João Aguiar

1.

A literatura debate-se regularmente com a figura do duplo. Ou se se preferir o um/único que se desdobra em duas personalidades conflituantes entre si, criando uma forma de troca mútua entre si, eventualmente confundindo o leitor (e as personagens) sobre quem é quem. O primeiro exemplo do Doppelgänger (duplo) terá sido encontrado no romance Siebenkas (1796-97) de Jean Paul. O autor alemão pode ser hoje um nome obscuro, mas foi um nome relevante do Romantismo alemão, tendo privado com Herder; terá sido inspiração para os Papillons (peças para piano) de Schumann e um autor como Thomas Carlyle terá tido interesse na sua obra literária. Em Siebenkas existe uma morte encenada e o herói casa com a sua amada no além. Um além que é, naturalmente, um aquém, já que a morte encenada, sugerida pelo alter-ego da personagem principal, situa a morte no plano da libertação de um prévio casamento mal-sucedido.

A morte como saída para a vida será um tema recorrente no Romantismo e será apropriada pelos irracionalismos. Também aqui a morte surge como um Doppelgänger da vida, e vice-versa. Ao invés de ver a vida e a morte como um par oposto e unidirecional (a vida acaba invariavelmente num fim…), o Romantismo vai operar uma circularidade entre os dois termos. Se se pensar em Siebenkas, a morte, mesmo que encenada, revigora a vida. Se se preferir, a morte pode ser teatralizada como modo de transcender a vida. Os fascismos captaram esta circularidade esboçada caricaturalmente por Jean Paul e criaram uma política da morte como estética. Mas sobre isto já existe quem tenha escrito mais e muito melhor (Bernardo 2018: 1169-1204).

O que aqui me interessa é ilustrar o facto de que o Doppelgänger enquanto artifício literário surgiu no Romantismo e constituiria uma figura relevante para a literatura. Não quero com isto dizer de modo simplista que todas as manifestações literárias do duplo relevariam automaticamente do Romantismo (basta pensar no Duplo de Dostoievski). Quero apenas sugerir a ligação entre o duplo e a morte inaugurada no Romantismo.

2.

Nas últimas duas ou três décadas, um exemplo de utilização constante da figura do duplo é a escritora portuguesa Ana Teresa Pereira. Recorrendo a personagens de matriz britânica, a autora conseguiu criar uma obra de grande coerência, em que vários dos seus romances funcionam quase como que duplos uns dos outros. Pense-se nos exemplos de Karen (2016) e Inverness (2010).

Em Inverness, Kate, uma atriz de teatro de segunda categoria, perde-se de amores por um escritor que terá vivido um efémero período de fama, aquando da publicação do seu primeiro romance. Após a envolvência amorosa entre ambos, Clive revela a Kate a sua parecença com a sua esposa Jenny, entretanto desaparecida em parte incerta. Esta viveria igualmente numa relação extra-conjugal com Matthew, jornalista e seu amigo de infância. O casal vive numa propriedade do Derbyshire, onde Matthew os visita algumas vezes por ano. Entretanto, de modo a evitar suspeitas sobre o desaparecimento de Jenny, Clive pede a Kate para que tome o lugar de Jenny. Kate irá aceitar a proposta, tomando-a como um desígnio em que a vida e o teatro se irão fundir.

Kate eleva a sua condição de vida de atriz a tal ponto que se transmuta em atriz na vida. A circularidade entre a ficção e a realidade é tal que Kate se torna Jenny (ou será que é Jenny que regressa a si mesma?). Nesta circularidade entre a vida e a representação, a atriz torna-se personagem de si mesma e a sua identidade esfuma-se. De tanto buscar representar uma identidade unívoca — fazer-se passar por Jenny, e com isso não levantar suspeitas a Matthew, à governanta e à restante aldeia — Kate reduz a sua identidade à representação. Tentando ser mais simples na explicitação, a identidade passa de uma condição rígida (a um nome corresponde uma pessoa) a um comportamento fluido e indistinto, onde a despersonalização é total.

Em Karen, uma jovem de 25 anos (ou prestes a fazer 25 anos) acorda num quarto que desconhece, após ter caído a atravessar uma cascata. Não se reconhecendo como Karen, nomeada por Alan e a governanta Emily, e nunca evocando qual o seu nome ao longo de toda a narrativa, a personagem principal leva quase ao extremo o desconhecimento de si mesma. O cúmulo do ridículo encontra-se na expectativa de si mesma enquanto pintora e o facto de, perante material de pintura e desenho, ser incapaz de pintar ou desenhar o que tinha concebido mentalmente.

Em Karen a circularidade é mais óbvia em termos narrativos, já que o primeiro e o último capítulos correspondem a dois pontos infinitesimalmente próximos numa circunferência, mas mais complexa nos seus pressupostos. E é mais complexa porque a tensão da personagem principal com Alan é ela igualmente simétrica. Ambos procuram uma relação amorosa incondicional a que possam entregar-se; a transformação da sua vida num mecanismo deambulante, como realização estética; uma viagem por sua própria iniciativa ao encontro do seu verdadeiro eu. Ou seja, a obsessão pela identidade transforma uma noção genérica mas relativamente consolidada num pântano, onde nem a mais básica identidade pessoal se salva. Metáfora do identitarismo.

Todas estas são temáticas do Romantismo e que criativamente Ana Teresa Pereira trouxe para a nossa contemporaneidade de leitores. Existem brevíssimas alusões a automóveis, a autocarros, a comboios ou a candeeiros de rua, mas toda a descrição exterior às personagens e às suas relações encontra-se praticamente ausente, e a ação tanto poderia decorrer no início do século XX como nos dias de hoje. Esta depuração da tecnologia específica de cada período permite colocar a narrativa ao dispor de uma leitura sobre as relações propriamente sociais (e individuais). A ponte do Romantismo com os nossos dias repercute-se precisamente nas suas temáticas. Mais propriamente na tensão entre a imaginação e a recordação: na memória enquanto compromisso entre os factos da vida e a narrativização desses mesmos factos/acontecimentos. Na quebra desse compromisso a identidade metamorfoseia-se num constructo (quase) puramente estético.

3.

Karen e Inverness tratam de nos lembrar que o Romantismo cresceu contra o racionalismo moderno, mas não se ficou por uma mera reação. Alguns dos princípios fortes do Romantismo persistem, sendo um dos mais potentes precisamente a encenação da vida quotidiana como realização estética.

O desenvolvimento do capitalismo libertou os membros das classes dominadas para novas formas de dependência já não mais pessoalizadas. Paradoxalmente, esse processo de impessoalização das relações económicas e políticas convive nos últimos duzentos e cinquenta anos com um processo de simultânea individualização das condutas. Isto quer dizer que o duplo no capitalismo moderno encontra-se na tensão entre o que popular e unilateralmente se chama de “ditadura dos números” (ou a frieza/indiferença dos mercados e da burocracia do Estado para com os casos individuais), e a concentração da criação de realidades imaginadas pelos humanos no seio das suas fantasias individuais. O que o indivíduo pode decidir ou imaginar resume-se assim ao seu plano pessoal, ou dos que lhe são mais próximos. Para cada tranche de biliões ou triliões de dólares acumulados em valor económico, a partir da venda de produtos “personalizados” e ditados pelo “gosto soberano do cliente”, existem muitos milhões e milhões de pequenas interações pessoais e interpessoais que o dinheiro unifica. Para a capilaridade da vida em sociedade soma-se o retorno de fluxos astronómicos para o coração da vida económica: as empresas. Estas tratam os micro-comportamentos, que na modernidade da mais-valia relativa buscam a consagração das vidas quotidianas em realizações estéticas, com uma precisão cirúrgica e impessoal.

O indivíduo e as derivações pós-modernistas da estetização da vida quotidiana (que, em boa verdade, não passam de atualizações tardias e expandidas do Romantismo) não se opõem à impessoalidade do trabalho assalariado. Ambos estão contidos no mesmo circuito circular. Ambos são a condição que permite ampliar exponencialmente o outro. Atrevo-me a dizer que nenhuma sociedade humana foi tão impessoal até hoje precisamente porque ela nunca o foi tão pessoal. E vice-versa.

Não é a guerra surda e subterrânea pelo acesso a quantidades inquantificáveis de informação privada e intimamente pessoal, em bases de dados privados, a prova de que o impessoal e o pessoal se constituem como verdadeiros Doppelgänger de uma escala verdadeiramente global?

Bibliografia

Bernardo, João (2018) – Labirintos do fascismo, terceira versão revista e aumentada
Pereira, Ana Teresa (2016) – Karen. Lisboa: Relógio d’água
Pereira, Ana Teresa (2010) – Inverness. Lisboa: Relógio d’água

As fotografias que ilustram o artigo são de Julie de Waroquier.

11 COMENTÁRIOS

  1. Apenas curiosidade rsrs
    Mas com o ducentésimo aniversário do escritor Dostoiévski pensei que o querido João Bernardo escreveria um ensaio em homenagem tal como foi com John le Carré. Pois já li aqui no Passa Palavra, João Bernardo sempre reiterando sua admiração pelo escritor russo.

  2. Pedro Irio,

    De todos os escritores, e não me refiro apenas aos ficcionistas, mas a todos os que usaram letras para se exprimir, de todos eles foi Dostoevsky quem mais me influenciou. Precisamente por isso necessitaria de muito tempo, muito mais do que aquele que me resta de vida, para trabalhar sobre a sua obra. Perante a sugestão de Pedro Irio, só posso dizer, como Leporello disse a Don Giovanni quando o espectro do Comendador o convidou para jantar, «Tempo non ha, scusate!». No entanto, no livro que dediquei à obra de Balzac, A Sociedade Burguesa de Um e Outro Lado do Espelho. La Comédie Humaine (Editora da UEMG, Belo Horizonte: 2017), aqui, abundam as referências a Dostoevsky.

    No cerne da questão, e todas as citações são daquele meu livro, defino como «um dos temas principais de Dostoevsky a similitude entre o Bem e o Mal. Dostoevsky deduzirá desta premissa a consequência lógica, excluindo o Demónio do Mal e assimilando-o à Indiferença». Ou ainda, «Tal como sucederia com Dostoevsky mais tarde, Balzac compreendeu que o amor e o ódio não são antagónicos e que é a indiferença que se opõe a ambos». A centralidade da questão levou-me a insistir. «Dostoevsky entenderia mais tarde que tanto o Bem como o Mal se opõem à Indiferença, e que é na mediocridade que reina o Demónio».
    Por isso «Dostoevsky partiria da ambiguidade do amor para ver nele a sempre possível remissão do ódio». Ou, numa formulação inversa, «Dostoevsky recorrera a uma análise psicológica de novo tipo para mostrar, tal como Balzac o havia feito, que através da extremação do Mal é possível passar ao Bem».
    Daqui decorre uma concepção de psicologia oposta àquela que hoje se tornou hegemónica. «[…] a concepção plenamente contraditória de psicologia que apenas com Dostoevsky foi alcançada». A contradição é o motor dessa psicologia, que por isso não é virada para a introspecção, mas para a acção. «[…] seria necessário Dostoevsky para […] tornar a acção determinante das características dos personagens».
    E, afinal, chegamos assim àquela que é a grande conclusão política de Dostoevsky, a dureza da liberdade. «Como Dostoevsky tão claramente entendeu, ou cada homem se torna capaz de cumprir o percurso da ascese ou mantém-se a generalização da indiferença».

    Foi este o Dostoevsky que me ensinou tudo.

  3. Caro Pedro Irio, acredito que você gostará de ler, se ainda não leu, aqui mesmo no Passa Palavra, o ensaio do João Bernardo chamado “Romance policial”. Lendo os comentários acima lembrei de um outro comentário do João, que está no debate que se segue ao ensaio que indico, onde ele também fala um pouco do que aprendeu com Dostoevsky.

  4. Caro João Bernardo,
    Compreendo plenamente a tua ponderação quando expressas a ideia de que «necessitaria de muito tempo, muito mais do que aquele que me resta de vida, para trabalhar sobre a sua obra [referindo-te à obra de Dostoiévski]». Este desafio imposto pela imensidão do legado literário de Dostoiévski torna compreensível a tua renúncia à escrita de uma obra abrangente sobre este notável escritor russo. Entretanto, na leitura de outro comentário teu, presente no artigo intitulado «Excerto de uma mensagem que não enviei», deparo-me com a tua afirmação: «aquilo que só nós somos capazes de fazer, temos obrigação de o fazer». Esse pensamento suscitou em mim a possibilidade de explorar um caminho alternativo, ponderando que, mesmo que a tarefa de abordar a totalidade da obra de Dostoiévski seja titânica, poderias considerar a redação de um artigo aqui no Passa Palavra, onde poderias partilhar connosco o que somente tu, com a tua singular perspectiva, poderias discorrer sobre este célebre autor.
    Sempre me fascinou a tua abordagem de Dostoiévski não apenas como um mestre na exploração de temas morais e psicológicos, mas igualmente no âmbito político. Embora seja relativamente comum encontrar análises da «moral dostoievskiana» e observar a leitura de Dostoiévski em cursos de Psicologia, textos que empregam Dostoiévski como referência em contextos políticos são menos frequentes. Aqueles que o fazem, geralmente defendem posições conservadoras. No entanto, a tua abordagem singular abraça a «dureza da liberdade» encontrada em Dostoiévski como uma conclusão política valiosa. Seria de enorme interesse se pudesses expandir e detalhar essa perspectiva para a nossa compreensão.
    Além disso, adicionalmente, recordo uma passagem em que Georg Lukács, em A Destruição da Razão, estabelece esta intrigante ligação: «a filosofia de Simmel deságua naquela corrente do “ateísmo religioso” que teve sua primeira concepção filosófica importante em Schopenhauer e sobretudo em Nietzsche (“Deus está morto’”), cujas consequências ético-filosóficas alcançam proporções significativas na cultura europeia com a obra de Dostoiévski (Kirilov, Ivan Karamasov etc.), e que mais tarde se tornará uma questão central para a formação da concepção de mundo do existencialismo». E afirma ainda que «Em Nietzsche e em alguns personagens de Dostoiévski surge a moral do “tudo é permitido”, a par da exigência de que, em um mundo sem Deus ou abandonado por Deus, o homem possa e tenha de se tornar um deus. O “ateísmo religioso” constitui, assim, os dois lados do nietzscheanismo moderno: a anulação de todas as formas de proibição sociomoral do passado, mas que agora não são mais substituídas por formas novas e sim governadas autarquicamente pela individualidade soberana; e a concepção da realidade objetiva, em especial do mundo histórico-social, como nihilismo. Ambos os aspectos contêm sérias implicações para o desenvolvimento futuro e dão continuidade à questão colocada por Nietzsche, conduzindo, assim, ao “pessimismo heroico”, ao realismo heroico da visão de mundo “fascista” e “pré-fascista”» (Georg Lukács, A Destruição da Razão, SP: Instituto Lukács, 2020). É curioso notar que, talvez nesse período, Lukács tenha relegado ao esquecimento o apreço que claramente nutriu durante sua juventude por Dostoiévski, como evidenciado nas páginas finais de seu livro A Teoria do Romance.
    Compreendo que, no teu artigo intitulado «Romance policial. 1) a acção», tenhas expressado a afirmação de que «Nietzsche inspirou-se — mal, mas inspirou-se — em Dostoievski», estabelecendo assim uma distinção notável entre ambos. Ao explorar os comentários relacionados a esse artigo, deparei-me com uma exposição mais aprofundada sobre os equívocos da interpretação nietzschiana, um tópico que, de maneira significativa, também foi destacado por um grande amigo meu em uma das nossas inúmeras conversas. De facto, esse amigo chamou a atenção para passagens semelhantes presentes no teu livro Labirintos do Fascismo, onde afirmaste «Para nos apercebermos da falência da perspectiva usada por Lukács naquela sua obra basta verificar que o irracionalismo lhe serviu para situar Dostoievsky e Nietzsche no mesmo campo».
    Levando em conta as tuas referências a Nietzsche em relação a Dostoiévski, e as suas diferenças, seria valioso se pudesses destacar ainda mais essas distinções, particularmente no que se refere a Dostoiévski em relação a outros escritores e filósofos existencialistas e niilistas como Kierkegaard, Kafka, Heidegger, Camus, de Beauvoir e Sartre, que, até onde o meu conhecimento alcança, todos eles (com excepção de Kierkegaard) encontraram influência na obra do autor russo. Com frequência, esses pensadores são agrupados sob o rótulo do existencialismo, mas gostaria de compreender as nuances que os distinguem.
    Agradeço antecipadamente pela tua reflexão sobre estes tópicos intrincados e enriquecedores.
    Saudações.

  5. Caro Dante Gabrieli,

    Agora fico pior ainda, porque você me pede que faça uma história da filosofia nos dois últimos séculos. Como não o vou fazer, limito-me a indicar três chaves de leitura.

    Antes de mais, o conhecido tema evocado por Ivan Karamazov, de que, não existindo Deus, tudo seria permitido, é inseparável dos seus diálogos com Smerdyakov. Ivan é um céptico, que lança teses em que ele próprio não crê ou se abstém de as tomar como orientação prática. Quanto a Smerdyakov… Se alguém ali é Nietzsche, não tenho dúvida que é Smerdyakov, e quanto ao que isto possa significar basta atentar na evidente etimologia do nome do personagem. Nietzsche é um Smerdyakov, e o sucesso dos seus escritos revela a proliferação de discípulos malcheirosos.

    Uma segunda chave de leitura pode ser dada pelo pequeno livro de Jean-François Revel, Pourquoi des philosophes (Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1964). Jean-François Revel afirma que depois de Kant os filósofos se tornaram inúteis e que, por exemplo, a filosofia da ciência passou a ser feita por cientistas ou a filosofia da história por historiadores. Nesta perspectiva, acrescento que a velha filosofia tout court, abarcando aquelas questões que depois foram retalhadas entre a sociologia, a moral e a psicologia, cabe hoje exclusivamente aos romancistas. Então, para desbravar e entender Dostoevsky é necessário ler romancistas, e apenas eles.

    Eu cheguei a Dostoevsky através de André Gide, que desde muito novo, no começo da minha adolescência, foi o meu mestre de moral. E Gide fora o verdadeiro introdutor de Dostoevsky na cultura francesa. Mas deixo-lhe uma sugestão. Leia os romances de Graham Greene e verifique se, através deles, não compreenderá melhor a obra de Dostoevsky. Depois, releia Dostoevsky e verifique se Graham Greene não lhe surge sob uma luz mais intensa. Não se trata de um círculo vicioso, mas de uma espiral que se vai sempre aproximando. Aproximando de quê?

    E assim regressamos a Dostoevsky. Como explicá-lo, se é ele quem explica tudo?

  6. Caro Dante Gabrieli,

    Na sequência desta troca de comentários, e a propósito da etimologia de Smerdyakov, lembrei-me de ter lido algures que Dostoevsky frequentemente usava analogias para compor o nome dos personagens, o que se perde nas traduções ou quando se desconhece o contexto histórico. Assim, por exemplo, Karamazov era uma evocação evidente de Karakozov, um terrorista que tentou matar o czar.

    O romance tal como o conhecemos seria só a primeira parte da obra, e Dostoevsky preveniu isso logo de início, mas como ele introduziu tantas histórias dentro umas das outras, o leitor esquece. A obra completa mostraria como Alexis Karamazov, o bom e puro Alyocha, aquele exemplo de simplicidade cristã e de amor pelos outros, se converteria num terrorista. Mas isto, Dostoevsky morreu sem nos dizer.

  7. Caro João Bernardo,

    Agradeço-te novamente pelas tuas valiosas orientações. No entanto, sinto-me compelido a retomar a questão que talvez tenha passado despercebida: «a tua abordagem singular abraça a “dureza da liberdade” encontrada em Dostoiévski como uma conclusão política valiosa. Seria de enorme interesse se pudesses expandir e detalhar essa perspectiva para a nossa compreensão». Gostaria de compreender mais profundamente o que queres transmitir com essa noção de «dureza da liberdade». Ela evoca, para mim, certos aforismas de Sartre, como «o homem está condenado a ser livre». Além disso, gostaria de saber se Sartre influenciou, de alguma forma, o teu pensamento e se algumas de suas teses te parecem interessantes.

    Ressalto, igualmente, a tua contribuição no artigo intitulado «Que povo é este, que povo?», onde proferiste: «Já Ivan Karamazov, num dos seus sonhos, entendera o enorme peso da liberdade, o sofrimento trazido pela responsabilidade de ser livre. Numa humanidade sem sofrimento, em que as mulheres e os homens fossem inteiramente felizes, não haveria estímulo para mudar as situações, para inovar, para criar algo que se pretendesse melhor ou, pelo menos, diferente. Nada distinguiria essa sociedade dos formigueiros e das colmeias. O fim do sofrimento é a mais perversa distopia que alguém pôde conceber. Seria o fim da história, a liquidação do futuro». Essa reflexão também me remete a Sartre, que explorou exaustivamente o conceito de «peso da liberdade».

    Adicionalmente, aproveitando as tuas observações, permito-me lançar-te outras questões:

    No que diz respeito a André Gide, gostaria de destacar uma passagem da mesma obra de Lukács: «Essas descrições constituem a parte mais vigorosa e mais sugestiva de Ser e Tempo e nelas reside, muito provavelmente, o motivo da extensa e profunda influência obtida por essa obra. Aqui Heidegger traça, com os recursos da fenomenologia, uma série de imagens interessantes da vida interior, da concepção de mundo em que se reflete o processo de desintegração da intelectualidade burguesa dos anos do pós-guerra. Imagens sem dúvida alguma sugestivas, pois são, no plano descritivo, imagens autênticas e fiéis daquele reflexo da consciência que a realidade do capitalismo imperialista, no período do pós-guerra, provoca naqueles que não têm nem a capacidade nem o interesse de se colocar para além das vivências de seu ser-aí individual em prol da objetividade, ou seja, da indagação das causas histórico-sociais que as produzem. Mas não acreditamos que Heidegger, com essas tendências, esteja sozinho em seu tempo; não só a filosofia de Jaspers expressa tendências semelhantes, mas também grande parte da beletrística do período (basta mencionar o romance de Céline, Voyage au bout de la nuit, e os casos de Joyce, Gide, Malraux e outros). De fato, e reconhecendo o que há de parcialmente justo nessas descrições de estados de alma, é preciso perguntar: até que ponto elas correspondem à realidade objetiva? Até que ponto transcendem os sujeitos que assim reagem? Não há dúvida de que essa pergunta tem uma importância crucial para a filosofia. Quanto à beletrística, o fundamental é também o nível de concreção e profundidade com que a realidade é apreendida e representada, embora, nesse caso, a margem de jogo seja muito mais elástica; as questões que surgem dessa problemática, no entanto, fogem ao contexto da presente discussão».

    Noutra secção deste mesmo livro, encontramos a seguinte assertiva: «Mas é precisamente essa combinação de um antissocialismo brutal e ordinário com uma crítica da cultura e da arte refinada, engenhosa e, às vezes, até acertada (lembremos da crítica a Wagner, ao Naturalismo etc.), que torna os seus conteúdos e modos de representação tão sedutores para a intelectualidade imperialista. A força dessa sedução pode ser vista ao longo de todo o período imperialista. Essa influência vai desde Georg Brandes e Strindberg, e a geração de Gerhart Hauptmann, até Gide e Malraux. E ela não se limita, de modo algum, à parcela reacionária da intelectualidade. Escritores decididamente progressistas, se atentarmos para o conjunto de suas obras, como Heinrich e Thomas Mann, ou Bernard Shaw, sempre estiveram sob a sua influência. Ele foi até mesmo capaz de impressionar fortemente alguns intelectuais marxistas. O próprio Mehring certa vez pronunciou o seguinte juízo a seu respeito: “O pensamento nietzschiano é ainda mais útil para o socialismo sob um outro aspecto. Sem dúvida, os escritos de Nietzsche podem ser sedutores para uns poucos jovens de destacado talento literário que ainda podem surgir na classe burguesa e que, inicialmente, estão presos aos preconceitos dessa classe. Para eles, porém, Nietzsche é apenas um ponto de passagem para o socialismo” ».

    Lembro-me de uma passagem, no teu artigo «Excerto de uma mensagem que não enviei», na qual fazes referência à figura de André Gide, a quem denominas como teu «mestre de moral e outras coisas desde os quinze anos de idade». Na conclusão deste excerto, sustentas: «Lições de moral, pois, mas de uma moral que não é aquela que agora anda por aí com o mesmo nome, mas era sinónimo de impiedosa lucidez, precisamente aquela moral que Gide ensinava e, o que é mais importante, aplicava a si mesmo, e de que Victor Serge foi um exemplo».

    Desejaria, por conseguinte, que nos ofertasses uma explanação mais pormenorizada acerca dessa crítica levantada por Lukács em relação a André Gide, bem como sobre os respectivos ensinamentos morais deste romancista, ainda que estes sejam caracterizados como transgressores e iconoclastas.

    Saudações

  8. Gebrial Dentali perdeu a noção: além de reiteradamente tutear (haja intimidade!) o JB, joga-lhe no colo uma catadupa de perguntas…
    Oxe! Manolo de Oxossi não viu o Mickey e ficou Pluto.

  9. Ulisses,

    Não te perturbes. A razão pela qual dirijo-me a João Bernardo com polidez reside, em grande medida, no facto de ter lido a sua obra ao longo de praticamente uma década. Esse respeito que nutro por ele e pelo seu trabalho é inegável. De forma diversa da maioria dos internautas, o meu conhecimento de João Bernardo, extraído das suas obras, sugere que ele não só é capaz de responder a numerosas perguntas, como também é propenso a criar textos profícuos.

  10. gibreal dintela faz-se de perturbado; e desconversa quanto à desmesura da intimidade, que nada tem a ver com ‘polidez’ – muito pelo contrário, aliás…

  11. Caro Dante Gabrieli,

    Creio que expus o tema da dureza da liberdade, inserido no devido contexto, no final de um ensaio intitulado Talvez, publicado no Passa Palavra há um ano.

    Mas ao ler o seu comentário achei irónico, se não macabro, que André Gide fosse citado a par de Lukács. Gide demonstrara uma grande simpatia pela experiência soviética até ao momento em que decidiu visitar a URSS. Regressou desiludido e indignado, como tantos outros, e escreveu sobre essa experiência um livro devastador. Num plano imediatamente prático, deve-se à acção de Gide e de um grupo de personalidades que ele mobilizou a libertação de Victor Serge, que estava preso na Sibéria, e a sua saída da União Soviética.

    Quanto a Lukács, começo por recordar que hoje os discípulos de Marx transformaram uma obra de análise crítica e profundamente radicada em transformações históricas num conjunto de dogmas. E, como sucede nas igrejas, além da nave principal com o respectivo altar-mor há as capelas dos santos, cada um com os seus dogmas próprios. Lukács é o mais estranho destes santos, porque foi um mestre na arte do ziguezague. Tal como a mãe do presidente Lula, que começou por não saber ler nem escrever, também Lukács começou por não ser marxista, e Thomas Mann traçou em A Montanha Mágica o retrato desse primeiro Lukács. Mas a iluminação que Lukács recebeu na estrada de Damasco levou-o a escrever o História e Consciência de Classe, de que rapidamente se auto-criticou como obra esquerdista, e adoptou então como norma de conduta a obediência à linha oficial ou, melhor dizendo, às sinuosidades e circunvoluções da linha oficial. Até que em 1956 Lukács aderiu à revolução húngara, desempenhando funções dirigentes, para aceitar em seguida o regime que sucedeu ao esmagamento dessa revolução. Tudo somado, se Lukács pode ensinar alguma coisa é a arte da subserviência política.

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