Por João Bernardo
O esquecimento da noção de relações sociais de produção não teria ocorrido sem o declínio das lutas dos trabalhadores. O que levou a este declínio?
Num livro cuja primeira edição data de 1991 avancei a hipótese de uma sobreposição entre os ciclos de Kondratyev, ciclos económicos durando de quarenta a sessenta anos, e o que denomino ciclos longos da mais-valia relativa. «A degenerescência das formas de organização da luta autônoma», escrevi então, «é assimilada pelo capitalismo enquanto formas de organização do processo de trabalho e da vida social em geral». É curioso que dois anos depois li numa conhecida revista internacional que «pesquisadores do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, no Brasil, analisaram dados relativos a conflitos de trabalho a nível mundial desde a década de 1870. Encontraram algum tipo de relação entre as chamadas “ondas de Kondratieff”, ciclos económicos com a duração de 50 anos, e aquelas lutas. As greves aumentam durante a fase ascensional do ciclo e explodem quando ele chega ao seu ponto máximo. O último ponto máximo ocorreu em 1970. Segundo esta teoria (um tanto ou quanto forçada), se o crescimento recomeçar na década de 1990, um novo ponto máximo ocorrerá em 2020». Seria só uma coincidência a publicação do meu livro e as conclusões a que posteriormente chegou aquele Instituto brasileiro? Seja como for, o importante é que, depois de afirmar que «a crise de 1974 deu novo fôlego à estratégia da mais-valia relativa, permitindo aparentemente encetar a fase de assimilação», eu enunciei uma alternativa: «Só o desenvolvimento do quarto ciclo longo da mais-valia relativa permitirá verificar se evoluímos no sentido da internacionalização dos processos de trabalho. Não se tratará de uma constatação intelectual, mas antes de mais prática, observável na internacionalização, ou não, dos processos de luta autônoma. Se for esta a direção em que caminhamos, então com a superação do nacionalismo na classe trabalhadora iniciar-se-á um novo ciclo longo. Mas surgirão outras formas de fragmentação dos trabalhadores, em contraste com a centralização acrescida dos capitalistas e, em especial, da classe dos gestores? E, se surgirem, quais serão? É esta a questão central de que há de resultar, ou a destruição do capitalismo pelo desenvolvimento das relações sociais de tipo novo, até se constituírem num verdadeiro novo modo de produção; ou outro alento do capitalismo, mediante a assimilação de novas instituições decorrentes do colapso de lutas autônomas». Passaram quase trinta anos desde que deixei clara a alternativa.
O capitalismo, contrariamente às ilusões optimistas de alguns universitários e às proclamações demagógicas de alguns políticos sem audiência, não está hoje numa crise generalizada. O capitalismo, além de sofrer crises cíclicas, atravessa sempre crises sectoriais e crises de reorganização, como sucede actualmente. Mas essas crises fazem parte do processo de desenvolvimento e não devem confundir-se com crises generalizadas e estruturais. O que está numa crise generalizada são as lutas da classe trabalhadora, e só um avanço destas lutas pode provocar no capitalismo alguma crise profunda.
Por um lado, a classe operária tradicional, que dá à classe trabalhadora um eixo de continuidade histórica, virou-se para a extrema-direita populista, quando não mesmo para o fascismo. Aquela que deveria ser a nossa base natural é agora um dos pilares em que se sustentam os nossos piores inimigos. E, por outro lado, os novos membros da classe trabalhadora, que constituem hoje a maioria desta classe, encontram-se fragmentados sociologicamente e, por conseguinte, ideologicamente.
Numa alegoria célebre, Platão imaginou-nos como pessoas presas numa caverna e podendo olhar apenas a parede do fundo, onde se projectam as sombras de outra vida, iluminada pelo sol. Mas agora já não são as sombras do exterior que se projectam na caverna, são as imagens virtuais em que cada um se retrata e retrata os outros. As paredes da caverna são as redes sociais, e como nos libertaremos destas sombras? Não conseguiremos entender — e, portanto, combater — a fragmentação sociológica que afecta a classe trabalhadora sem termos antes entendido a obsessão pelos selfies e pelas redes sociais e a forma como o mundo virtual tem contribuído para obnubilar e estilhaçar as outras relações sociais. Hoje, os componentes da classe trabalhadora não só estão dispersos, mas seguem rumos em boa medida divergentes. E a classe, que existe no plano económico, não existe agora no plano sociológico.
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O alheamento da problemática suscitada pelas relações de produção abriu o espaço para a ecologia se difundir como um novo lugar-comum em todo o espectro político. A crítica à ecologia tem sido uma das linhas mais constantes de quase tudo o que escrevi desde 1977 e está abundantemente exposta em artigos recentes, que o leitor pode encontrar aqui no Passa Palavra ou em livro, numa versão francesa. É por outro viés que vou agora abordar a questão.
As formas de organização adoptadas pelos trabalhadores quando lutam activa e colectivamente, se lhes servem de modelo para pensarem uma remodelação das relações sociais de produção, levam-nos também a repensar a tecnologia, enquanto materialização dessas relações de produção. Porém, só raramente os trabalhadores têm conseguido manter-se à frente de uma luta, sem delegarem a sua condução às burocracias sindicais ou sem criarem outras burocracias, durante o tempo suficiente para que as novas relações sociais de trabalho possam materializar-se em esboços de uma nova tecnologia. Os casos mais importantes dizem agora respeito à inversão dos fluxos informáticos decisão / informações, já que a electrónica sustenta uma condição geral de produção indispensável à actual remodelação capitalista das relações de trabalho. Com efeito, só os fluxos decisão / informações prevalecentes na informática permitem que as empresas obtenham economias de escala independentemente da concentração física dos trabalhadores num mesmo local e mantenham a autoridade central da gestão apesar da dispersão física dos trabalhadores. É esse fluxo que sustenta a exploração na economia e a opressão no poder, por isso é compreensível que nas lutas em que os trabalhadores conseguiram afastar ou secundarizar as burocracias um dos objectivos tivesse sido a tentativa de inverter o sentido do fluxo. Já noutros lugares referi, para um estádio tecnológico anterior, o precedente ocorrido em Gdańsk em 1980, quando se iniciou o movimento que depois levaria à constituição do Solidariność. Uma comissão governamental fora aos estaleiros de Gdańsk para negociar com os grevistas, que decidiram então que as conversações ocorressem na sala onde estava instalado o sistema sonoro usado para transmitir hinos políticos, apelos à produtividade e outras directivas, mas inverteram o fluxo deste sistema, de modo a que as conversações fossem escutadas em todo o estaleiro, enquanto os grevistas, mediante microfones, podiam fazer-se ouvir na mesa de negociação.
Para detectar este tipo de transformações é preciso mais do que um olhar atento, são necessários relatos dos próprios participantes, já que não podemos esperar que os grandes órgãos de informação tratem do assunto. Seria interessante que o Passa Palavra, e aliás também outros sites, ao entrevistarem trabalhadores em luta em profissões onde predomine a infra-estrutura electrónica, por exemplo na Uber e em empresas similares, averiguassem a utilização das redes sociais e de outras plataformas para as finalidades da luta. É na tentativa de inverter os fluxos decisão / informações que hão-de travar-se as escaramuças desta época, projectando a luta de classes para o âmbito da principal técnica.
Mas é indispensável proceder aqui a uma distinção terminológica. Enquanto materialização de um sistema de relacionamento social, uma tecnologia é uma estrutura, que determina os modos como são usadas as técnicas que a integram e os sentidos em que estas podem ser desenvolvidas. Por seu lado, enquanto elementos componentes de uma tecnologia, as técnicas têm por objectivo funções específicas e podem, assim, passar a ser incluídas noutras tecnologias. A melhor analogia para entendermos a relação entre técnicas e tecnologia parece-me ser a relação entre palavras e língua. Uma língua é uma estrutura que condiciona rigorosamente todos os seus elementos, mas uma palavra originária de uma dada língua pode ser adoptada por outra, que a usa então de maneira própria. Basta pensar o que sucedeu ao enorme número de estrangeirismos incluídos hoje na língua portuguesa. O mesmo se passa com as técnicas. O fogo, por exemplo, quando primeiro foi domesticado, cumpria, muito acima de funções produtivas, funções ideológicas e religiosas. Depois nenhuma tecnologia dispensou o fogo, mas esta técnica perdeu as conotações primitivas e foi, por assim dizer, laicizada. A roda é outro exemplo de uma técnica surgida num dado sistema tecnológico e assimilada por outros sistemas. Ou os componentes da cidade, enquanto técnicas urbanísticas. Basta reflectir um pouco e os exemplos não cessam.
Ao procederem à apologia das técnicas pré-capitalistas, os ecologistas esquecem, antes de mais, que foram os problemas suscitados por essas técnicas que levaram ao aparecimento das técnicas especificamente capitalistas ou à forma capitalista de utilização das técnicas anteriores. A questão não é que a tecnologia capitalista causa problemas. Todas as tecnologias os causam. A questão é saber por que ponta iremos buscar solução para esses problemas, se a partir de uma recusa das técnicas existentes no capitalismo ou a partir da sua superação. Ora, quando fazem a apologia das técnicas pré-capitalistas os ecologistas contribuem decisivamente para ocultar que as novas relações sociais tecidas pelos trabalhadores em luta podem transformar as técnicas criadas ou assimiladas pelo capitalismo e desenvolvê-las em técnicas novas, capazes de se estruturarem numa nova tecnologia.
A mitificação de técnicas arcaicas suscitou a difusão dos produtos ditos naturais ou biológicos, que se alinham nas prateleiras mais caras dos supermercados. Ficou assim estabelecida uma via de passagem directa da ecologia às reivindicações de consumidores. O declínio das lutas da classe trabalhadora, que levou ao esquecimento da noção de relações sociais de produção, ao mesmo tempo levou à hegemonia das reivindicações de consumidores. Trata-se, ainda aqui, da aplicação à sociedade do modelo do shopping center. No plano ideológico o produtor foi substituído pelo consumidor, e o socialismo que pretendia revolucionar as relações de trabalho foi substituído pelo socialismo distributivo. Ora, tal como a celebração das técnicas arcaicas faz esquecer a capacidade das lutas directas dos trabalhadores para encetarem a transformação de técnicas, também se abandona a análise crítica das relações sociais de produção e exploração para se passar aos testes de qualidade dos produtos.
Com efeito, a ecologia pensa os produtos, nunca as relações sociais de produção. Um bom exemplo é a apologia da agricultura familiar feita incansavelmente pelos ecologistas, precisamente aquele tipo de agricultura em que é maior o tempo de trabalho não pago e em que mais se usa o trabalho infantil. Mas passo adiante, porque já tratei abundantemente do assunto neste site.
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A noção de relações sociais de produção foi ainda vítima de outro tipo de ocultamento, que corresponde a uma consolidação das relações de exploração existentes — o identitarismo.
A definição de classes sociais resulta de uma análise das relações sociais de trabalho, entendidas como relações de exploração. As relações são uma forma, e a análise das relações sociais é sempre a análise de uma forma. A teia constituída pelas relações sociais de trabalho multiplica-se, expande-se e abrange tudo, assimilando aquilo que originariamente lhe era exterior, como os ócios. É só a partir desta teia que se definem as classes sociais.
É muito diferente a noção de uma oposição nós / outros. Nesta oposição o ponto de partida do nós não é uma forma de relações, mas uma característica aparente que se assume como primacial — nos casos mais frequentes a cor da pele, o sexo e a maneira como se tem ou não se tem prazer sexual. É assim definida uma identidade, que por oposição define os outros. Quem tem essa característica são o nós, quem a não tem são os outros. As relações sociais vêm posteriormente, quando se pretende reunir todos os que exibem aquela característica, juntá-los em função só dela e subordinar-lhe tudo o resto, não na forma diversificada das relações de produção, mas numa forma aglutinadora. A condição para que uma identidade se sinta como tal, para que o nós seja nós, é a oposição aos outros. No identitarismo as relações sociais aglutinadoras não são o campo de partida, como sucede com as relações de produção para a definição das classes sociais. São um simples instrumento, válido apenas para reforçar o nós. Quanto aos outros, não lhes é atribuída nenhuma estrutura interna e funcionam somente como espelho negativo do nós.
Neste contexto, para aqueles que ainda se pretendem de esquerda o conceito de capitalismo adquiriu um carácter estritamente moral, passando a significar aquilo a que uma dada identidade se opõe. Capitalismo, para cada pretensa identidade, são os outros.
A forma estritamente aglutinadora do relacionamento social promovido pelos identitarismos confere-lhes um carácter tendencial de milícias, como facilmente pode verificar-se nos âmbitos partidário, escolar e universitário. Na época do fascismo clássico houve alguém que chamou às milícias «sartorial socialism», um socialismo de alfaiate, em que o uniforme fornecia uma fictícia identidade comum a pessoas que tudo o mais separava. O mesmo sucede com os identitarismos, e a cor da pele, o sexo ou a propensão sexual servem para mascarar os antagonismos fundamentais entre explorados e exploradores, bem como para dissimular a hipocrisia dos explorados que pretendam promover-se a exploradores. Não são as hierarquias e as estruturas sociais que ficam postas em causa pelos identitarismos, mas apenas as pessoas que as ocupam. Mudem a cor da pele ou o sexo ou as preferências sexuais das pessoas que detêm uma posição dominante, e já o capitalismo, tal como o entendem os identitários de esquerda, deixa de ser capitalismo. O identitarismo, do mesmo modo que o fascismo, procura apenas uma renovação das elites.
E assim o identitarismo amplia a base de aceitação das relações sociais de produção e de exploração. Um exemplo eloquente, vindo de quem vem, é um artigo recentemente publicado pela McKinsey, mostrando como as empresas progridem e se tornam mais rentáveis quando se abrem às diversidades de género. E como a McKinsey detém o primeiro lugar na consultoria empresarial, o que ela pratica e defende repercute-se em cascata por um grande número de empresas. Sejam os patrões mulheres ou negros ou homossexuais ou transgéneros e o capitalismo deixa de ser contestado, passando a ter um motivo mais para ser aplaudido por todas as mulheres ou todos os negros ou todos os homossexuais ou todos os transgéneros.
Ora, como os identitarismos são o sucedâneo dos nacionalismos nesta época de transnacionalização económica, acontece com eles o mesmo que com os nacionalismos, em que o enaltecimento de uma nação leva, por si só, a infamar outras nações. Assim como um nacionalismo estimula nacionalismos rivais, também um identitarismo tem estimulado identitarismos rivais. Nos Estados Unidos, por exemplo, ocorreram confrontos físicos entre transgéneros originariamente femininas e homens homossexuais, mas nos últimos anos os conflitos agravaram-se principalmente entre os transgéneros originariamente masculinos e o movimento feminista, sobretudo na sua especialidade lésbica. O caso escocês é interessante, pois o governo tencionava facilitar a legalização da mudança de género, mas as feministas protestaram, argumentando que isso contribuiria para a erosão dos seus direitos. Como entre os eleitores as mulheres são mais numerosas do que os transgéneros, não é difícil adivinhar a qual dos lados o governo cedeu. Pressões idênticas têm-se feito sentir em Inglaterra. Mas o lado oposto contra-atacou e a Câmara Municipal, ou Prefeitura, de Leeds, uma cidade no norte de Inglaterra, proibiu um encontro organizado pelo grupo feminista Woman’s Place UK porque os activistas transgéneros o acusam de transfobia; de então em diante, para evitar boicotes e agressões, as participantes só com uma ou duas horas de antecedência são prevenidas do local dos encontros. Nas palavras de uma conceituada revista internacional que sempre tem apoiado as liberdades sexuais e de género, «um movimento fundado para promover a tolerância parece mostrar-se cada vez menos tolerante». Afinal, um cartaz ostentado no desfile LGBT de Lancaster, em Junho de 2019, proclamando «As lésbicas não têm pénis» seria apenas ridículo se não constituísse um sintoma de algo muito grave.
Tal como os povos opunham, e opõem, o seu próprio nacionalismo ao nacionalismo dos inimigos, generalizando deste modo o preconceito nacionalista, também cada pretensa identidade invoca contra as identidades concorrentes o princípio comum do identitarismo, de maneira que todas acabam por recorrer ao mesmo tipo de lógica e quanto mais numerosas forem as disputas entre elas, mais essa lógica se afirma como genérica. Foi assim que o identitarismo se converteu num lugar-comum do nosso tempo, ocupando, de uma ponta a outra, a totalidade do espectro político.
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O capitalismo globalizou o mundo. Haverá um anticapitalismo que consiga aprofundar essa globalização, desenvolvendo-a como humanidade? Ou triunfarão a ecologia e os identitarismos, obnubilando as relações de trabalho e fraccionando o mundo em fragmentos destrutivos? Afinal, perante o capitalismo, o que pretende hoje a esquerda?
Referências
A primeira edição do meu livro Economia dos Conflitos Sociais foi publicada em São Paulo pela Cortez, em 1991, e as citações encontram-se nas págs. 351, 365 e 367-368; a segunda edição foi publicada em São Paulo pela Expressão Popular, em 2009, encontrando-se as citações nas págs. 461, 479 e 482. A passagem relativa ao Instituto Fernand Braudel encontra-se em The Economist, 3 de Abril de 1993, pág. 35. Além de outros textos de crítica à ecologia publicados no Passa Palavra, destaco a série de oito artigos com o título genérico Post-scriptum: contra a ecologia. Estes textos e alguns outros foram publicados em francês: João Bernardo, Contre l’écologie, [Paris]: Ni Patrie Ni Frontières, 2017. Narrei o caso de Gdańsk, por exemplo, no capítulo A complexa arquitectura da futilidade, em Rosilene Horta Tavares e Suzana dos Santos Gomes (orgs.), Sociedade, Educação e Redes. Desafios à Formação Crítica, Araraquara: Junqueira & Marin, 2014, págs. 69-70. Abordei no Passa Palavra a questão do recurso ao tempo de trabalho não pago e do uso do trabalho infantil na agricultura familiar sobretudo nos três artigos que compõem a série MST e agroecologia: uma mutação decisiva e no quarto artigo da série Post-scriptum: contra a ecologia intitulado A agroecologia e a mais-valia absoluta. O artigo Eight messages for future LGBTQ+ leaders foi publicado no blog da McKinsey em 21 de Junho de 2019. A observação sobre a intolerância manifestada pelas componentes do movimento LGBT encontra-se no artigo Rainbows and clouds. As London prepares for Pride, a row simmers in the LGBT community, publicado em The Economist, 6 de Julho de 2019.
As ilustrações devem-se a François Schuiten.
Esta série inclui também os seguintes artigos:
1. O dicionário sem palavras
2. O dinheiro não é o poder
4. O sistema da vaca leiteira
5. Tudo se esvai em fumo
6. A utopia de uma sociedade transparente
A classe trabalhadora somente aparece no plano sociológico quando cria e expande mecanismos gerais (cunhando novas relações sociais horizontais) que possibilitem a revolução das atuais condições de produção e reprodução da vida material. Contudo, não basta apenas afirmar-se enquanto classe, mas também negar-se enquanto classe. Aí surge o tema da “transição”, que seria o lapso temporal em que a classe trabalhadora se nega enquanto classe, visando superar a lógica hierárquica/antagônica da divisão societária em classes.
Diante do caráter contraditório inerentes às relações e lutas sociais, o identitarismo pode ser entendido como uma fase de transição para o encontro dessa possibilidade de “negação”, ainda que sirva exclusivamente como mecanismo social de afastá-la (já que contribui para o não surgimento da classe trabalhadora no plano sociológico). Os mecanismos recuperatórios das lutas sociais servem principalmente para isso: obstar o aparecimento da “classe no plano sociológico”, pois o seu desenvolvimento seria a própria extinção das classes e, portanto, do capitalismo.
A revolução social acontece por meio de um processo ininterrupto de encontro e desenvolvimento da próxima lógica societária que irá vigorar. Considerando que a classe trabalhadora seria aquela que encontraria a lógica de superação da divisão da sociedade em classes, o principal objetivo da recuperação das contestações sociais pelo capital seria inserir a lógica da superação da sociedade em classes dentro de seu próprio sistema de produção das condições de reprodução das classes, assimilando-a. (O fascismo e o identitarismo também se confluem nesse sentido, pois “negam” as relações de classe para mantê-las. São as pertinentes respostas capitalistas para tornar mais complexas as possibilidades de sua superação).
Diante disso, a classe trabalhadora está falhando em encontrar uma lógica de produção e reprodução da vida social que possibilite a superação do capitalismo, mormente em razão dos mecanismos extremamente efetivos de recuperação capitalista. A esquerda, por sua vez, pretende a manutenção desse sistema expandindo a lógica identitária, pois sua forma organizativa já está amoldada à lógica sistêmica recuperatória do capital, reproduzindo suas condições de existência.
Quanto à pergunta “Haverá um anticapitalismo que consiga aprofundar essa globalização, desenvolvendo-a como humanidade?” sabe-se que não há resposta a ser dada no momento, pois aparecerá quando já tiver sido produzida. Enquanto isso, luta-se e analisa-se, ou seja, exerce-se a práxis. E, considerando que a assimilação da práxis da classe trabalhadora pelo capital é um padrão histórico, temos muito caminho a frente até produzirmos a resposta.
O articulista ficará decerto feliz em saber que sua tese sobre os novos usos da tecnologia na luta contra o Estado e os patrões segue firme e forte: https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-08-23/protesters-are-using-old-tools-in-new-ways
Tal como no artigo anterior desta série escrevi que «só na imprensa ligada ao grande capital e preocupada com a administração de empresa se encontra a noção de relações sociais de produção, ou ocupa mesmo aí um lugar central», também agora posso escrever que só na imprensa ligada ao grande capital e preocupada com a administração de empresa se encontra a noção de que as lutas dos trabalhadores possam materializar-se em esboços de uma nova tecnologia. Nesta perspectiva, o comentador anterior chamou a atenção para um artigo muito interessante da Bloomberg. Cito agora outro, «Workers of the world, log on! Technology may help to revive organised labour», publicado em The Economist a 15 de Novembro de 2018.
Sobre a questão da tecnologia e luta dos trabalhadores também saiu um artigo interessante no Guardian sobre a subversão da tecnologia de gestão da força de trabalho na luta dos trabalhadores de aplicativos: https://www.theguardian.com/books/2019/aug/31/the-new-resistance-how-gig-economy-workers-are-fighting-back