Fotografia de Araquém Alcântara

Por Uma Tartaruga Ninja

O direito de viver, poeta Ho Chi Minh,
Que golpeia do Vietnã por toda a humanidade
Nenhum canhão apagará o sulco de teu arrozal,
O direito de viver em paz!
(Victor Jara)

A esquerda brasileira formou-se numa relação íntima com o nacionalismo. Tratando-se de um país surgido da colonização, que no século XX se percebe na periferia do capitalismo mundial, não é de se espantar que o discurso da esquerda tenha sistematicamente transitado entre a revolução proletária e o desenvolvimento nacional. À ação imperialista do capital yankee era possível opor, simultaneamente, a luta dos trabalhadores e o capital tupiniquim — confundindo e fundindo ambos, esse terceiro-mundismo forjava no horizonte um projeto nacionalista de desenvolvimento.

Vá lá: tratava-se ainda de um projeto que se apresentava progressista. Prometia um futuro melhor. Tornar-se uma nação desenvolvida, rica, soberana, independente no cenário geopolítico, com cidadania e direitos sociais universais! Seria preciso, para tanto, derrotar o imperialismo, que ameaçava rapinar as riquezas naturais do território nacional: “o Petróleo é nosso!” parecia soar, também, como um grito por igualdade.

Mas conforme esse desenvolvimentismo se realizava, começava a ficar claro que tal igualdade não viria; e que o capitalismo tupiniquim não seria menos predatório diante das riquezas naturais. Com a emergência do discurso ecológico no final do século XX, o progresso nacional se via confrontado com a denúncia da devastação do meio ambiente. Mas a esquerda terceiro-mundista (tentando sobreviver após o “segundo mundo” ruir) soube refazer sua retórica diante dessas críticas. Lançou desconfiança — não sem razão — sobre as boas intenções dos ambientalistas: por que tanto interesse das ONGs internacionais justamente pelas nossas florestas tão ricas em recursos naturais? Em contrapartida, passou a argumentar que apenas um governo popular e soberano pode garantir a integridade da Amazônia, evocando miticamente a relação harmoniosa entre os povos tradicionais e a natureza.

Uma nuvem paira sobre São Paulo

Eram duas da tarde da segunda-feira, 19 de agosto, quando o dia escureceu. O céu se fechou em cinza, ganhando ares macabros. Vai chover! Não choveu. O clima tenebroso que cobriu a cidade fez aflorar o espírito apocalíptico que ronda a imaginação social em tempos de crise econômica. Um conhecido que trabalha com comércio ambulante contou que ele e os colegas empacotaram as mercadorias e voltaram para casa à tarde mesmo, otimistas com a chegada do fim dos tempos.

Rapidamente a esquerda já divulgava a explicação nas redes sociais: são as queimadas na Amazônia! A devastação da floresta cresceu como nunca antes com o governo Bolsonaro. Estão destruindo a natureza, o mundo vai acabar, a humanidade vai toda morrer! Talvez o apocalipse soe reconfortante também a uma esquerda sistematicamente derrotada. Não foi difícil para a direita zombar de todo aquele alarde: como uma fumaça pode voar 2 mil quilômetros e tampar o céu em São Paulo? Agora Bolsonaro tem culpa até do inverno? Isso é fake news criada pelas ONGs que estão contra o governo.

Terça, quarta, quinta-feira, a vida continua. Você ainda tem de ir trabalhar. É mais difícil acordar às cinco da manhã no frio, o trabalho é uma merda e o céu cinza deixa os ânimos ainda mais para baixo. Era esse mundo que precisava acabar, mas parece impossível. Há uma íntima conexão entre a impotência do proletariado e a força cínica do bolsonarismo. Apertado no ônibus num dia sem sol, a denúncia das queimas da Amazônia podem soar como mimimi e fake news — mas, se for verdade, a perspectiva de que o fogo queime tudo de uma vez passa a ser até uma esperança.

O nacionalismo tornou-se uma força destrutiva distópica

Numa era em que o capital se transnacionalizou como nunca antes, a promessa desenvolvimentista nutrida pelos nacionalismos desde o século XIX encontra um limite objetivo. Não se pode transpor uma barreira material pela mera retórica. A utopia de igualdade prometida pelo progresso nacional se frustrou sucessivas vezes, sobrou o território e o governo.

O último nacionalismo possível é o do Bolsonaro: queimar a Amazônia antes que a ONU tire ela da gente. O único jeito de impedir os estrangeiros de roubá-la de nós é gastarmos toda sua riqueza o mais rápido possível. O nacionalismo tornou-se uma força destrutiva distópica.

Com uma clareza dificilmente vista, estamos assistindo a mais um país europeu, dessa vez a França, por intermédio do seu presidente Macron, realizar ataques diretos à soberania brasileira, que inclui, objetivamente, ameaças de emprego do poder militar.

— General Villas Boas (@Gen_VillasBoas) no Twitter

Fotografia de Araquém Alcântara

7 COMENTÁRIOS

  1. “O último nacionalismo possível é o do Bolsonaro: queimar a Amazônia antes que a ONU tire ela da gente. O único jeito de impedir os estrangeiros de roubá-la de nós é gastarmos toda sua riqueza o mais rápido possível. O nacionalismo tornou-se uma força destrutiva distópica.”

    O autor parece assumir a tese de que o aumento das queimadas na floresta amazônica durante o governo Bolsonaro foi algo totalmente inédito comparado aos governos anteriores, mas na prática os dados disponíveis não indicam isso. O portal de fact checking da Folha, Agência Lupa, diz que:

    “Entre os meses de janeiro e julho de 2019, foram registrados pelo Inpe 15.924 focos de queimadas na Amazônia. Este é o maior número para a região desde 2016, e representa um crescimento de 35,6% em relação ao mesmo período do ano passado. Nos últimos 20 anos, o número médio de focos de incêndio observados nos sete primeiros meses do ano foi de 14.015 – ou seja, ligeiramente abaixo do registrado em 2019.

    Em agosto, a quantidade de queimadas registrada – apenas até o dia 22 – já ultrapassa o total para o mês em 2018 e é a maior desde 2011. Em 2019, até agora, foram 23.677. No ano passado, 10.421. Segundo o Inpe, historicamente, 87,5% dos focos de queimada na Amazônia costumam ocorrer entre os meses de agosto e dezembro, ou seja, o período do ano que ainda não foi concluído.”

    https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/08/22/verificamos-queimada-amazonia/

    E a Globo nos diz que:

    “De 1º de janeiro até esta quinta-feira (22) foram 39.033 focos de queimadas, um crescimento muito grande em relação ao mesmo período do ano passado – quase duas vezes e meia.

    O pico das queimadas foi em 2004 e 2005, com mais de 70 mil focos. Era início do governo Lula. Depois, caiu em 2006 para 33 mil. Subiu em 2007 para 47 mil. E voltou a cair em 2008 e 2009, para 13 mil. Em 2010, último ano do governo Lula, subiu para quase 44 mil. Nos anos seguintes, no governo Dilma, houve um crescimento com oscilações, até chegar a 28 mil em 2016, durante o governo Temer. Caiu então para 24 mil em 2017 e quase 16 mil em 2018 até o salto para 39 mil em 2019.”

    https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/08/23/numero-de-queimadas-na-amazonia-em-2019-e-o-maior-desde-2010-diz-inpe.ghtml

    Ou seja, apesar de consideravelmente altos, o número de queimadas ainda não é maior do que outros cenários vividos nos últimos 20 anos.
    Dito isso, por que seria uma política nacionalista a queima da Amazônia? Quem queima está interessado na exploração dos seus recursos para o lucro e, se forem médios ou grandes capitalistas, é certo que esse lucro atravessará as fronteiras nacionais e encherá o bolso de capitalistas de fora pela articulação da produção com o mercado internacional, ainda no caso destes mesmos “capitalistas estrangeiros” não serem considerados agentes ativos no desmatamento. Parece que há um ponto cego na análise do autor sobre o interesse político de uma campanha internacional de “salvação da Amazônia” encampada por Emanuel Macron, que estava politicamente fragilizado e sofrendo resistência de alguns setores na França quanto ao acordo comercial entre União Européia e Mercosul, tal como nos sugere uma análise publicada no jornal Valor:

    “Ao deflagrar uma crise internacional com relação à Amazônia, Macron reforça sua imagem de guardião do ambiente. Ele se sai bem com a opinião pública francesa, e europeia em geral, muito sensível ao tema ambiental; com o lobby ambientalista (hoje uma das maiores forças políticas na Europa), com o lobby protecionista e os produtores rurais — franceses e europeus.

    O único custo seria com o setor industrial francês, que tem interesse na entrada em vigor rápida do acordo UE-Mercosul. Mas mesmo esse setor parece que já estava resignado a que o acordo não será ratificado pelos europeus durante o governo Bolsonaro.”

    https://www.valor.com.br/internacional/6404821/analise-macron-ganhou-um-presente-de-bolsonaro

  2. oras, a queima da Amazônia é uma política nacionalista em seu conteúdo econômico, mais do que no conteúdo soberano militar. Por mais que a agroindústria tenha seus laços transnacionais, a renda da terra é principalmente brasileira. Não é nenhum detalhe o fato de ser, inclusive, um dos principais setores da produção interna brasileira, e que está em mãos de brasileiros e brasileiras. O comentário anti-tartaruga é interessante pois mostra JUSTAMENTE que o desmatamento das florestas brasileiras é uma política de desenvolvimento nacionalista que atravessou tanto governos de esquerda como de direita. A diferença é que os governos de esquerda tentaram uma farsa desenvolvimentista tradicional por meio das “campeãs nacionais”, que só podia sustentar-se com a exportação do agronegócio e do extrativismo. É o mesmo cenário para todos os países da América Latina, em termos estruturais. Bolsonaro parece não ter compromissos econômicos com a “lumpen-burguesia”, ou seja, com os industriais improdutivos que vivem às custas do Estado; ele tem compromisso apenas com a parte mais produtiva dos proprietários brasileiros, isto é, os proprietários rurais. (E sejamos justos, que o PT nunca incomodou a estes de verdade. Era um pilar do seu desenvolvimentismo nacionalista.)

  3. LL,

    Há muitos anos atrás (foram poucos anos, mas agora parecem muitos) uma dirigente do Movimento Passe Livre de São Paulo, que era igualmente uma liderança no movimento negro, divulgou no Facebook uma imagem que representava uns escravos brancos a apanhar algodão, vigiados por um capataz negro de chicote na mão, enquanto no céu Martin Luther King assistia à cena, com um sorriso nos lábios. Um rapaz meu amigo, também do Movimento Passe Livre, criticou aquela imagem. Mas a menina respondeu que só aceitava críticas de mulheres negras. É óbvio! Só mulheres podem criticar mulheres, só gays podem criticar gays, só negros podem criticar negros, só travestis podem criticar travestis, só brasileiros podem criticar brasileiros. Neste mundo de gavetinhas há, porém, uma assimetria. É que mulheres podem criticar homens, negros podem criticar brancos, gays e lésbicas podem criticar heterossexuais, brasileiros podem criticar yankees. Não espanta que para repor a simetria haja uma reacção, encabeçada pela extrema-direita e pelos fascistas na Europa e nos Estados Unidos, reivindicando que só brancos possam criticar brancos, só machos possam criticar machos, só franceses possam criticar franceses, só italianos possam criticar italianos, só americanos possam criticar americanos.

    E tal como esse rapaz citado por você, que se apresenta como «militante do PCB», se sente no direito de escrever «Macron, nenhum brasileiro quer sua opinião sobre o lixo do nosso presidente. Ele é um lixo, fascista, escroto e burro. Mas só brasileiro pode falar isso», também Bolsonaro se sentiu no direito de afirmar, em 23 de Julho deste ano, segundo um jornal português, «Não temos preconceito contra ninguém, mas temos uma profunda repulsa por quem não é brasileiro». A lógica dos seguidores da extrema-direita ou do fascismo tem as mesmas raízes que a lógica da esquerda identitária ou nacionalista. Legitimam-se uns aos outros.

  4. O problema, disse-me um jabuti do outro lado do mundo, é que enquanto Bolsonaro é o único nacionalismo possível, será Macron o único internacionalismo possível? Esse é o problema para nós.

  5. o mundo dos possíveis é aquele café da manhã rápido, aquele sexo sem graça. Nós queremos outra coisa.

  6. Acredito que os dois primeiros comentários aqui desta sessão se complementam bem e ambos ao texto. O caro Mestre Splinter – aliás, além de marxistas o pessoal aqui é sempre bem humorado na hora de escolher os codinomes, que beleza, hahahaha – coloca de forma muito clara a confluência de interesses entre o capital nacional (sim nacional,) nas queimadas e os benefícios gerados ao capital internacional. Seria leviano fazer uma análise caricaturada, como se houvesse apenas o interesse do capital estrangeiro agindo aqui.

    Mas o que não me deixa de chamar atenção é, justamente, a ”reação da esquerda”. Uma parte parece se fazer valer do grande conceito de ”lugar de fala” para rejeitar as opiniões do Macron, por mais certas que possam ser, enquanto outra parece querer idolatrá-lo como um exemplo do que o Bolsonaro não é – um ”presidente à altura” – como se o Macron fosse um grande representante dos interesses da classe trabalhadora, não é mesmo?

    Aliás, aproveitando o momento, que recomendações de leitura poderiam me dar acerca dessa ”defesa da democracia” como algo propriamente da ”esquerda”, sendo essa uma democracia claramente dentro dos limites da ordem vigente? O que temos visto atualmente com Trump, Bolsonaro, etc, me parece ser o exemplo mais claro possível de como a ”busca pela democracia” torna o capital invisível, e se é invisível jamais pode ser atacado, porque nem existe e se existe não é um problema. E quando vemos isso aplicado ao caso do Brasil, por exemplo, com o atual presidente, fica claro que a ”esquerda” na verdade está apenas reivindicando uma democracia liberal. A conjuntura atual do Brasil e do mundo me atentaram para a necessidade de uma leitura mais teórica da questão.

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