Um Motorista

Leia aqui o primeiro relato.

Primeiro, é preciso falar um pouco sobre como nos comunicamos. A maioria dos motoristas pertence a pelo menos um grupo de WhatsApp, que é a principal forma de comunicação com outros motoristas. Os grupos variam, desde pequenos para motoristas mais próximos, que se conhecem, até grupos enormes onde rola todo tipo de conteúdo. Mas é através dos grupos e do WhatsApp que os motoristas se informam sobre acidentes, engarrafamentos, preços vantajosos de combustíveis, blitze policiais, mecânicos confiáveis, tiram dúvidas e até pedem ajuda no caso de uma batida, assalto, bateria arriada, pane seca (falta de combustível) etc. Algumas vezes esses motoristas acabam combinando de se encontrar para fazer um lanche na hora em que o movimento está fraco, ou mesmo um churrasco para descontrair. Como muitos motoristas trabalham em mais de um aplicativo, o número de grupos pode chegar a ser bem alto. Normalmente se evitam discussões sobre política, religião e assuntos polêmicos, mas sempre rola alguma coisa, além é claro da zuação do futebol quando seu time perde.

A associação de motoristas do município busca se encontrar com representantes desses grupos e neles participar o máximo possível, chamando para atividades como churrascos, cafés da manhã e discussões com a diretoria. Sobre a associação, ela foi fundada no final do ano passado, quando a Prefeitura da cidade resolveu elaborar um projeto de regulamentação do transporte por aplicativos, que é de competência dos municípios. Fortemente influenciado pelos taxistas, o projeto proposto pelo prefeito e pelo secretário de transportes em 2019 visava cercear a atividade dos motoristas, criando regras sobre os veículos, local de estacionamento, número máximo de motoristas, entre outras. Da indignação dos motoristas surgiu a associação, que longe de ser combativa, se pauta pelo diálogo com o poder público, principalmente alguns vereadores da Câmara Municipal. No início do ano, quando a proposta seria votada na Câmara, houve uma audiência pública só com a participação de motoristas de aplicativos (os taxistas concordaram em não comparecer) que lotou o plenário e as escadarias do local, tendo que ser transmitida ao vivo na praça em frente. Segundo a associação, haveria no município naquela época cerca de 4 mil motoristas de aplicativos, número que é certamente maior hoje (a cidade conta com pouco mais de 560 mil habitantes). O projeto não foi aprovado e retornou para discussão com os vereadores, sendo formada uma comissão com a participação de representantes da associação para elaborar mudanças. Desde então vem sendo coletadas sugestões dos motoristas para serem adicionadas a um novo projeto que a associação pretende propor.

Foi a associação que começou a divulgar nos grupos convocatórias a paralisação, informando que seria um movimento internacional contra os baixos pagamentos feitos pela Uber aos motoristas (aqui 25% do valor das corridas fica com o aplicativo) e ainda adicionou a pauta de redução do preço dos combustíveis que, segundo ela, naquele estado estaria acima da média nacional. Essas são duas reclamações frequentes dos motoristas, junto da questão da segurança. Em todo momento a associação buscava deixar claro que não queria um aumento das tarifas para os passageiros, mas uma diminuição da porcentagem abocanhada pela Uber e consequente aumento do repasse aos motoristas. Na semana anterior à paralisação houve, pelo menos aqui, uma paralisação semelhante contra o aplicativo 99, justamente por uma mudança na porcentagem do repasse feito aos motoristas.

2º relato do trabalho como motorista de Uber: a paralisação de 8 de maio

Como dito, a divulgação da paralisação se deu basicamente pelas redes sociais. Não houve nenhum debate aberto com os motoristas sobre como esta deveria ser feita, nem uma proposta de ato (como ocorreram em outras cidades), mas apenas o lançamento de uma campanha simultânea para estimular a doação de sangue. A única orientação era desligar os aplicativos desde as 00:01 do dia 8 até as 23:59.

No dia 8 pela manhã já dava para ver que muitos motoristas não tinham aderido a paralisação e estavam rodando normalmente. Os tempos de espera estavam um pouco acima do normal e os valores permaneciam inalterados. Foi então que começou a surgir o que, para mim, foi o ponto alto deste dia: a sabotagem contra os motoristas que estavam rodando. Quem tinha aderido à paralisação começou a realizar pedidos de corrida e cancelar, inserir locais de encontro inexistentes, realizar reclamações etc. Isso ocorreu durante todo o dia e parece que começou de forma espontânea. Na hora do almoço, um dos principais horários de trabalho, o tempo de espera estava grande e os valores das corridas já tinham subido. Em alguns lugares, houve relatos de carros que foram quebrados e de motoristas que estavam rodando armados. Em algumas cidades ocorreram manifestações e carreatas, mas pelas notícias que circularam não foi nada realmente massivo. Do mesmo modo, as notícias dos outros países mostravam desde pequenas paralisações, de 1 até 12 horas ou 24 horas (como aqui) e algumas manifestações, sendo a maior na frente da sede da Uber em São Francisco.

2º relato do trabalho como motorista de Uber: a paralisação de 8 de maio

Antes e depois da greve, circularam em vários sites relatos e notícias sobre as condições de trabalho dos motoristas de aplicativos no mundo, com foco principalmente na Uber. É preciso esclarecer que esta companhia estava nos holofotes porque suas ações iriam começar a ser negociadas na bolsa de NY, numa das operações de IPO (Initial Public Offer, ou oferta pública inicial das ações) mais esperadas pelo mercado financeiro. Mesmo sendo a gigante que é, a Uber vem acumulando prejuízos e sofreu derrotas em Londres e em Nova York. Na primeira cidade, tribunais decretaram que motoristas deviam ser reconhecidos como empregados da Uber e na segunda o conselho da cidade estabeleceu que motoristas deviam receber um pagamento mínimo e ter acesso a benefícios como seguro desemprego, além de estabelecer que não poderiam haver novos motoristas cadastrados no aplicativo pelo prazo de 1 ano. Obviamente, a empresa está recorrendo de ambas as decisões em uma renhida batalha judicial. Legisladores no estado da Califórnia, nos EUA, também estão considerando estabelecer direitos para os motoristas de aplicativos. As péssimas condições e a precariedade do nosso trabalho foram amplamente divulgadas, manchando a reputação da empresa nas vésperas de sua estreia na bolsa de valores.

Creio que o maior saldo dessa paralisação foi permitir que os motoristas de aplicativo se reconheçam enquanto trabalhadores (o discurso do empreendedorismo, de ser patrão de si mesmo é muito difundido, principalmente pela empresa) a nível mundial. Por mais que os negócios da empresa não tenham sido severamente atingidos, é uma demonstração de que nós podemos afetá-la, principalmente se agirmos coletivamente. Isto é um grande salto para quem passa a maior parte do dia sozinho, apenas com estranhos entrando e saindo do seu carro. Não foi o caso aqui na cidade, mas pelo que acompanhei, principalmente em outros países, já existem coletivos de trabalhadores de aplicativos que se encontram para discutir seus problemas e planejar soluções conjuntas.

A Uber manifestou parte de sua preocupação enviando para os motoristas no dia anterior a paralisação uma pesquisa de satisfação. Durante o dia não houve nenhum comunicado oficial da empresa e aqui na cidade o escritório, que serve para ajudar motoristas a resolver problemas, continuou funcionando normalmente. Nos EUA, a empresa anunciou que vai pagar um bônus este ano aos motoristas de acordo com o número de viagens. No documento que embasa a sua entrada na bolsa, a própria empresa admite que o seu principal desafio vai ser lidar com a crescente insatisfação dos motoristas, e que a pressão para cortar custos e ter grandes lucros pode piorar ainda mais as condições de trabalho dos motoristas. Como nós, motoristas, vamos lidar com isso?

4 COMENTÁRIOS

  1. Mas pra botar fogo precisamos de mais incendiários, e que pelo menos ninguém fique jogando água pra apagar

  2. Identificou bem as formas de boicote… tomara q a UBER não leia o texto, né?

  3. Nada pior do que os que os próprios passageiros já fazem, sem falar que todos as informações de corridas ficam armazenadas. Não soube de ninguém que foi penalizado, seja enquanto passageiro seja enquanto motorista (os apps são diferentes). Veremos qual será a política da empresa nas próximas paralisações. E outras formas criativas de boicote podem surgir.

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