Por Edouard Louis

Há alguns dias eu tento escrever um texto sobre e a favor dos Gilets Jaunes[1], mas não consigo. Algo na extrema violência e no desprezo classista que caem sobre este movimento me paralisa, porque, de alguma forma, eu me sinto pessoalmente atingido.

Tenho dificuldade em descrever o choque que eu senti quando vi as primeiras imagens dos Gilets Jaunes aparecerem. Eu vi, nas fotos que acompanharam os artigos, os corpos que quase nunca apareciam no espaço público e midiático, os corpos sofridos, devastados pelo trabalho, pela fadiga, pela fome, pela humilhação permanente dos dominantes sobre os dominados, pela exclusão social e geográfica, eu vi corpos cansados, mãos cansadas, costas esmagadas, olhares exaustos.

A razão para a minha inquietação foi, evidentemente, a minha aversão à violência do mundo social e às desigualdades, mas também, e talvez acima de tudo, porque esses corpos que eu vi nas fotos pareciam os corpos do meu pai, do meu irmão, da minha tia… Eles pareciam os corpos da minha família, dos habitantes da pequena cidade onde vivi durante a minha infância, dessas pessoas com a saúde devastada pela miséria e pela pobreza, e que sempre repetiam, precisamente: “não contamos com ninguém, ninguém fala da gente” – daí o fato que me fez sentir pessoalmente afetado pelo desprezo e pela violência da burguesia que imediatamente caíram sobre este movimento. Porque, em mim, para mim, cada pessoa que insultava um colete amarelo insultava o meu pai.

Imediatamente após o surgimento deste movimento, vimos na mídia os “experts” e os “políticos” diminuir, condenar, zombar dos Gilets Jaunes e da revolta que eles encarnam. Vi nas redes sociais as palavras “bárbaros”, “babacas”, “caipiras”, “irresponsáveis”. A mídia falava do “rosnado” dos Gilets Jaunes: as classes populares não se revoltam, não, eles rosnam, como as bestas. Eu ouvia falar sobre a “violência desse movimento” quando um carro estava queimado ou quando uma vitrine era quebrada, uma estátua era degradada. Fenômeno usual da percepção diferencial da violência: uma grande parte do mundo político e midiático quer que acreditemos que a violência não é esta de milhares de vidas destruídas e reduzidas à miséria pela política, mas alguns carros queimados. É necessário nunca ter conhecido a miséria para ser capaz de pensar que uma tag sobre um movimento histórico é mais relevante do que a impossibilidade de se cuidar, de viver, de se alimentar ou de alimentar a própria família.

Os Gilets Jaunes falam da fome, da precariedade, da vida e da morte. Os “políticos” e uma parte dos jornalistas respondem: “os símbolos da nossa República foram degradados”. Mas do que essas pessoas estão falando? Como elas se atrevem? De onde elas vêm? A mídia também fala do racismo e da homofobia dos Gilets Jaunes. De quem eles estão zombando? Eu não quero falar dos meus livros, mas é interessante notar que a cada vez que eu publiquei um romance, fui acusado de estigmatizar a França pobre e rural exatamente porque evoquei a homofobia e o racismo presentes na pequena cidade da minha infância. Jornalistas que nunca tinham feito nada para as classes populares se indignaram e, de repente, passaram a se fazer de defensores das classes populares.

Para os dominantes, as classes populares representam a classe-objeto por excelência, para usar a expressão de Pierre Bourdieu; objeto manipulável do discurso: autênticos bons pobres num dia, racistas e homofóbicos no dia seguinte. Nos dois casos, a vontade subjacente é a mesma: impedir a emergência da voz das classes populares, que fale das classes populares. Tanto faz se é necessário se contradizer logo em seguida, desde que se calem.

Edouard Louis e Assa Traoré no Ato IV dos Gilets Jaunes

Claro, houve propostas e gestos homofóbicos e racistas no seio dos Gilets Jaunes, mas desde quando esses médios de comunicação e esses “políticos” se preocupam com o racismo e com a homofobia? Desde quando? O que eles fizeram contra o racismo? Eles usam o poder que eles têm para falar de Adama Traoré[2] e do Comitê Adama? O que eles estão falando da violência policial que recai todos os dias sobre os negros e os árabes na França? Eles não deram um palanque à Frigide Barjot[3] e ao Monsenhor sei-lá-quem no momento do “casamento para todos”[4] e, ao fazê-lo, será que eles não fizeram da homofobia possível e normal nos programas de televisão?

Quando as classes dominantes e alguns meios de comunicação falam da homofobia e do racismo no movimento dos Gilets Jaunes, eles não falam nem da homofobia nem do racismo. Eles dizem: “pobres, calem-se!”. Além disso, o movimento dos Gilets Jaunes ainda é um movimento a ser construído, sua linguagem ainda não está determinada: se existe homofobia ou racismo entre os Gilets Jaunes, é nossa responsabilidade transformar essa linguagem.

Há maneiras diferentes de dizer: “eu sofro”: um movimento social é exatamente o momento quando se abre a possibilidade para aqueles que sofrem não dizerem mais: “eu sofro por causa da imigração e da minha vizinha que participa dos programas sociais”, mas sim: “eu sofro por causa daquelas e daqueles que governam. Eu sofro por causa do sistema de classe, eu sofro por causa de Emmanuel Macron e Edouard Philippe”[5]. O movimento social é um momento de subversão da linguagem, um momento em que as linguagens antigas podem vacilar. Isto é o que está acontecendo hoje: assistimos há alguns dias a uma reformulação do vocabulário dos Gilets Jaunes. No início, nós só ouvimos falar da gasolina e, às vezes, palavras desagradáveis, como “os assistidos”[6], apareciam. Agora ouvimos as palavras desigualdadesaumento dos saláriosinjustiças.

Este movimento deve continuar, pois encarna algo justo, urgente, profundamente radical; porque rostos e vozes que são geralmente relegados à invisibilidade estão finalmente visíveis e audíveis. O combate não será fácil: como podemos ver, os Gilets Jaunes representam uma espécie de teste de Rorschach para uma grande parte da burguesia; eles forçam a burguesia a expressar o seu desprezo de classe e a sua violência, que geralmente só os expressam de maneira indireta, aquele desprezo que destruiu tantas vidas ao meu redor, que continua a destruí-las e, cada vez mais, esse desprezo que me reduz ao silêncio e que me paralisa ao ponto de não conseguir escrever o texto que eu gostaria de ter escrito para expressar o que gostaria de expressar.

Mas nós devemos vencer: somos muitas e muitos dizendo uns para os outros que não podemos carregar mais uma derrota para a esquerda e, portanto, para aquelas e aqueles que sofrem.

Édouard Louis é um jovem escritor francês. A thread foi publicada no dia 4 de dezembro e traduzida pelo Passa Palavra a partir da versão definitiva por recomendação do próprio autor.

Notas da tradução:

[1] Gilets Jaunes pode ser traduzido por “coletes amarelos”. O movimento ganhou tal apelido devido à vestimenta que todo motorista francês deve levar em seus veículos a ser utilizada em caso de acidente. Os manifestantes passaram a vestir coletes amarelos em todas as manifestações desde então.

[2] Adama Traoré foi um jovem negro morto, em 2016, de forma brutal e covarde pela polícia francesa. Sua morte desencadeou uma onda de protestos na França e se tornou um marco na luta contra a violência policial.

[3] Frigide Barjot, cujo nome real é Virginie Merle, é a líder do movimento conservador Manif pour Tous (Protesto para Todos).

[4] Mariage pour tous (casamento para todos) é uma referência à lei de 2013 que autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em toda a França.

[5] Emmanuel Macron é o atual presidente da França e principal alvo dos protestos dos Gilets Jaunes; Edouard Philippe é o primeiro-ministro francês indicado pro Macron.

[6] Les assistés (os assistidos) são as pessoas que vivem das assistências sociais fornecidas pelo Estado.

 

10 COMENTÁRIOS

  1. Cada vez mais evidente que o Passa Palavra, ao tentar abarcar a complexidades deste movimento, está errando ao publicar textos pouco analíticos; a conclusão do texto, a direta associação entre esquerda e os que sofrem, assim como a menção à homofobia, são pontos importantes que poderiam estar sendo trabalhados, mas o texto simplesmente parece recusar a profundidade destes.
    A indignação contra a mídia e a capacidade da elite burguesa pintar o movimento popular (ainda que não de esquerda, como em dado momento reconhece o texto), é patética, convenhamos, pois não há novidade alguma nisso – é um gesto recorrente nos últimos 150 anos de imprensa pelo menos. O problema que deveria ser analisado é a resposta do movimento, em razão de sua estrutura horizontal; foi correta? Fez diferença? Ajudou ou piorou a luta?

    A esquerda precisa parar de se surpreender com as formas de opressão que sofre; são antigas, mas eficazes. Espaços como este deveriam ser analíticos, acima de tudo, e infelizmente parece que as pessoas insistem em utilizar um tom belicoso, melodramático quase, assim como parecem sempre constatar o óbvio: ninguém está do lado dos pobres, nada virá para os ajudar. Não adianta gastar tinta nessas defesas desses movimentos, mas sim em tirar alguma lição deles.

  2. Caro Júlio.
    O texto coloca claramente a falsa perplexidade de alguém de esquerda que identificando um movimento eminentemente popular com uma visão que se encaixa perfeitamente na proposta de Chantal Mouffe, Ernesto Laclau e surpreendentemente Jean Luc Mélenchon de uma ação do baixo versus o alto, que estes teóricos do populismo de esquerda enxergam como o futuro da mobilização. E surpreendentemente ficam todos estarrecidos, porque o colete é amarelo e não vermelho, mas as reivindicações são claramente de esquerda.
    Inclusive a observação que colocas “pintar o movimento popular (ainda que não de esquerda” que é verdadeiramente patética, pois então vejamos as reivindicações dos coletes amarelos:
    Alojamento URGENTE para todos sem.
    Imposto de renda mais progressivo.
    Aumento do salário mínimo SMIC 1300 euros líquidos.
    Favorecer o pequeno começo das aldeias e dos centros das cidades. Parar a construção de grandes centros de vendas + estacionamento gratuito nos centros das cidades.
    Programa de isolamento térmico das casas ( diminui o consumo = economia das famílias e ecologia).
    Fazer o grande atacado pagar imposto (Macdonalds , Google, Amazon, Carrefour …) e isntar os pequenos artesãos.
    Mesmo sistema de previdência social para todos (incluindo artesãos e empresários). Fim do RSI.
    O sistema previdenciário deve permanecer solidário e, portanto, socializado. (Nenhum ponto de aposentadoria).
    Fim do aumento de impostos sobre o combustível.
    Não há aposentadoria abaixo de 1.200 euros.
    Qualquer representante eleito terá direito ao salário médio. Seus custos de transporte serão monitorados e reembolsados ​​se forem justificados.
    Os salários de todos os franceses, bem como pensões e subsídios, devem ser indexados à inflação.
    Protegendo a indústria francesa: proibindo a relocação.
    Fim do trabalho autônomo de estrangeiros da CE sem que pague o mesmo que os trabalhadores franceses pagam.
    Para segurança no emprego: limitar ainda mais o número de contratos por tempo determinado. Mais contratos por tempo permanente (CDI).
    Fim do CICE (incentivo a grande indústria). Usar esse dinheiro para o lançamento de uma indústria francesa de carros a hidrogênio (que são verdadeiramente ecológicos, ao contrário do carro elétrico).
    Fim da política de austeridade. Estamos parando de reembolsar os juros da dívida que é declarada ilegítima e estamos começando a pagar a dívida sem pegar o dinheiro dos pobres e dos mais pobres, mas buscando os US $ 80 bilhões em evasão fiscal.
    Que as causas da migração forçada sejam tratadas (exemplo contratos de livre comércio com países subdesenvolvidos).
    Que os requerentes de asilo sejam bem tratados. Nós lhes devemos moradia, segurança, comida e educação para as crianças. Trabalhar com a ONU para ter campos de acolhimento abertos em muitos países em todo o mundo, enquanto se aguarda o resultado do pedido de asilo.
    Que os requerentes de asilo sem sucesso sejam devolvidos ao seu país de origem.
    Que uma política de integração real é implementada. Viver na França significa tornar-se francês (curso de francês, curso de História da França e curso de educação cívica com certificação no final do curso).
    Salário máximo fixado em 15.000 euros.
    Que empregos são criados para os desempregados.
    Aumento de licenças desativadas.
    Limitação de aluguéis. + habitação de renda moderada (especialmente para estudantes e trabalhadores precários).
    Proibição de vender propriedade pertencente à França (barragem do aeroporto …)
    Meios substanciais concedidos ao sistema judiciário, à polícia, à gendarmaria e ao exército. Que as horas extras da aplicação da lei sejam pagas ou recuperadas.
    Todo o dinheiro ganho pelos pedágios das rodovias será usado para manter rodovias e estradas na França e segurança nas estradas.
    Como o preço do gás e da eletricidade aumentou desde a privatização, queremos que eles se tornem públicos novamente e os preços caiam significativamente.
    Encerramento imediato de pequenas filas, correios, escolas e maternidades.
    Vamos levar bem-estar aos nossos idosos. Proibição de ganhar dinheiro com os idosos. O ouro cinza está acabado. A era do bem-estar cinzento começa.
    Máximo de 25 alunos por turma, do jardim de infância ao 12º ano.
    Meios substanciais trazidos à psiquiatria.
    O Referendo do Povo deve entrar na Constituição. Criação de um site legível e eficaz, supervisionado por um órgão de controle independente, onde as pessoas podem fazer uma proposta de lei. Se este projeto obtiver 700.000 assinaturas, este projeto terá que ser discutido, completado, emendado pela Assembléia Nacional, que terá a obrigação (de um ano para o dia depois de obter as 700.000 assinaturas) para submetê-lo. à votação de todos os franceses.
    De volta a um mandato de 7 anos para o Presidente da República. (A eleição de deputados de dois anos após a eleição do Presidente da República permissão para enviar um sinal positivo ou negativo para o presidente em suas políticas. Portanto, participando da voz do povo.)
    Aposentadoria aos 60 anos e para todos aqueles que trabalharam em um comércio usando o corpo (pedreiro ou tesão por exemplo) direito a aposentadoria aos 55 anos.
    Uma criança de 6 anos não se mantém sozinha, continuação do sistema de ajuda do PAJEMPLOI até a criança completar 10 anos.
    Promover o transporte de mercadorias por via férrea.
    Nenhum imposto retido na fonte.
    Fim dos subsídios presidenciais para a vida.
    Proibir pagar impostos a comerciantes quando seus clientes usam o cartão de crédito. -Aumente o óleo combustível marítimo e o querosene.
    .
    .
    Meu caro, se há dúvidas quanto aos coletes amarelos serem de esquerda, então não sei mais o que é esquerda.

  3. Caro Rogério,

    Permita-me discordar, não das pautas elencadas, as quais algumas sim identifiquei por imagens ou textos sobre eles – e outras duvido um pouco que sejam reivindicadas pela maioria do movimento -, mas sim da própria forma do movimento: o movimento é popular e evidentemente nasceu de um setor que, para além de uma indignação pontual, estava protestando contra tudo que, de certa maneira, foi gradualmente instaurado na última década na França e levou o povo francês a um tipo de eleição que não efetivamente representa a vontade do povo. Apesar da surpresa do En Marche, em termos eleitorais, a própria eleição, da forma como se deu, já anunciava que Macron não tinha uma verdadeira base de governo, tampouco experiência; agora paga o preço, depois de ter tido uma “carta branca” nos primeiros momentos de seu governo.
    O que me incomoda profundamente no texto, e não somente nesse, é que em primeiro lugar não vejo análise da consequência política do movimento, como também não vejo argumentos e narrativa articuladas pelos integrantes sobre o estado atual do movimento, nem seu futuro. De modo geral, vejo uma repetição de uma forma de protesto que, vem a calhar, em especial por causa da inabilidade de Macron que (i) não deveria ter feito concessões tão rapidamente, (ii) não deveria ter ignorado/se recusado a dialogar durante tanto tempo, e (iii) não deveria ter reprimido com veemência depois de ter cedido chão, nem expostos aqueles estudantes.
    Ou seja, basicamente, se há pautas de esquerda, assim como suponho que haja pautas equivocadas vistas como respostas, dada a natureza do movimento, o grande problema é como esse movimento de fato concretizará essas pautas; será ele capaz de pautar o progresso que pretende?

    Não vejo a esquerda pensando nisso, discutindo nisso, nem tirando lições deste e dos movimentos que aconteceram nos últimos dez anos. Na verdade, pouco vejo em se tratando de um saldo político, para que a reflexão ajude a melhorar a eficiência das formas de luta que se deram nesses anos passados. Muito provavelmente, fosse Macron um político, e não um inexperiente tecnocrata liberal, já teria contornado tranquilamente este movimento, dado os exemplos fracassados de outros, como o nosso 2013.

    Enfim, não é nosso papel ficar nesse tipo de texto simplesmente denunciando as formas com que a elite combate a esquerda, pois como já disse, elas são velhas e eficazes. A questão é conseguir responder perguntas pragmáticas sobre como tornar o movimento mais eficiente e capaz de concretizar suas demandas.

  4. Há algum tempo já que eu tinha vontade de escrever uma crítica aos artigos acerca dos Gilets Jaunes, os Coletes Amarelos, publicados no Passa Palavra. Achei que o primeiro comentário de Júlio resolvia o problema e não pensei mais nisso. Mas agora, vendo o comentário de Rogério D Maestri e o novo comentário de Júlio, não resisto a dizer três coisas.

    1) Desde há muitos anos, exactamente desde 1974, tenho defendido que o aspecto determinante nas lutas não é o das reivindicações mas o das formas de organização. Ora, manifestações, quer pacíficas quer violentas, a) convocadas pelas redes sociais e restritas ao espaço formado por ruas e praças, e b) não pressupondo qualquer outro tipo de contactos inter-pessoais, nem em empresas nem em escolas ou universidades, têm-se revelado, em todos os países, facilmente recuperáveis pela extrema-direita e pelos fascistas. No Brasil, por exemplo, foi o tipo de manifestação que foi recuperado; em França, onde o processo se tem alongado temporalmente, é o próprio desenrolar do processo que está a ser recuperado.
    A experiência histórica mostra que a forma de luta mais imune às recuperações é a que assenta nos lugares de produção, uma forma de luta baseada não nas redes sociais e nos espaços urbanos, mas no colectivo dos trabalhadores de uma empresa ou dos estudantes de um estabelecimento de ensino.
    Como se resolve, porém, esta questão na época da uberização da economia, da terceirização e da dispersão da força de trabalho? Este é o grande desafio que a forma actual de capitalismo coloca à classe trabalhadora, e que ela não tem sido capaz de resolver. Por isso o movimento dos Gilets Jaunes pôde ir progressivamente mudando de características, sendo o seu eixo marcado agora a) pela extrema-direita e os fascistas seguidores tanto de Marine Le Pen como de Marion Maréchal e b) pela esquerda nacionalista e populista, que aliás tem em França uma longa tradição.

    2) Quanto às reivindicações, e precisamente porque considero que elas são sempre secundárias, limito-me a um resumo. Mas basta olhar a longuíssima lista composta por Rogério D Maestri para concluir que a) nenhum movimento social avança com 42 reivindicações (se é que não me enganei a contá-las) e b) há ali de tudo.
    No que diz respeito aos comerciantes, aos artesãos e às pequenas oficinas essas reivindicações fazem eco ao que foi o movimento fascizante de Pierre Poujade na década de 1950, e cujos temas permanecem enraizados nesse meio social.
    No que diz respeito à indústria, são nacionalistas: contra a relocalização e a favor de subsídios estatais às empresas nacionais.
    No que diz respeito aos trabalhadores, são anti-imigrantes: se os imigrantes recebessem o mesmo que o trabalhadores nacionais as fronteiras ficar-lhes-iam fechadas, ou seja, os trabalhadores franceses dos Gilets Jaunes lutam contra a concorrência que lhes é feita pela mão-de-obra estrangeira mais pobre; manutenção em campos de concentração das pessoas que pediram asilo e repatriamento daqueles a quem o asilo foi negado; contratos de livre comércio com países subdesenvolvidos, para manter os potenciais imigrantes nos seus países de origem.
    Nacionalismo exacerbado, como se vê pela tentativa de imposição obrigatória da cultura francesa aos imigrantes (em vez de uma progressiva fusão das várias origens culturais no interior de uma mesma classe trabalhadora).
    Tema da corrupção, que tem sido sempre uma das palavras-de-ordem dos fascistas, destinada a promover novas elites políticas.
    Herança bonapartista do referendo (que nada tem a ver com a democracia directa).

    3) Não espanta que alguém da extrema-direita fascizante, como Trump, tivesse manifestado o seu apoio ao Gilets Jaunes. E hoje mesmo fizeram o mesmo as duas principais figuras do governo italiano, o fascista Salvini e o neo-fascista Di Maio.

  5. Caro João,

    Permita-me algumas dúvidas acerca do tema da forma de militância. Você concorda que a esquerda hoje peca na falta de pragmatismo? E se sim, essa falta de objetividade quanto às formas de luta e eficiência destas é resultante do que? Para mim, há uma latente falta de análise acerca dos métodos empregados pela esquerda contemporânea em termos práticos (o que funciona? Por que funcionou? O que deu errado? Como corrigir?). Por vezes me pergunto se trata-se de uma falta de capacidade de análise, um sucateamento da própria formação marxista da militância em geral; ou talvez, não seja essa análise que seja o problema, mas um olho destreinado para a ação política de curto prazo?

    Enfim, não consigo diagnosticar minha própria impressão sobre a falta de pragmatismo nas lutas da esquerda contemporânea; porque o mundo em si não me parece “proporcionalmente” mais complexo ou desafiador hoje do que no século XX, ainda que traga suas novidades.

  6. Caro Julio,

    Não entendo bem o seu comentário e sobretudo não entendo de que forma ele se relaciona com as minhas observações acerca dos Coletes Amarelos, porque eu referi-me não às formas de militância, mas às formas de organização social adoptadas nas lutas. Considero que nas lutas sociais o elemento determinante não é de carácter ideológico (no caso dos Coletes Amarelos, as reivindicações), mas de carácter social (o tipo de organização social que a luta adopta ou é levada a adoptar). Quanto à esquerda, na acepção ideológica do termo, remeto para o meu último texto, publicado em Junho de 2017 neste site, Sobre a Esquerda e as Esquerdas: http://passapalavra.info/2017/06/112576/ Terminei assim essa constatação de um fracasso: «Para reconstruir uma esquerda anticapitalista ou, mais exactamente, para reconstruir o anticapitalismo no espaço que hoje se denomina esquerda, temos de partir quase do zero». Tive depois oportunidade de escrever num qualquer comentário, não me recordo qual, que nem se trata do zero Celsius, mas do zero Kelvin.

  7. Um amigo enviou-me nesta terça-feira um artigo de Roman Bornstein, «En immersion numérique avec les “gilets jaunes”», publicado no site da Fondation Jean Jaurès ( https://jean-jaures.org/nos-productions/en-immersion-numerique-avec-les-gilets-jaunes ). Eu diria que este artigo devia ser para todos nós uma leitura obrigatória se não estivesse escrito em francês, e mesmo para aqueles que sabem uma língua estrangeira o francês perdeu há muitos anos o estatuto de língua universal. Quem sabe se algum voluntário entusiasta se disporá a traduzi-lo?

    Roman Bornstein procede a uma análise detalhada e minuciosa das formas de relacionamento social dos Gilets Jaunes (Coletes Amarelos) e da sua evolução ao longo do tempo. E mostra como estas formas de relacionamento têm sido condicionadas pela forma de utilização das redes sociais, nomeadamente o Facebook, e pela forma como as redes sociais determinam a sua utilização. Este nexo é especialmente interessante, porque as influências operam nos dois sentidos. «Deste duplo enclausuramento ideológico e informativo», considera Roman Bornstein, «resulta naturalmente um progressivo distanciamento da realidade».

    Nessa teia montada graças ao Facebook ocorreu uma infiltração paulatina, e depois o controle da expressão pública do movimento, por um número reduzido de pessoas que até então haviam ecoado o grande tema actual da extrema-direita e do fascismo europeus — a campanha contra a imigração. Além deste tema — que se encontra entre as 42 reivindicações enunciadas na lista de um comentário acima, e que só uma grande ingenuidade ou uma distracção maior ainda pode classificar como sendo de esquerda — deparamos também com o inevitável anti-semitismo e com a noção do sistema financeiro com a raiz de todos os males. Não importa que já Franz Neumann, no seu Behemoth, tivesse prevenido que «sempre que os protestos contra a hegemonia do capital bancário permeiam os movimentos populares, temos o indício mais claro da aproximação do fascismo». Ao contrário do que pensam os optimistas, as lições da história servem sobretudo para esquecer. Neste contexto, é muito importante a comparação que Roman Bornstein faz com a plataforma na internet do Movimento 5 Estrelas, e que serviu para estruturar este partido neofascista e para levá-lo ao governo italiano. Em conclusão, referindo-se aos Coletes Amarelos, Bornstein escreve: «Se, individualmente, nem todos eles vêm da extrema-direita, para lá se dirigem colectivamente».

    Repito. É um estudo indispensável, e quem não souber francês talvez tenha uma vizinha que saiba, enquanto não aparecer alguém que o traduza para o Passa Palavra.

  8. Caro João Bernardo,
    Estou entre os que não leem francês, e minha vizinha que lia faleceu (ainda assim pressionarei amigos para traduzir).
    Meu comentário é sobre sua colocação anterior, você afirmou que “assenta nos lugares de produção, uma forma de luta baseada não nas redes sociais e nos espaços urbanos,”. Entretanto não podemos considerar o espaço urbano um local da produção? Me parece que é um espaço produtivo compartilhados por trabalhadores de diferentes empresas, por isso me parece que há uma possibilidade de desenvolvimento de luta desses trabalhadores nesse espaço.
    Também me pergunto em quais espaços, na sociedade atual, se dão as sociabilidades entre os trabalhadores? Por que me parece que sempre esses espaços de sociabilidade foram fundamentais para formar as ações coletivas de classe, sejam eles os banquetes fraternais, os botecos, o futebol do bairro, entre outros. Me parece indubitável que uma parte dessa sociabilidade migrou para espaços virtuais, e concordo contigo que as mobilizações que usam esses espaços tem se mostrado facilmente cooptáveis, contudo, me parece que não é possível o abandono desses espaços porque neles também se forma a classe.

  9. Meu caro,

    O problema que você coloca é hoje muito complexo porque, se o toyotismo já fizera com que as relações de trabalho extravasassem os edifícios das empresas, a uberização deu maiores dimensões a este processo. Trata-se de um campo em que as certezas são demasiado escassas, e precisamos de estar atentos à acumulação de novas experiências práticas. Mas alguma coisa se pode adiantar.

    Assim como o computador cumpre três funções — instrumento de trabalho, instrumento de lazer e instrumento de fiscalização, sendo esta terceira função simultânea de qualquer das outras — também sucede o mesmo com os espaços urbanos. Para a questão que você formula, porém, o factor decisivo é a existência, ou não existência, de um relacionamento próprio, anterior à relação estabelecida no espaço urbano e mais durável do que ela. Para me ater aos seus exemplos, os banquetes fraternais durante a revolução francesa pressupunham relações de vizinhança, que naquela época eram mais estreitas do que agora; do mesmo modo, um jogo de futebol de bairro pressupõe que as pessoas já se conheçam e de alguma forma treinem antecipadamente; quanto aos botecos, eles cumprem as mesmas funções que as associações de bairro, são o centro logístico de relações sociais, que muito facilmente podem converter-se em relações de luta. Nestes casos o factor principal é a existência de uma rede de relações já tecida anteriormente. O caso das Primaveras Árabes parece-me um exemplo flagrante: muita gente nas ruas, mas sem elos sociais que permitissem prolongar as manifestações em algo mais sólido. E assim, as Primaveras Árabes tiveram como consequência a instalação de regimes ainda mais repressivos do que os existentes anteriormente, com a excepção da Tunísia, em que tudo ficou na mesma.

    Em conclusão, as manifestações nos espaços urbanos não se convertem por si só em lutas nos espaços de trabalho, entendidos ou como espaços físicos ou como relações de trabalho mediante a internet. É aqui que o artigo de Roman Bornstein, citado no meu comentário de ontem, me parece esclarecedor, porque mostra como um relacionamento restrito às redes sociais condiciona as formas de relacionamento na luta. É um estudo modelar, no sentido literal, quero dizer que é um estudo que deve servir de modelo a outros que se realizem.

    Para ilustrar a articulação entre, por um lado, espaços virtuais e urbanos e, por outro lado, relações de trabalho na sociedade contemporânea, vou transcrever algumas mensagens, recebidas em meados de 2017, de uma pessoa que estava a trabalhar na Uber e me descreveu formas práticas de resistência usadas por ele e pelos seus colegas. Já citei essas mensagens em comentários a outros artigos, mas reproduzo-as agora de novo: «[…] estou trabalhando cerca de 1 mês e dez dias lá (é a alternativa que arrumei além de uns bicos) […] A cada viagem que fazemos 25% fica com a Uber, se fizermos uma viagem de 100 reais eles ficam com 25 reais, além disso gastamos uns 30% em média de gasolina, sobra uns 45% pra nós, é claro que tem outros gastos na manutenção do carro (alinhamento/balanceamento de pneus, troca de óleo, lâmpadas de farol, pacotes de internet, limpeza do carro, pastilhas de freio, enfim várias coisas que podem surgir), eles fornecem passageiros através do aplicativo, nós entramos com o carro e a gasolina, e a relação é essa […] Neste pouco tempo ainda de trabalho na Uber, vejo que os motoristas tem várias visões, uns vêem claramente como uma exploração, outros dão graças a Deus por existir a Uber (são pessoas que saíram de empregos com baixíssimos salários ou eram desempregados), eu me incluo nessas duas visões também, claro que não dou graças a Deus, mas já estava muito tempo desempregado e os juros das contas não esperam, o foda é que nesse desemprego aceita-se muita coisa, reclama-se mas é num tom baixinho. Nós nos comunicamos muito por grupos de whatts zap, são uns 250 motoristas quase por grupo, e reunimos em um estacionamento na … (que chamamos de “sindicato” hahaha), esses grupos são importantes tanto pra sabermos os melhores pontos, quanto para pedidos de ajuda, vejo como algo mutualista, a galera inclusive chama de “ajuda mútua”, se o seu carro quebrar, ou se roubarem seu carro seu celular ou sua grana, o pessoal te socorre, tem até aplicativo pra monitorar alguns motoristas que vão fazer uma corrida em algum lugar mais perigoso aqui, enfim tem muita solidariedade também, mas não chega ao nível de reivindicação sindical mais diretamente […]».

    Em 15 de Novembro de 2018 a revista The Economist, uma das expressões mais lúcidas do grande capital transnacional, mostrava-se preocupada com o declínio dos sindicatos e analisava com detalhe as plataformas que estão a ser criadas na internet, destinadas ao estabelecimento de relações de solidariedade entre os trabalhadores e à planificação de lutas nas empresas: https://www.economist.com/briefing/2018/11/15/technology-may-help-to-revive-organised-labour Artigos como este de The Economist e como o de Roman Bornstein, já referido, devem ser estudados com muita atenção, se quisermos aproximar-nos da resolução do problema que você coloca.

  10. Pegando o gancho desse último comentário do João Bernardo, George Soros parece que vai na mesma linha do liberalismo do Economist, fomentando a organização transnacional dos motoristas de aplicativos.

    “Terminou ontem (30/1) a primeira convenção internacional de associações e sindicatos de motoristas de aplicativos na pequena cidade de Thame, perto de Oxford, Inglaterra. Com 60 representantes de 23 países e seis continentes, a reunião foi organizada para iniciar uma rede de colaboração e desenvolver estratégias globais para enfrentar as empresas de plataforma.

    A partir do evento, foi criada a International Alliance of App-Based Transport Workers (IAATW), cujo manifesto será publicado em breve. A convenção foi sediada pelo Independent Workers Union of Great Britain (IWGB) e apoiada pela Open Society.”

    https://mailchi.mp/uol/digilabour-51

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