Por Elves Cunha

É muito comum ouvirmos falar nos meios de esquerda sobre a consciência de classe. Afinal, esse é um termo antigo e corrente no debate marxista — e a princípio ajudaria a entender a luta de classes a e fazê-la progredir. No entanto, parece haver certo lugar-comum, cômodo, nesse discurso em nosso meio: a falta dela entre trabalhadores. Quando se usa o termo consciência de classe é em seu negativo, como uma espécie de denúncia ou lamento.

Diz-se, implicitamente, que a consciência de classe é um estado no qual o trabalhador, estudante, seja lá quem for, entende que precisa lutar pelos seus direitos, ir a manifestações, se filiar a partidos de esquerda, apoiar um candidato de esquerda ao parlamento etc. Na verdade, dizer que o trabalhador “entende” a luta é contraditório na boca de quem profere essas palavras, porque o que se quer realmente dizer é que o trabalhador “concorde com meu partido, vote no meu candidato, vá à minha manifestação”. Ou seja, condiz comigo, que já tenho essa consciência. Ou, ainda se formos mais a fundo, foi educado por um iluminado (um igual a mim) a lutar por certas pautas, de uma maneira específica. A consciência de classe desejada é a equivalência à posição daquele que julga.

Essa prática, além de mostrar uma prepotência e arrogância tremenda com as classes trabalhadoras, também denota um erro político e teórico, pelo fato de o militante supor que está livre da ideologia dominante, ser uma ilha revolucionária cercada de barcos afundados. Quando, na verdade, ele está fazendo o papel de afogado, que, se debatendo para não sufocar, tenta agarrar todos em volta para afundarem juntos.

Tenhamos a coragem de dizer: essa prática não é revolucionária. Ora, diversos aparelhos ideológicos de Estado, ou instituições burguesas, funcionam da mesma maneira, ou seja, ajudam a manter as coisas como estão. A escola funciona assim (o professor fala e os alunos escutam, tratados como copos vazios a serem cheios), as igrejas funcionam assim (o pastor traduzindo a interpretação correta das palavras do deus e os fiéis se entregando de corpo e alma), o exército também (o comandante e os soldados, numa relação de disciplina e humilhação), inclusive a política representativa de modo geral. Por que pensar que ter as mesmas práticas vai nos levar a um resultado diferente, qual seja, a emancipação desses trabalhadores, a revolução?

Bom, se essa militância no entorno da consciência tem resultados tão negativos, por onde devemos começar? Entendendo que a ideologia é concreta, podemos precisar que ela nasce da organização prática do cotidiano. Enquanto militantes honestos perdem tempo e energia pensando de onde nasce a razão, qual será a infalível nova estratégia de conscientização revolucionária, perdem de vista não apenas o horizonte, mas também o chão. A política nasce do dia a dia, as dificuldades concretas moldam o que as pessoas acreditam.

A mãe que perde o filho para as drogas vai defender a militarização das escolas, pois com a polícia e o exército lá dentro, o crime (momentaneamente) não entra. Isso é uma ideia que não vem de uma mentira implantada, é uma resposta imediata a uma situação concreta de violência e desespero. A rede de apoio e de solidariedade prestada pelas igrejas quando se perde um filho para o crime ou para o vício não é mero convencimento, é uma prática coletiva que busca envolver essas famílias, estar presente durante todos os momentos, inclusive nos mais sofridos.

Isso nos coloca a tarefa de precisar nossa teoria e prática e parar de pautá-las no discurso da “consciência”. A ideologia dominante é formada materialmente, e aqueles que lutam contra essa ideologia precisam criar uma base material para que surja uma ideologia contrária. Mas como? Onde devemos procurar o aprendizado concreto para a criação de uma nova sociedade e não mais reproduzir as antigas relações? Os exemplos estão em todos os lugares.

A ideologia é fruto de uma luta de classes concreta cotidiana, sistemática e onipresente. Ela não se dá apenas no discurso, na consciência. Ela se dá nos locais de trabalho, dentro de casa, na escola, nos bairros. E a resistência não se dá apenas no âmbito da propaganda (palestras, campanhas eleitorais, comícios, redes sociais, partidos políticos), ela se dá principalmente de forma surda e clandestina. A luta pela sobrevivência possui vários campos de batalha: contra os efeitos da inflação na cesta básica, através da solidariedade mútua de familiares, amigos, vizinhos (chegando à necessidade de se expor a condições horríveis de trabalho, acumulando bicos, trabalho infantil etc); contra a violência doméstica do homem contra a mulher; as formas de diminuir o peso das condições de trabalho, burlando ou desacelerando o ritmo da produção, cobrindo falhas de colegas; pela educação, com grupos de estudo para provas, ajudando os colegas que estão indo mal em determinada disciplina. Os exemplos de resistência coletiva são vários, e muitas vezes invisíveis aos olhos da política formal, do discurso, da manifestação pública. Em alguns casos, tomar posturas agressivas pode ser catastrófico, como se revoltar com o chefe e ser demitido, ou agir contra o crime organizado e tornar um alvo a si e à sua família.

A nosso ver qualquer militante que se preze não pode se destacar da massa, se chocar contra ela, agir como um sabe-tudo. É preciso calar e ouvir. Não há outro caminho a não ser aprender com o povo, aprender as formas de organização que o povo tem, pelo que ele luta, como ele luta, qual é o problema concreto. Sem isso, o militante por mais bem intencionado que for só acumulará frustrações, pois ao decidir sozinho qual o problema e a solução previamente, não enxergará o concreto e não receberá a mínima atenção dos trabalhadores, até será ridicularizado. Ou pior, irá confundir uma parte da base, levá-la a soluções reformistas que a longo prazo podem se transformar em derrotas políticas, contribuindo para a frustração daquela parte da base, da sua saída do movimento, ou ainda aumentando o efetivo do exército do inimigo com seus próprios companheiros. Pode ser produzido o isolamento do militante e a descrença em diversas formas de luta, e com a frustração do próprio, os tão conhecidos ataques ao povo, chamando-os de “alienados”. Essa posição é rechaçada pelo povo, e esse isolamento um efeito pretendido pela ideologia burguesa, uma base prática e uma militância arrogante e isolada.

Como lutar contra esses “impulsos naturais”? O estudo é fundamental, pois ele condensa as experiências práticas históricas da classe operária, das revoluções, das resistências. Mas estudar não é só ler livros, estudar é investigar a situação concreta de onde se está inserido. Saber a história dos camaradas, saber a história do bairro ou do local de trabalho, da escola, a luta que vem sendo travada, conversar sobre as opiniões dos seus pares, e de todos eles, inclusive os mais calados e tímidos, os mais velhos e experientes, os mais jovens e enérgicos. Estudar o inimigo, suas posições, suas ações concretas de dominação, seus aparelhos e como eles interagem com a massa. O estudo também é experimentação, vivência, luta. Lutando pelos seus companheiros, pelo que eles acreditam, por seus problemas na vida pessoal fora do trabalho. A luta contra o adoecimento psicológico, contra o assédio, para estabelecer solidariedade, para estabelecer o lazer de uma forma coletiva, para estar o mais próximo possível da massa. Mesmo aquilo que nada parece ter de político é de fundamental importância, pois a política para o povo é antes de tudo a luta pela sobrevivência.

Sendo assim, nossa prioridade é observar e participar, nos integrar às lutas cotidianas que o povo já trava e aprender todas as lições possíveis dessa prática, só assim sendo possível enxergar os caminhos revolucionários e coletivos que devem ser trilhados para a vitória. Investigar, estar atento à realidade à nossa volta, estabelecer um ambiente de discussão para determinar os melhores meios de ação, quando avançar e quando recuar, de forma que o aprendizado da luta coletiva seja realmente coletivo, e não monopolizado por um pequeno grupo, para fortalecer o movimento e a organização, lutando assim contra a apatia e a desesperança.

As obras utilizadas para a ilustração deste artigo são do artista italiano Michelangelo Pistoletto

10 COMENTÁRIOS

  1. Texto muito coerente e direto. Precisamos mesmo desse trabalho concreto e baixar a guarda e estar mais próximo do nosso povo.
    Eu não sei qual relação das imagens com o texto. Ficou estranho.

  2. Excelente texto. Temos que nos ligar as massas, partir de seus problemas, estuda-los com afinco junto com o que temos de mais avançado e sistematizado da luta de classes, o marxismo leninismo. Nunca se colocar acima das massas , para se confundir/unir com os Exploradores, nem ficar atrás reclamando, fazendo juízo. Temos que, com paciência e perseverança, nos colocar a sua frente para dirigi-las. Isso nos dizia Mao.
    Aparte o gosto duvidoso do autor quanto as imagens (preferiria umas fotos da luta de massas) temos um texto excelente. Concordo com a crítica anterior..

  3. Texto muito bom, só queria fazer uma crítica sobre a escolha das imagens.
    Apesar das imagens conterem uma referência “refinada” (pesquisei rapidamente sobre o artista e sobre o movimento que ele participa) pra reforçar o conteúdo do texto de uma forma sutil, essa forma de comunicação não é a melhor, principalmente quando a pessoa não tem tempo pra ficar pesquisando artista, movimento etc. Quanto mais direto melhor, arte é resistência, mas ela tem que ser acessível, assertiva, clara, aliás, é o que diz o texto também, se aproximar das massas.

  4. Há muitos anos, em Portugal, durante o fascismo, um amigo que estava numa das prisões políticas, em Caxias, pediu-me por interposta pessoa que lhe enviasse um livro sobre arte contemporânea, com ilustrações. Éramos ambos militantes clandestinos do Partido Comunista. Enviei-lhe um de Herbert Read, profusamente ilustrado. Na sala onde ele estava havia uma porção de intelectuais e bastantes camponeses do sul do país, o Alentejo, onde a influência comunista era, e ainda é, muito forte. Algum tempo depois, quando ele foi libertado, contou-me uma experiência que fizera. Pedira a cada um dos outros presos que escolhessem no livro as duas ou três obras de que mais gostassem. Todos os intelectuais, disse-me ele, escolheram pinturas figurativas, realistas de preferência. Mas a maior parte dos camponeses escolhera pinturas abstractas.

    No receio dos intelectuais de que os trabalhadores não compreendam uma arte que é arte transparece a ideia que esses intelectuais fazem dos trabalhadores. Afinal, quem impôs o zhdanovismo e o realismo socialista não foram os trabalhadores, mas a burocracia soviética. Quando a revolução russa ainda estava pujante, ela fundou a Proletkult, atraiu e acolheu artistas exilados ou marginalizados como Kandinsky, Chagall, Malevitch, El Lissitsky, Rodtchenko e deixou trabalhar em paz os vorticistas. Mas quando a ditadura burocrática se instalou sobre a classe trabalhadora soviética, o primeiro passo que deu foi expulsar ou silenciar a vanguarda artística.

    Pelos comentários, vejo que não faltam candidatos para repetirem a experiência.

  5. Não sinto o mesmo incomodo em relação a escolha das imagens e a sua disposição no texto. Acho que, de maneira abstrata, elas representam o texto; o que ele traz enquanto conteúdo e o que propõe. O que seria a consciência se não algo abstrato? poderíamos quantifica-la? toca-la?

  6. A única explicação para tantos comentários contra as provocantes imagens escolhidas é o Passa Palavra ter publicado sem saber o texto de algum militante de algum grupúsculo maoísta, que agora ficam de mimimi porque as imagens não batem com o dogma do realismo socialista. Pode ser também que os militantes de algum grupúsculo maoísta tenham gostado desse texto, mesmo não sendo de “camarada”, mas quiseram “dar a linha” também nas ilustrações. Pelo gosto deles, o Passa Palavra só bota figuras nos artigos com fotos das Oito peças-modelo, e O oriente é vermelho vira trilha sonora do site…

  7. A ”consciência de classe” e as formas de relações sociais que superam as atuais virão da realidade prática, mas ao mesmo tempo não parece que pensar que devemos integrar e observar, praticar a solidariedade, não cavarmos nossa própria cova ao tornarmos alvos..tudo isso, trás um caráter de ”não-urgência”?
    E, ao mesmo tempo, um relação paradoxal entre o avanço e o recuo na luta.. enquanto se atua na realidade prática é possível avançar, ainda que de maneira ”atomizada”, local… mas esses avanços não têm sido suficientemente rebatidos pela capacidade do capital de se adaptar e cooptar as pautas, lutas e etc? Me parece, às vezes, que a esse discurso de que devemos atuar na realidade prática, local e imediata, falta algum componente. Fazemos isso e ao longo do tempo o que vemos é que essas iniciativas locais são desmanteladas diretamente ou perdem seu caráter de ”rompimento” com as formas vigentes de relações sociais..ou vemos que os progessos alcançados são facilmente revertidos no futuro, por conta das condições materiais impostas por uma crise, por exemplo.. e nessa reversão tem fundamental papel o aparato idealológico dominante. As narrativas criadas e disseminadas as massas prestam um papel fundamental para ”reverter”, por exemplo, aquilo que poderíamos ter visto como avanço na luta.
    Por isso os paradoxos. Nos focamos em atuar na nossa realidade material imediata – mas nossa capacidade de atuação é limitada por nossos meios materiais de sobrevivência, de tempo disponível, etc. Ao focar na realidade imediata talvez nos distanciamos do aspecto ideal, discursivo, que também ajuda a moldar a percepção da realidade das pessoas que compõe as massas, mas também não temos acesso aos meios de disseminação de ideias e nossa ação nesse campo é tão ou mais restrita que no campo mais ”puramente prático”..
    Me pergunto se falar em foco na ação real e imediata, solidariedade e etc não contribui em reforçar uma prática e uma crença que não tem sido capaz de resistir aos avanços da sociedade do capital

  8. “Lutando pelos seus companheiros, pelo que eles acreditam, por seus problemas na vida pessoal fora do trabalho.”

    talvez seja difícil ter paciência e pensar inclusive a médio prazo em um Brasil “em vertigem” desde 2013. Talvez o verdadeiro desafio revolucionário seja justamente o de aprender a lutar contra esse sintoma contemporâneo, a ansiedade, no plano individual e coletivo. Mas talvez os 50.000 homicídios anuais prévios a 2013 já mostravam que a sensação de urgência é bastante plástica neste país.

    Proponho uma hipótese, apenas, seguindo o pensamento do Gabriel.
    Será que a tal “atuação na realidade prática” não está, ao menos em alguma medida, viciada justamente por aspectos teóricos e quadros de análise que tem sua origem em verdadeiras “consciências de classe”? Pois ALGO guia a atuação militante, não existe uma “linha de base” da classe trabalhadora onde como militantes apenas realizamos o potencial “natural” de nossa classe. Talvez essa naturalização extrema da classe termine levando a que uma atuação “na realidade prática” seja entendida como “o óbvio”, “a única forma”, que tem como único resultado possível o “avanço da luta contra o capitalismo”, e, portanto, a uma ortodoxia às avessas. Pois por meio desta naturalização, existe a suposição de que a experiência de luta tem o mesmo sentido e significado para todos, em uma projeção que não estaria tão distante daquela visão clássica de “consciência de classe” que o autor do texto comento. A diferença é que ao invés de “forçar” essa consciência nas massas ignorantes de forma escolar, passamos apenas a já supô-la, esperando um efeito análogo.

  9. Belo texto. Entretanto, um porém: acredito que nossa tarefa também é levar o partido histórico do proletariado aos trabalhadores em luta, isto é, a teoria revolucionária e o histórico de lutas tem q se unificar com a classe hoje e isso é nossa tarefa, senão a merda se refaz.

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