Por Passa Palavra
Na primavera de 2016, a partir de uma ocupação da Praça da República, em Paris, contra a Lei El-Khomri – uma substancial reforma do código trabalhista francês – trabalhadores, levando a reboque e não sem conflitos as tradicionais centrais sindicais, criaram o movimento Nuit Debout. Quase dois anos após, em um movimento que está por ser explicado, trabalhadores espalhados por todo o país vestiram seus coletes amarelos e passaram a questionar o aumento do custo de vida.
Em maio deste ano, entretanto, uma confluência entre esses dois movimentos se deu. Um dos coletivos derivados do Nuit Debout, o La Chapelle Debout[1], parece estar na origem de um movimento de imigrantes ilegais, que se autodenominou Gilets Noirs, os Coletes Negros[2]. A sua primeira ação foi ocupar durante duas horas um dos terminais do maior e mais importante aeroporto de Paris, o Charles de Gaulle. O objetivo era denunciar o papel da companhia aérea Air France na deportação dos imigrantes ilegais. Desde então os coletes negros vêm se definindo enquanto um movimento de “imigrantes moradores de rua e em centros de acolhimento na região de Paris, em luta”.
No seu primeiro manifesto, ainda referente à ocupação do terminal do aeroporto Charles de Gaulle, os coletes negros afirmaram: “atacaremos aquelas e aqueles que exploram e tiram proveito dos ‘sem documentos’, assim como atacaremos aquelas e aqueles que organizam e vivem do racismo na França” (…) “Não temos medo da morte, mas da humilhação”.
Desde então o movimento vem se organizando e realizando outras intervenções. Porém, foi no último 12 de julho que aconteceu a ação mais ousada: ocuparam o Panteão, o vasto monumento onde estão os túmulos de mortos considerados ilustres. Os coletes negros exigiram uma reunião com Édouard Philippe, primeiro-ministro francês, nomeado pelo presidente Emmanuel Macron. Ameaçavam sair do local apenas quando tivessem a garantia de regularização de todos ali presentes (ver abaixo o manifesto). Mais de 300 imigrantes gritavam: “O que a gente quer? Os documentos! Para quem? Para todos!”. Do lado de fora, outros imigrantes e apoiadores do movimento sofriam com a repressão policial.
Os coletes negros batizaram a ação de “De pé, ó mortos!”, aparentemente em referência à primeira estrofe d’A Internacional. Mas estariam eles falando de quais mortos? Os ali enterrados – alguns deles heróis da Revolução Francesa que dois dias depois comemoraria o seu aniversário – ou de todos aqueles que tombaram nas fronteiras?
Na noite desse 12 de julho, o primeiro-ministro, sem apresentar nenhuma concessão aos manifestantes, declarou em sua conta do Twitter:
Todas as pessoas que se colocaram dentro do #Panthéon foram evacuadas. A França é um Estado de Direito, com tudo que isso implica: o respeito pelas regras que se aplicam ao direito de permanência, o respeito pelos monumentos públicos e pela memória que representam.
Até então, 21 pessoas estavam em prisão administrativa, porém o movimento ameaça bloquear o avião caso eles sejam deportados. Há promessas de novas ações.
Manifesto dos Coletes Negros:
DE PÉ, Ó MORTOS!
Hoje, nós, imigrantes sem documentos, habitantes dos abrigos, moradores de rua, ocupamos o Panteão.
Somos os sem papéis, os sem voz, os sem rosto para a República Francesa. Estamos perante os túmulos dos vossos grandes homens para denunciar as vossas profanações, as profanações das memórias dos nossos camaradas, dos nossos pais, das nossas mães, dos nossos irmãos e irmãs no Mediterrâneo, nas ruas de Paris, nos centros de acolhimento e nas prisões. Na França a escravidão continua de outra forma. Nossos pais morreram pela França.
E aqueles que estão mortos, estão mortos. A responsabilidade cabe aos vivos, àquelas e àqueles que hoje têm o poder. Que os mortos repousem em paz.
Anteontem atacámos a fronteira, quando ocupámos o terminal da Air France no aeroporto Charles de Gaulle. É aí que a polícia francesa nos mete em aviões rumo a Argel, Dakar, Khartoum, Bamako e Kabul. É aí que Djiby foi deportado.
Ontem invadimos a torre de Elior, em La Défense, e a Diretoria Geral do Trabalho. Nós fomos dizer aos patrões que nos humilham e vergam: o medo mudou de lado!
Hoje respondemos ao Estado e ao seu racismo, na França e na Europa. Vimos defender a nossa dignidade! Já não faremos súplicas, e pela luta vamos conquistar os nossos direitos!
Viemos vos dizer que o lema da França para os estrangeiros é: humilhação, exploração, deportação. A França que faz guerra lá longe, que pilha nossos recursos e decide em nosso nome com os nossos Estados corruptos. A França que nos faz guerra aqui.
NÓS OCUPAMOS
Porque há 200 mil residências vazias em Paris, e porque os nossos dormem embaixo dos viadutos da auto-estrada que circunda Paris, e porque ontem a Prefeitura colocou vedações nas ruas do acampamento da Avenida Wilson, em Saint-Denis. Porque no centro de acolhimento de Thiais, como em todos os outros, a polícia vem pela manhã apreender os moradores, até nos seus quartos.
Exigimos a libertação de nossos camaradas Coletes Negros, retidos nos centros de detenção, bem como a de todos os outros.
Exigimos a abolição dessas prisões para estrangeiros!
Não nos limitamos a lutar pelos sem-documentos, mas lutamos contra o sistema que cria os sem-documentos.
Não pagaremos mais a um policial ou a um agente de guichê para obter audiências.
Não queremos mais ter que negociar com o Ministério do Interior e as suas prefeituras.
QUEREMOS FALAR COM O PRIMEIRO-MINISTRO EDOUARD PHILIPPE, AGORA!
Continuaremos aqui até que o último de nós tenha documentos e para que aquelas e aqueles que virão depois tenham a liberdade de permanecer!
A todas aquelas e todos aqueles que se revoltam aqui, no Sudão ou na Argélia, aos nossos camaradas, a todas aquelas e todos aqueles que lutam contra os exploradores, a todas aquelas e todos aqueles que pensam que nenhum ser humano é ilegal, a todas aquelas e todos aqueles que já estão cansados de barrar a extrema-direita de 5 em 5 anos, e que estão convictos de que a luta contra o racismo que aí vem é o combate contra o racismo existente.
Documentos e moradia para todas e todos! Liberdade de circulação e instalação! Viva a luta dos Coletes Negros!
Notas
[1] La Chapelle é um bairro do norte de Paris, tipicamente de imigrantes, hoje em sua maioria indianos. Sob uma das estações de metrô próximas ao bairro, a de Stalingrado, costumam ser montados os acampamentos dos imigrantes “sem papeis” recém-chegados, quase todos da África Subsaariana.
[2] Após os Coletes Amarelos [Gilets Jaunes], muitos outros movimentos surgiram se apropriando do mesmo nome, mudando apenas a cor. Gilets Noirs são, literalmente, Coletes Negros.
Todas as histórias são mais antigas do que a data do começo, e esta dos Gilets Noirs, os Coletes Negros, não é excepção. Quando, há várias décadas, começaram a multiplicar-se os centros de acolhimento a imigrantes nas prefeituras proletárias da periferia de Paris, que nessa época eram todas governadas por prefeitos comunistas, estes prefeitos argumentavam que os centros de acolhimento deviam ser transferidos para as prefeituras habitadas predominantemente pela elite, para que fossem elas a pagar os encargos. Como não custa entender que nem as prefeituras da elite queriam acolher os imigrantes nem estes queriam lá residir, porque ficariam distantes das oportunidades de trabalho, aqueles argumentos eram apenas uma forma hipócrita de os dirigentes do Partido Comunista Francês mostrarem que queriam ver os imigrantes pelas costas. Com efeito, foi em 24 de Dezembro de 1980, véspera de Natal, que pela primeira vez em França um centro de acolhimento de imigrantes foi arrasado por bulldozers, por ordem do prefeito comunista de Vitry-sur-Seine. Lembro-me de que foram poucos os militantes que saíram do Partido Comunista por terem protestado contra este acontecimento, e entre eles figurava um único nome conhecido, se não me engano Étienne Balibar. Pouco depois, foi sob a presidência de François Mitterrand que pela primeira vez os imigrantes sem documentos foram metidos em aviões, agrilhoados pelos tornozelos. Recordo aos leitores que Mitterrand presidiu em 1981-1984 a um governo do Partido Socialista com a participação de ministros do Partido Comunista.
Quando se sabe isto, quando se levanta a ponta do véu e descobrimos um mundo diferente, quando se puxa um fio e vêem muitos outros atrás, começamos a entender que uma parte considerável daquela base operária francesa, que antes votava nos candidatos do Partido Comunista, vote hoje na organização de Marine Le Pen. Anti-imigrantes quando eram comunistas, continuam hoje a ser anti-imigrantes. É este o eixo de continuidade de uma política que, sem isso, pareceria confusa.
Estará o Brasil imune aos efeitos nefastos deste nacionalismo? Não creio, porque no Brasil nacionalismo e comunismo nasceram do mesmo ovo, o ovo do tenentismo. Ah! exclamam os leitores, mas no Brasil é diferente, porque nós os brasileiros, os bonzinhos do Sul, somos nacionalistas contra os imperialistas, os malvados do Norte. Mas, pergunto eu, quando, sob os governos do PT, as empresas brasileiras se expandiram e implantaram em África, essa teia económica não se chama imperialismo? Não, não se chama, dizem as luminárias do movimento negro, pretendendo que a expansão económica brasileira em África significa que o Brasil retomou as suas raízes africanas. Que bonito! Há lirismos para todas as hipocrisias.
E em São Paulo, que cor hão-de ter os Coletes dos imigrantes bolivianos? E de que cor serão os Coletes dos imigrantes venezuelanos em Roraima?