entre programa de campanha e programa de governo. Sim, o programa registrado no TSE pode dizer uma coisa e depois outra completamente diferente terminar sendo executada. Ê simples questão de correlação de forças, nada mais.

    Ainda outro erro: a falta de votos no vice. Ora, no sistema eleitoral brasileiro o voto é dado a uma chapa pluripartidária encabeçada por uma pessoa, isso é beabá. Não é voto pessoal e intransferível. Quem vota na pessoa que aparece na tela vota na pessoa indicada pela chapa para concorrer àquele cargo, e também na pessoa que a substituirá em eventualidades.

    Mas os erros e falácias acima não tocam no problema. Golpe não é só a ilegalidade, segundo o material de ciência política tratado acima, não é só a força, não é só a participação de gente “de dentro” junto com gente “de fora”; é tudo isso em alta velocidade, de surpresa. O resto é retórica de quem perdeu na correlação de forças.

  12. Me divirto com sua explicação de que o erro meu acerca do programa de campanha e programa de governo é uma questão puramente política, sem relação com o direito positivo, e no seguinte dizer que errei pois quanto ao sistema eleitora, o que importa é o direito positivo e desenho eleitoral, e não o efeito político deste.

    Mas acho que você não entendeu meu ponto: se é para discutirmos o golpe de 2016, o elemento não é a surpresa e alta velocidade. Em primeiro lugar, foi um golpe desmilitarizado que se deu ao longo de 2 anos, começando com o Aécio questionando a institucionalidade do resultado.
    O que proponho, e que acho mais razoável para explicar o evento, é que em termos puramente jurídicos, não há conclusão, nem tão pouco utilidade em se discutir se foi um golpe ou não; logo, caberia somente constatar que “golpe não é só ilegalidade”, e que portanto a correlação de forças nos permite analisar mais a fundo e distinguir (i) o processo político de impeachment, que basicamente foi conduzido pela própria inabilidade da Dilma e do PT; (ii) o caráter ilegítimo do governo Temer.

    A ilegitimidade de Temer não está ligada à um procedimento de impeachment possivelmente fraudulento, mas sim ao fato de que ele desrespeita o resultado eleitoral, pois como eu mesmo disse, há margem para programa de governo e programa de campanha, mas é evidente que Temer não estava nesta margem: é isto que explica sua desaprovação recorde e, o fato de que não havia força política popular para tirá-lo, e uma elite a sustentá-lo, permanecemos nesta situação de um governo ilegítimo que não TOMOU o poder, mais do que o outro JOGOU O PODER NO LIXO.

    Portanto, o que estou dizendo, para além dos pontos que concordamos sem que você tenha percebido, é que no Direito não há resposta se foi golpe, e na ciência política a idéia de golpe fica mais plausível, mas o que realmente define os processos políticos dessa época, e que evidenciam o caráter golpista do processo todo, é a construção da ilegitimidade por um governo que foi eleito.

  13. Agora, a falácia das falsas contradições. O que digo desde sempre é: política é questão de correlação de forças. Só isso. As formas jurídicas, os ritos processuais, obedecem à correlação das forças políticas em conflito. É ingênuo, insisto, considerar que o PMDB inteiro fechava com o programa da chapa encabeçada por Dilma/Temer, assim como é ingênuo achar que o voto é unipessoal, não na chapa. No que diz respeito a um “golpe desmilitarizado que se deu ao longo de 2 anos”, ainda mais ingenuidade: o que se dá “ao longo de 2 anos” são as disputas normais da política, usando-se de todos os meios necessários; ganha, pleonasticamente, quem vencer, não quem respeitar as regras.

    Se o PT não conseguiu manter a correlação de forças a seu favor, paciência, isto é comum na política; se a correlação de forças nos espaços institucionais virou-se ainda mais drasticamente contra os trabalhadores (dizer que Levy e Barbosa não faziam política econômica de austeridade é outra ingenuidade), tanto pior para nós, que não conseguimos estabelecer um contraponto eficaz. É quanto a isto que me preocupo, é disto que quero tirar lições. Não me importa nem um pouco saber se o governo Temer era ou não legítimo (discussão a meu ver inútil).

  14. Agora estamos mais acordados: justamente porque acho inútil a discussão da legitimidade do governo, acho inútil discutir se houve um golpe ou não, em termos conceituais. De forma alguma essa análise me parece produtiva de forma a nos tornar capazes de evitar um próximo evento parecido.
    Quanto à Política ser conflito de interesses, estamos de acordo, e quanto ao direito ser somente forma, também; contudo, para analisar qualquer evento político, especialmente o impeachment, não basta afirmar isso se quisermos entender o que ocorreu: é uma afirmação correta, porém demasiado vaga.
    E negar o “ao longo de 2 anos” por serem “disputas normais” não faz sentido: justamente essas disputas normais, que o PT perdeu, são o que compõem o processo chamado de Golpe (e de impeachment). Se é normal ou não, é irrelevante: é o que se deu e é a concatenação de atos que conduziram o processo – este que é político e se dá também juridicamente (tão óbvio que não cabe discutir).
    As categorias que coloquei para análise, ao meu ver, não são refutadas pelas suas razões que constatam falácias, mas claramente não as “desmascaram”.

  15. Mais ingenuidade: não perceber como a palavra-de-ordem “contra o golpe” foi e tem sido usada entre a esquerda nos últimos 15 anos. Isto se evidencia quando, mais uma vez, não se percebe como são justamente a velocidade e a surpresa, combinados com a quebra da “ordem política” formal, o que define um golpe de Estado; do contrário, toda e qualquer política oposicionista em busca da tomada do poder deveria ser considerada golpista. Mas enfim, cada qual que fique com “sua” verdade.

  16. A ingenuidade agora é tão grande que não consegue perceber algo que vá além dos termos mais rasos e imediatos do debate.

  17. Depois que Manolo escreveu este artigo que não deixou pedra sobre pedra da ideologia do “golpe parlamentar/judiciário/midiático”, o nível da polêmica e dos questionamentos ao autor desceu abruptamente. O que antes era um esforço para legitimar que setores identificados como autonomistas/anarquistas/comunistas revolucionários continuassem sob a hegemonia da social-democracia petista – e abdicassem do hercúleo esforço de abrir um terceiro campo político no Brasil -, descambou para questões de pouca valia para as lutas do presente. Senti que as coisas iam dar nessa esterilidade absoluta quando, em um dos comentários, o ex-presidente Fernando Collor passou a ser um golpeado, segundo o novo enquadramento dado pelos ideólogos do tal “golpe parlamentar/judiciário/midiático”.
    Tirado todo o entulho ideológico, sobrou apenas que o termo Golpe de Estado apenas pode ser usado se incluir violência (prisões, assassinatos), ilegalidade (em relação ao ordenamento jurídico em vigor) e surpresa (antecipação e anulação de qualquer oposição/resistência).
    Livres dessa armadilha gestorial, sigamos em frente que o caminho é longo e a caminhada é dura.

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