Por José de Sousa Miguel Lopes
Você pode ler a primeira parte da série aqui e a segunda aqui.
A função pedagógica do cinema
Para a formação do olhar parece-nos ser imprescindível que a escola proporcione a análise das imagens e das estratégias de construção do imaginário através do sistema audiovisual, principalmente através do cinema.
Importa ter em atenção que existe uma função pedagógica do cinema, um processo de letramento na formação do espectador no qual o programador tem papel de relevo; ou seja, mais do que as sessões comerciais, é nos ciclos de cinema que o programador pode ter este papel alfabetizador, pela ligação entre filmes (todo o processo de planeamento de um ciclo — por autor, por época, por tema, por ligações invisíveis…) como movimento do pensamento. Normalmente acompanhados por debate, estes ciclos de cinema tornam-se a praça pública de democratização do pensamento.
A vida quotidiana está, intencionalmente ou não, atravessada por ideias filosóficas e que, mesmo uma experiência artística menos comprometida intelectualmente como ir ao cinema, pode também ser um lugar de pensamento filosófico. À primeira vista, quando se vai assistir a um filme o principal objetivo é a diversão e não a reflexão. Muito menos é filosofar. Porém, muitas vezes após o visionamento, surge o debate, a discussão, a argumentação. De algum modo, alguns filmes, principalmente através do argumento e do diálogo, elementos mais próximos do texto escrito, apresentam outra perspectiva sobre determinado tema ou assunto, ou levanta questões polêmicas que não têm respostas fáceis.
O cinema, como lugar de exercício de leitura da imagem, constitui-se como um contributo importante no processo de ressignificação do olhar. O filme reúne, esteticamente, diversos gêneros das artes e condensa a ética da desauratização para aproximar-se do grande público. A aura da obra de arte pode ser entendida como seu valor de culto, preservando as características de intocabilidade, singularidade, inatingibilidade, unicidade e autenticidade. Em um mundo desencantado, a arte perde seu halo, ocorre sua dessacralização, sua autonomia, em função de fatores como o uso de técnicas de reprodução em massa, a influência do poder das massas e o desejo de tornar as coisas mais próximas, duas causas relacionadas.
O leitor de cinema necessita decodificar mecanismos da linguagem cinematográfica, mesmo em se tratando de jovens em formação inicial. Para tornar os estudantes parte ativa das práticas de sessões obrigatórias de filmes na escola, as exibições têm de ocorrer de forma mais sistemática do que apenas proporcionar momentos de fruição do espetáculo fílmico. A pedagogia do olhar deverá assentar numa estratégia que articule a fruição do olhar inserido num programa disciplinar elaborado segundo a perspectiva de um projeto problematizador do conhecimento escolar.
Como qualquer outra arte, o “cinema pensa”, criando conceitos através de imagens visuais, assim como a literatura o faz com imagens verbais. Portanto a leitura deve partir do texto/filme e explorar as possibilidades de ir além das simples palavras e imagens que emolduram ações, para que o espectador/leitor possa desconstruir os significados transmitidos de fora para dentro da obra e legitimados pelo poder do ambiente escolar.
O divórcio crônico existente entre educação e cultura, ou entre arte e ciência é, muitas vezes, o que impede o espectador de perceber o deslocamento poético das imagens cinematográficas como possibilidade de acessar outros níveis e dimensões da realidade, fundamentais na construção do conhecimento de nós mesmos e do mundo. Afinal, imaginário e pensamento se constituem. O movimento do pensamento remete ao movimento da metáfora, em um fazer-desfazer lúdico e figurativo; dá-se visibilidade ao invisível, comunica-se o não comunicável, atualiza-se o já dito.
Essa materialidade da linguagem remete para o que Benjamin dizia sobre a criança que entra nas palavras como quem entra em cavernas, criando caminhos estranhos em um universo a ser explorado. Algo parecido com o percurso dos poetas, dos artistas ou dos cineastas quando penetram na linguagem, criando seus caminhos, suas errâncias em suas montagens, estabelecendo uma relação com o tempo passado que não é, necessariamente, aquela do tempo linear, cronológico, homogêneo e vazio (BENJAMIN, 2005, p. 229). Ao interagir na produção de saberes, identidades, crenças e visões do mundo o potencial polissêmico e poético das imagens em movimento, possibilitou constituir a memória como história, em uma trama de fios invisíveis que fazem conexões entre diferentes textualidades e temporalidades gerando conhecimento.
No final, novos desafios se nos afiguram: como equilibrar a relação entre o poder político, ético e estético da arte cinematográfica e o poder do pensamento num processo de democratização do pensamento elaborado através de uma arte democrática, do povo? E como resistir e combater a desigualdade entre o carácter massivo das imagens cinematográficas (mas não apenas, de todas as imagens movimento) e os movimentos menores que rompem com a soberania e a hegemonia de uma arte estabelecida? O cinema revela-se como a arte que atualiza o ideal grego de Paideia enquanto pedagogia cinéfila. No fundo, cumpre ainda definir a função pedagógica do cinema no seio de uma filosofia da educação.
Na atualidade o cinema não se cristaliza em um só resultado, mas faz sua existência a partir de linguagens heterogêneas que buscam não representar, mas interagir — e documentar essa interação — com o real. Nesse sentido, a linguagem cinematográfica como recurso e objeto de pesquisa no campo educacional demanda um material interpretativo que possibilite ampliar o espírito acadêmico para experiências ainda pouco comuns, que instiguem nos educadores e nos jovens um olhar curioso, mais questões e menos certezas diante das imagens fílmicas e das imagens documentais, que não são apenas provas da verdade, mas vestígios de histórias, campos de conhecimento e da experiência sensível do olhar. Se as imagens cinematográficas possuem uma potência de pensamento, da mesma forma a atividade intelectual e a própria construção do conhecimento não deixam de ser uma reelaboração imaginativa.
Apreender o significado dos conteúdos produzidos pelo olhar fílmico pressupõe que as exibições de filmes nas escolas sejam amparadas por um treinamento do olhar. O espectador deve ser estimulado a perceber as estratégias da linguagem audiovisual, para compreender os sentidos das imagens projetadas no jogo de dentro para fora e de fora para dentro da realidade, articulando códigos da gramática audiovisual e mobilizando sentidos da/na linguagem cinematográfica. Com efeito, o olho é uma porta entreaberta do mundo externo para o ser humano, mas essa adaptação mecânica do objeto externo em uma sensação interna do olhar pode ser mais ou menos limitada, a depender do grau de formação e informação que se tenha sobre este objeto. A imagem ilude por sugerir que se está vendo a totalidade da coisa mostrada, quando somente se estão enxergando os limites da sua construção visual limitada pela capacidade restrita do olhar humano em captar no seu interior a complexidade do objeto exterior.
Um trabalho pedagógico do olhar cinematográfico parece ser importante, pelo menos, por dois motivos. Primeiro, porque o acesso à arte é um direito de todas as crianças e jovens, e segundo porque o espaço escolar, para um grande contingente deles, provavelmente seja o único no qual esse encontro seria possível. Trata-se, portanto, de uma atuação, acima de tudo, política, qual seja, a de pelo menos se pensar na possibilidade de que crianças e jovens possam ser mobilizados pela arte. Ao promover o encontro entre crianças e cinema, a escola faria mais do que “ensinar” arte, já que “arte não se ensina, ela se encontra, se experimenta, se transmite por outras vias que não a do discurso do saber único e, por vezes, mesmo sem nenhum discurso” (BERGALA, 2002, p. 30).
Para além da mera transmissão de técnicas ou de estéticas em si mesmas, há a necessidade de uma abordagem pedagógica da experiência da leitura e compreensão plenas da linguagem visual cinematográfica. Essa leitura adequada proporciona condições importantes para a compreensão integral do objeto, sua função técnica e indissociavelmente estética na forma e sua produção. Mas nesse processo compreende-se, teoricamente, que a contribuição decisiva da leitura e compreensão da linguagem cinematográfica se direciona para a conscientização crítica do educando-leitor para a sua autonomia e identidade. Trata-se da natureza da arte, da necessidade de discussão estética sistemática consigo mesmo e com os outros, coletivamente, que constituem experiências e ações que facilitam ao educando tornar-se sujeito crítico desse processo.
Ao dizer que não caberia à escola “ensinar” cinema, se faz necessário remeter ao segundo motivo que torna a inserção do cinema na escola importante: os encontros com emoções e sentimentos que só são oferecidos pelo cinema (e por nenhum outro meio). Assim, a ideia não é a de apresentar filmes (ou fragmentos de filmes) exclusivamente com o objetivo de desenvolver o “espírito crítico” dos alunos. Talvez o que importe seja favorecer o contato dos alunos com aquelas obras que não circulam nas grandes salas e nos circuitos comerciais. O desafio seria o de iniciação, o de exposição, num duplo entendimento: exposição de filmes específicos aos alunos e exposição dos alunos à arte, em seu sentido mais genuíno. Afinal, é justamente essa a questão principal da relação entre cinema e escola: a de promover, de facilitar o encontro com a alteridade; uma tarefa que diz respeito, sobretudo, a uma pedagogia do olhar; uma pedagogia que busca aceitar olhar as imagens em sua parcela enigmática, e que não se restringe a introduzir palavras e sentidos inarredáveis sobre elas.
Esse encontro privilegiaria romper com certo “didatismo” quando o assunto é arte ou mesmo imagem: ver aqui, naquela tela, naquela instalação, o que o artista quis “mesmo” dizer; entender o que aquela imagem “representa” ou quer “representar”. Uma possibilidade instigante poderia ser a de enfatizar perspectivas de trabalho que fossem além daquelas ligadas às “significações corretas”, aos “ensinamentos”, às “mensagens”. Tratar-se-ia simplesmente de apresentar filmes, considerando uma impossibilidade básica: “por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz” (FOUCAULT, 1998, p. 65). Ou seja, tratar-se-ia de considerar as infinitas possibilidades de olhar para além da conexão entre imagens e palavras. Quando se fala de imagens (e de arte), não há “ensinamentos” previsíveis, no sentido de que não há interferências possíveis naquilo que diz respeito à fruição, ao deleite, à sensibilidade: pode-se até obrigar alguém a aprender algo, mas não se pode ensinar alguém a se emocionar (BERGALA, 2002).
Isto distingue o cinema-linguagem do espetáculo-entretenimento. Este último, aparentemente sem consequências, pode trazer sérios danos cognitivos quando consumido como estratégia de formação escolar. Com efeito, exigiria o enfrentamento de uma parcela significativa da ignorância atrevida das redes sociais, da crise das mediações a favor de uma valorização da pressa, do tempo instantâneo, do fim do tempo lento, do silêncio, e da pseudopresença num mundo de comunicações vazias, ideal para o controlo afetivo, social e político.
Os recursos estilísticos da gramática audiovisual instigam atitudes de recepção e novas práticas pedagógicas de assistência de filmes nas escolas. O ensino e a aprendizagem audiovisual devem exercitar ações que explorem os sentidos da vida no mundo reproduzido pela imagem. A disciplinarização desta prática por lei deve empreender a utilização do cinema na escola sem privilegiar os filmes assistidos apenas como ilustrações de conteúdos de outros campos disciplinares, mas sim identificar neste conteúdo disciplinar um campo de estudo específico e essencialmente transdisciplinar mobilizado pela linguagem fílmica.
A assistência de filmes na escola pode ser uma prática interdisciplinar importante, mas é essencial acionar a estética do olhar cinematográfico como problematizador dos significados representados nos filmes. Potencializar o pensamento do cinema através de diálogos com a linguagem fílmica nas sessões escolares estimula a razão e a emoção dos estudantes, para além dos conteúdos pré-estabelecidos nas disciplinas, possibilitando a emergência de novos sentidos manifestados na forma da linguagem da comunicação cinematográfica. Isto pressupõe uma leitura pelo viés da pedagogia do olhar, que, inclusive, permite ao professor praticar novos laboratórios de aprendizagem, estimulando os alunos/espectadores a perceberem as impressões dos simulacros imagéticos como formas dominantes de comunicação no cotidiano, desmitificando as normas de conhecimentos compartimentalizadas em disciplinas, para incluir no repertório da escola a liberdade da estética cinematográfica que parte de uma imagem visual chapada para uma poética da imagem virtual.
O conteúdo aparentemente inocente de qualquer filme pode ser problematizado como linguagem, senão a escola produz um efeito contrário ao seu papel: torna os estudantes prisioneiros do olhar audiovisual, ao invés de torná-los cidadãos livres para consumir quaisquer tipos de imaginários cinematográficos, sem necessariamente reproduzi-los. Diante da captura emocional do olhar cinematográfico, é sempre necessária a atitude crítica de transvaloração dos conhecimentos instituídos para se poderem edificar seres humanos racionais e autônomos.
Considerações finais
Terminou aqui a digressão textual por um filme onde tudo “acontece”. Mas para que esse tudo “aconteça” apenas se exige outro olhar que apreenda, em todas as suas dimensões, as inúmeras facetas que podem ser exploradas nesta obra magistral de Antonioni. Neste sentido, o ato de educar o olhar é um salto para se reconhecer no desconhecido, saindo da zona de conforto disciplinar e tomando a direção do desaprender como um aprendizado.
Para quem entende o valor da arte no processo de humanização dos homens por meio do efeito estético, próprio das linguagens artísticas, é possível aceitar a ideia de que o cinema rompe com a lógica mercantilista que acaba por restringir o acesso a determinada parcela da sociedade. O modelo de sociedade brasileira contemporâneo está marcado pela excludência, iniciada nos processos de escolarização dos mais novos, pela ineficiência da transmissão de conhecimentos e valores propedêuticos à inserção na vida adulta e profissional nas instituições escolares. A exclusão das pessoas também se dá no modo de distribuição dos bens culturais como o acesso ao cinema. Diante desse contexto é importante discutir cinema enquanto fenômeno social, político e artístico.
Como foi referido, O olhar de Michelangelo é construído como um filme de olhares, que dialogam explorando o grupo dos mármores que, sob a mão do diretor, torna-se pura abstração. Dos olhos fechados do papa, Antonioni chega ao olhar de Moisés que, com sua postura e iluminação particulares, mais do que qualquer outra, chama a atenção dos espectadores. As imagens são continuamente construídas e desconstruídas de acordo com os diferentes pontos de vista da câmera, um olhar que confirma neste trabalho o verdadeiro segredo por trás da criação de qualquer forma de arte.
Não é apenas o testemunho extremo de um grande diretor. É também um olhar capaz de fazer uma obra-prima do passado viva e presente aos nossos olhos. A experiência de Antonioni torna-se, graças à magia do seu cinema, também a experiência de cada espectador. Uma experiência que transita pela relação entre espaço e corpo, entre a falta de comunicação ou, pelo menos, de uma comunicação precária, entre o vazio e a ausência num mundo que parece dar cada vez menos valor ao encontro com o “outro” e à reflexividade que ele proporciona.
O olhar de Michelangelo é um momento dos mais elevados do cinema de Antonioni, no qual seu gesto artístico solene e sedutor nos remete a uma inevitável reflexão sobre o ato de ver.
Nos quinze minutos de imagens que Antonioni apresenta, o grande diretor do cinema italiano envolve o espectador na surpreendente perturbação que permeia o gênio no momento de distanciamento de seu trabalho.
É o testamento artístico do mestre de Ferrara: uma despedida que, na sequência final, transmite a ideia mística, transcendental e inexprimível sobre o que o diretor pensa sobre a Arte como criação. Trata-se, em suma, de uma obra pungente, dolorosa, impregnada de um refinamento estético e filosófico arrebatador. Comovente sob qualquer perspectiva, lírico em todas as suas dimensões!
Referências
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Esta terceira e última parte da série de artigos foi ilustrada com fotografias de Henri Cartier-Bresson.