Passa Palavra entrevista Omar Vázquez Heredia*

 

Passa Palavra: No campo estritamente econômico, tendo em conta a dependência da economia venezuelana frente ao petróleo e a instabilidade no setor (flutuação nos preços internacionais do barril, pré-sal, petróleo de xisto, atuação recente da OPEP etc.), pode-se dizer que a crise venezuelana atual resulta exclusivamente dos problemas na PDVSA? Ou há outros fatores?

Omar Vázquez Heredia: A crise atual que atinge a Venezuela não surge por problemas exclusivamente relacionados com a PDVSA. Na realidade, a enorme redução da extração de petróleo por parte da indústria petroleira venezuelana foi ocasionada pelas medidas estatais que geraram a crise econômica. De 2003 a 2012, através de um controle de câmbio estatal, o governo de Hugo Chávez promoveu a articulação da acumulação e entesouramento no exterior do capital-dinheiro das classes dominantes e o consumo das classes populares mediante o incremento vertical e tendencial das importações privadas e governamentais. Isso a partir do estabelecimento de um tipo de câmbio oficial extremadamente sobrevalorizado. Esse financiamento e subsídio das importações privadas e governamentais permitiram altos níveis de lucratividade dos empresários e altos burocratas estatais que depois foram remetidos ao exterior.

Então, quando ocorreu uma queda do preço do petróleo em 2009, iniciou-se um grande endividamento do Estado e um consumo das reservas internacionais para financiar essa fuga de capitais, a compra estatal de empresas privadas a preço de mercado ou com sobrepreço e a continuidade de altos níveis de importações. O grande legado econômico de Hugo Chávez, quando Nicolás Maduro chegou à presidência, foi uma gigantesca dívida externa estatal e uma diminuição de reservas internacionais. Entre esta dívida externa estatal havia os passivos da PDVSA, que foi arruinada porque desde 2003 até 2009 foi forçada a vender os dólares obtidos pelas exportações petrolíferas nesse tipo de câmbio oficial sobrevalorizado de que falei antes. O que fez Nicolás Maduro com este legado econômico? Decidiu manter o controle cambial e reduzir de maneira unilateral a quantidade de dólares destinados às importações, para dispor destes recursos para o pagamento ao capital financeiro mundial de bilhões em dívida externa. Essa contração da importação de bens de consumo produtivo e consumo final provocou um desabastecimento do mercado local, que resultou e resulta em altos níveis de inflação. Mas, além disto, esta redução unilateral da importação de insumos produtivos afetou as capacidades operacionais da PDVSA e agravou a crise econômica ao diminuir a extração de petróleo no país.

PP: Os setores oposicionistas de direita ao regime maduro radicam-se em que setores da economia? De que forma os governos de Chávez e Maduro, por assim dizer, “atrapalharam seus negócios”?

OVH: A oposição conservadora a Nicolás Maduro não se encontra em setores pontuais da economia, simplesmente querem apropriar-se diretamente da receita petrolífera e estabelecer uma sociedade na qual predominem a privatização e a mercantilização dos serviços públicos, empresas estatais e bens naturais comuns. Para isto, necessitam do controle do aparato do Estado petrolífero da Venezuela, e por isso querem derrubar Nicolás Maduro.

No período de Hugo Chávez o capital petrolífero transnacional foi parcialmente afetado com a passagem dos convênios operacionais às empresas mistas e o aumentọ da alíquota cobrada pelos royalties petrolíferos. Nasce aí o conflito com os Estados Unidos. No período de Nicolás Maduro foram parcialmente atingidas as importações privadas, porque a diminuição dos dólares destinados às importações e sua indicação unilateral para o Estado, produto do controle do câmbio, fizeram com que se privilegiasse parcialmente os negócios dos empresários chavistas e dos altos burocratas governamentais.

PP: Qual o grau de unidade entre os setores oposicionistas de direita na Venezuela? Há disputas internas dentro destes setores?

OVH: Atualmente a unidade é muito grande, e as diferenças políticas são desestimuladas porque [os opositores] dão prioridade à derrubada de Nicolás Maduro e ao respaldo majoritário da sociedade a Juan Guaidó. Antes houve diferenças quanto ao estabelecimento de um governo paralelo na Venezuela com a autoproclamação de Juan Guaidó, mas agora todos assumiram essa estratégia política traçada pelos Estados Unidos.

PP: Existe oposição de esquerda significativa ao governo Maduro? Quem a compõe?

OVH: O movimento chavista conseguiu subordinar a imensa maioria das organizações e dos militantes populares; nos últimos anos é que teve início uma ruptura em massa, que em algumas ocasiões permite o crescimento de uma oposição de esquerda. Na realidade, a oposição de esquerda é muito pequena, pois além de tudo existe um clima político anticomunista por causa do ódio ao governo de Nicolás Maduro e do discurso reacionário da oposição de direita. São parte destes setores, em sua maioria, organizações trotskistas e guevaristas. Como o Partido Socialismo e Liberdade[1], a Liga de Trabalhadores pelo Socialismo[2], Maré Socialista[3], entre outros.

PP: O madurismo é uma continuidade ou uma ruptura com o chavismo? Existem setores chavistas que se opõem ao governo Maduro? Se houver, quais são os pontos de divergência?

OVH: O madurismo é o chavismo em crise. Não há grandes diferenças históricas, Hugo Chávez apenas expressou altos preços do petróleo com um aumento parcial do controle estatal da receita petrolífera e um processo de mobilização popular; e, ao contrário, Nicolás Maduro expressa baixos preços do petróleo com enormes níveis de endividamento estatal e um retrocesso na autonomia da mobilização popular, já que essa foi subordinada pela liderança de Hugo Chávez. Portanto, o chavismo reproduzia a ordem dominante a partir de mecanismos consensuais, como o incremento do consumo popular sustentado por importações, e o madurismo reproduz a ordem dominante através do corte das liberdades democráticas e políticas sociais focalizadas de contenção social, como os CLAP[4] e as bonificações dos carnê da pátria[5].

Há setores denominados chavistas críticos que se opõem a Nicolás Maduro; sua divergência é o uso da repressão estatal e a entrega de bens comuns e ativos estatais ao capital transnacional, como por exemplo o Arco Mineiro do Orinoco[6] e os novos convênios operacionais entre a PDVSA e transnacionais petrolíferas. A desorientação do chavismo crítico é clara, e sua identificação com Hugo Chávez tem uma carga emocional. Uma amostra é que questionam o pagamento da dívida externa por Nicolás Maduro, mas essa carga financeira é um legado de Hugo Chávez, e sobre isso não dizem nada. Ademais, questionam o Arco Mineiro do Orinoco, uma proposta de Hugo Chávez que, devido ao seu falecimento prematuro, teve de ser executada por Nicolás Maduro.

PP: Os atos de rua a favor e contra o governo Maduro chamam a atenção pela quantidade de manifestantes, mas até que ponto é possível “medir” o apoio e a rejeição ao governo Maduro com base neles?

OVH: Nós que vivemos na Venezuela sabemos da enorme rejeição ao governo Nicolás Maduro. Na rua, no transporte coletivo e nos comércios só se escutam manifestações desse repúdio popular. As manifestações da oposição de direita são enormes e as do governo Maduro são muito pequenas. Eu fui sábado passado [02/02/2019] à manifestação do governo Maduro na Avenida Bolívar, em Caracas, e ela só ocupou um quarteirão, foi muito pequena apesar das distorções que os meios de comunicação estatal fizeram nas imagens. Um dado que evidencia a rejeição popular a Maduro são os protestos ocorridos entre 21 e 25 de janeiro, que ocorreram em bairros (favelas) do oeste de Caracas.

PP: Qual a participação dos conselhos comunais na presente crise?

OVH: Os conselhos comunais urbanos, que são a imensa maioria [dos conselhos comunais], têm se constituído em parte pela rede de contenção comunitária do governo de Nicolás Maduro, por ser a organização que distribui de forma racionada, focalizada e esporádica os alimentos importados que contêm as cestas básicas dos CLAP. Portanto, são assim parte da coação nos lugares de residência, porque aqueles que protestam ou se opõem ao governo de Nicolás Maduro são retirados pelos conselhos comunais da lista de beneficiados com as cestas básicas dos CLAP, e, na Venezuela, muita gente sobrevive graças a estes alimentos.

PP: O modelo de entrega de fábricas falidas aos trabalhadores pelo governo ainda funciona? O governo Maduro tem mantido o apoio às ocupações de fábrica?

OVH: Nunca houve um verdadeiro apoio ou entrega de fábricas recuperadas ao movimento operário. Na realidade, as fábricas recuperadas pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores foram depois entregues à gestão de burocratas militares e civis que impediram o controle operário. No período de Nicolás Maduro o socialismo e o controle operário é muito menos mencionado na retórica estatal. Esse discurso foi próprio do período de ascenso da mobilização da classe trabalhadora, entre 2003 e 2009.

PP: Dada a centralidade que a indústria petrolífera e particularmente a PDVSA tem na economia venezuelana, é possível encontrar iniciativas de controle operário semelhante à das ocupações de fábricas ocorridas em outros setores?

OVH: Na paralisação petroleira de 2002, foram os técnicos e operários petroleiros que recuperaram e reativaram as operações produtivas da PDVSA. Mas depois, sua confiança absoluta em Hugo Chávez fez com que entregassem essa experiência de controle operário conjuntural à nova gestão burocrática designada pelo falecido líder da chamada Revolução Bolivariana. Os trabalhadores petroleiros podem dirigir a PDVSA sem nenhum problema. Digo isso com conhecimento concreto, porque nossos companheiros no Partido Socialismo e Liberdade que são operários petroleiros, como os dirigentes sindicais José Bodas e Fran Luna, da Federação de Trabalhadores Petroleiros da Venezuela (FUTPV), nos explicam em detalhe as operações da PDVSA e sua gestão.

PP: A estratégia de transição negociada que a oposição de direita tem tentado construir na Venezuela poderia ser chamada de “golpe de Estado”? Por quê?

OVH: Pode ser chamada de golpe de Estado porque privilegia, para a mudança governamental, uma rebelião dos militares que não reconheça o governo de Nicolás Maduro e reconheça o governo de Juan Guaidó. Despreza uma mobilização popular que transborde o aparato militar do Estado e imponha uma mudança de regime político. Sua prioridade é a pressão estrangeira dos Estados Unidos e uma lei de anistia para ganhar o apoio de altos oficiais da Força Armada Nacional Bolivariana, para assim conseguir um levante militar ou uma ação que derrube Nicolás Maduro.

PP: A chegada de tropas russas à Venezuela e os alertas da China aos EUA para que não intervenham na situação venezuelana interferem de que modo na correlação interna de forças?

OVH: Não tenho informação de chegada de tropas russas à Venezuela, creio que isso é falso e é somente uma tentativa de justificar a intervenção militar dos Estados Unidos[7]. Porém, creio que o apoio da Rússia e China interferem na correlação de forças internas ao evitar o isolamento diplomático de Nicolás Maduro. Ademais, permite ao governo de Nicolás Maduro apresentar um possível apoio econômico e militar. Na realidade, não creio que exista nem que vá existir um apoio militar da Rússia e menos ainda da China diante de uma intervenção armada dos Estados Unidos.

PP: Como os venezuelanos veem a possibilidade, ainda que remota, de uma invasão militar? Quais as chances de o governo Maduro sobreviver a uma intervenção deste tipo?

OVH: É possível uma intervenção militar, mas antes os Estados Unidos privilegiarão sanções e o cerco econômico para impor uma saída negociada ou um golpe militar interno. Nós repudiamos as sanções e a intervenção militar. O governo de Maduro não pode sobreviver a uma possível intervenção militar dos Estados Unidos. A assimetria militar é enorme. Além do mais, a resposta militar da Venezuela estaria condicionada por quatro anos de crise econômica e pela dependência econômica do país. Na atualidade, a Venezuela necessita importar insumos dos Estados Unidos para produzir gasolina, e sem gasolina a logística militar será um desastre. Antes, quando os militares e civis começarmos a sentir a falta de gasolina e suas consequências pelas sanções econômicas, pode-se resolver a situação de crise política atual a partir da saída negociada, do golpe militar ou uma rebelião popular.

*Omar Vázquez Heredia é venezuelano, militante comunista e professor universitário

 

Notas do Passa Palavra

[1] O Partido Socialismo y Libertad é um partido trotskista venezuelano originado no campo morenista, internacionalmente filiado à Unidade Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (UIT-QI) como também o é no Brasil a Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), tendência interna do PSOL.

[2] A Liga de Trabajadores por el Socialismo (LTS) é um partido trotskista venezuelano originado no campo morenista, internacionalmente filiado a Fração Trotskista – Quarta Internacional (FT-QI) como também o é no Brasil o Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), antiga Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (LER-QI), que hoje publica o jornal Esquerda Diário.

[3] Marea Socialista é um movimento político venezuelano filiado à Plataforma del Pueblo en Lucha y del Chavismo Crítico e à Alianza Alternativa, integrada também pela Unidad Política Popular 89, pelo Movimiento Popular Alternativo, pelo Movimiento Electoral del Pueblo-Originario, pelo Movimiento 20-20 e outros. Surgiu em 2007 como uma corrente sindical radicada em Carabobo e Guayana, e em 2008 passou a integrar o Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) como uma corrente interna, saindo do partido em 2014. Próximos ao trotskismo, integram a plataforma internacional Portal de Esquerda, como também no Brasil o Movimento Esquerda Socialista (MES), tendência interna do PSOL, e por meio desta plataforma têm status de observadores no Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).

[4] Os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), criados em 2016 por Nicolás Maduro, são comitês de distribuição de alimentos, promovidos pelo governo venezuelano, nos quais as próprias comunidades abastecem e distribuem os alimentos prioritários através de uma modalidade de entrega de produtos em domicílio.

[5] Os Carnês da Pátria são um documento venezuelano de identificação, criados durante a presidência de Nicolás Maduro. Incluem um código QR único personalizado, que serve, segundo o governo venezuelano, para ajudar o governo a conhecer o status socioeconômico da população e agilizar o sistema das missões bolivarianas – – e dos CLAP. A princípio o carnê é obtido de forma gratuita e não obrigatória, exigindo-se apenas uma foto, a carteira de identidade venezuelana e informações sobre quais programas sociais o cidadão está inscrito. O documento tem uma espécie de carteira digital que se articula num sistema estatal de pagamento eletrônico, pelo qual os portadores também podem receber diferentes tipos de bonificações monetárias por parte do estado venezuelano. A crítica mais comum aos carnês é a de que servem como meio de controle político de setores expressivos da população venezuelana.

[6] O Arco Mineiro do Orinoco (AMO) foi criado oficialmente em 24 de fevereiro de 2016 como Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional Arco Mineiro do Orinoco. É uma área rica em recursos minerais, que a Venezuela explora desde 2017. Ocupa majoritariamente o norte do estado de Bolívar, e em menor proporção o nordeste do estado do Amazonas e parte do estado do Delta Amacuro. Conta com 7 mil toneladas de reservas de ouro, cobre, diamante, coltan (mistura de columbita e tantalita), ferro, bauxita e outros minerais. O AMO abarca uma área de 111.843,70 km², representando 12,2% do território venezuelano – duplicando assim a faixa petrolífera do Orinoco. O valor estimado dos minerais encontrados em seu subsolo é de cerca de US$ 2 trilhões, dos quais sessenta por cento serão destinados, segundo o governo venezuelano, para programas sociais. Há, todavia, preocupações por parte da Academia de Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais da Venezuela, da Sociedade Venezuelana de Ecologia, da Associação de Arqueólogas e Arqueólogos da Venezuela (AAAV), da Assembleia Nacional da Venezuela e da ONG Programa Venezuelano de Educação e Ação em Direitos Humanos (PROVEA) em torno do descumprimento de estudos de impacto ambiental e sociocultural no processo de extração mineral e de exploração dos recursos do subsolo, assim como violação do direito das comunidades indígenas a consulta prévia sobre o uso dos recursos em seus territórios, ao patrimônio cultural e natural e à soberania nacional venezuelana.

[7] Foi bem noticiada internacionalmente – por exemplo, aqui – a chegada à Venezuela de dois bombardeiros russos de longo alcance Tupolev Tu-160 em 10 de dezembro de 2018, acompanhados por um avião de carga e outro de passageiros com capacidade para 200 pessoas. Com os aviões chegou também uma delegação militar russa composta por cerca de 100 oficiais, que realizaram exercícios com as tropas venezuelanas.

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente iniciativa do PP.
    Acho interessante a caracterização econômica feita pelo Sr. Omar Vazquez, mas, quando o debate chega na questão política, fica bem claro que a oposição de esquerda não tem força nenhuma por lá.

    Uma corrente do PSOl traduziu recentemente nota da organização de Omar Vazques.
    Recomendo fortemente a leitura. Com as distintas proporções, assemelha-se demais aos Informativos do PSTU (e sua tendência de dar diretivas irrealizáveis ao povo).

    http://cstpsol.com/home/index.php/2019/01/29/mobilizacao-autonoma-do-povo-trabalhador-pelo-fora-maduro/

    Destaco:
    ‘Maduro deve partir, mas pela mobilização da juventude, dos trabalhadores e do povo. Nem Trump nem os militares, nem Guaidó nem os partidos patronais da AN têm o direito de interferir na decisão do povo venezuelano, que quer o fim do falso socialismo de Maduro.’

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