Por João Bernardo

«Onde a liberdade individual é subjugada? No setor mais importante da vida moderna, no local de trabalho, na oficina, na fábrica, na emprêsa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes?», perguntou Mário Pedrosa. Mas a esquerda que sente a vocação do Estado e se oferece ao sufrágio não lhe dá resposta. Esta esquerda esqueceu o significado das relações sociais de produção, que são relações tecidas no processo de trabalho.

No capitalismo as classes dominantes são as classes que ditam a forma de organização da classe dominada. Não se trata, como sucedeu noutros sistemas económicos, de uma elite de poderosos que impõe a sua vontade a partir do exterior, em cada caso graças a um exercício de violência, iminente quando não efectivo. Pelo contrário, no capitalismo a dominação é insidiosa e interna, ela consiste precisamente em determinar a estrutura social dos dominados e reside nas conexões que controlam o âmbito e a orientação das possibilidades de acção da população trabalhadora. E o cerne, o lugar central e ao mesmo tempo mais profundo onde é ditada a forma de organização social são as relações de trabalho. As empresas, mediante o sistema de trabalho ali vigente, são o fundamento desse totalitarismo, tantas vezes chamado democracia.

Ora, a esquerda actual é alheia a tudo isso. Só na imprensa ligada ao grande capital e preocupada com a administração de empresa se encontra a noção de relações sociais de produção, ou ocupa mesmo aí um lugar central. Já eu tinha escrito estas linhas quando um amigo me chamou a atenção para um livro de Steve Shipside, que escolheu cinquenta e duas ideias apresentadas por Marx em O Capital, para explicar de que modo os gestores podem aplicá-las e aumentar a rentabilidade dos seus negócios. Que ironia, que sejam os capitalistas a usar um autor considerado inútil por uma parte crescente da esquerda!

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Numa análise em que se parta das relações sociais de trabalho, entendidas como relações de exploração, uma classe social só existe em função das outras. É este o novo sentido adquirido pela velha noção de humanismo. Se os trabalhadores conseguirem destruir as relações de produção capitalistas, retiram a razão de ser às classes capitalistas e, portanto, no mesmo gesto retiram a razão de ser a eles mesmos enquanto classe explorada.

Mas se os trabalhadores eliminarem fisicamente os capitalistas sem destruírem as relações de produção específicas do capitalismo, então geram-se a partir dos trabalhadores novos capitalistas, reconstituindo-se a classe dos gestores. Foi o que demonstraram na prática as experiências russa e chinesa, além de outras menores.

Para que seja possível a mudança nas relações sociais de produção é indispensável uma ruptura com a estrutura organizativa ditada pelo capitalismo, e essa ruptura é conseguida pelos trabalhadores quando as suas lutas colectivas são activas, isto é, quando prescindem da burocracia sindical ou, pelo menos, a secundarizam. Sempre que são os trabalhadores eles próprios e em conjunto a enfrentar os patrões, sem delegar a sua representação à burocracia sindical, nascem formas de organização antagónicas do capitalismo. E esta nova organização social nos lugares de trabalho pode desenvolver-se e gerar relações de produção não capitalistas, em que surgem outra distribuição de competências e outras hierarquias no trabalho e é repensado o controle do tempo de trabalho, implicando outros critérios de produtividade.

Todos estes problemas, embora continuem presentes no quotidiano dos trabalhadores, estão hoje esquecidos por uma esquerda preocupada sobretudo em elevar-se nas hierarquias do poder vigente. Uma vitória dos trabalhadores não consiste em ganhar mais uns reais ou mais uns euros. Uma vitória dos trabalhadores consiste em lutar pelos seus objectivos mediante formas de organização distintas daquelas que lhes são impostas pelo capitalismo. A vitória consiste em conseguirem, durante algum tempo, organizar-se de uma maneira que rompa com as hierarquias do trabalho e as hierarquias burocráticas. Se no capitalismo dominar é determinar a estrutura dos dominados, o anticapitalismo consiste na subversão dessa estrutura.

Pode argumentar-se que na dimensão do tempo histórico as lutas activas e colectivas que permitam aos trabalhadores ocupar as empresas e iniciar a remodelação das relações sociais de produção não só são muito raras como de extrema brevidade. Mas esta é uma abordagem enganadora. Nos mais potentes aceleradores de partículas os cientistas produzem e detectam partículas impossíveis de observar no mundo habitual, e a sua duração é tão ínfima que não conseguimos percebê-la mentalmente, embora visualizemos o número de zeros e operemos matematicamente com eles. No entanto, são essas partículas que nos permitem entender a estrutura daquilo a que, por hábito, ainda chamamos matéria. Passa-se o mesmo com as lutas activas e colectivas dos trabalhadores. Apesar da sua escassez e da sua curta duração, são elas que nos permitem entender os fundamentos da estrutura social do capitalismo. Essas lutas revelam-nos directamente o carácter das relações sociais de produção.

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A explicação originária para o facto de a esquerda ter esquecido a noção de relações sociais de produção é simples. Ela deve-se à semelhança de estrutura entre as empresas e os partidos políticos. Aliás, e para além dos factores inerentes a qualquer aparelho burocrático, o facto de os partidos de esquerda se situarem no mesmo âmbito de eleitoralismo dos demais partidos faz com que a estrutura de todos eles tenda a assemelhar-se.

Não resisto a evocar aqui um exemplo. Miguel Casanova, filho de um dirigente histórico do Partido Comunista Português, era um funcionário do Partido, que formulou críticas à orientação seguida relativamente ao governo socialista. A direcção do Partido decidiu então transferi-lo para outras funções e, como ele se recusasse a aceitar esta sanção, foi demitido em Maio de 2018. Ora, Miguel Casanova recorreu ao Tribunal do Trabalho, alegando que fora demitido sem justa causa, e os juízes deram-lhe razão em Junho de 2019, condenando o Partido Comunista a reintegrá-lo nas suas antigas funções. O Partido anunciou que iria apresentar um recurso, mas desde já o interessante neste caso é o facto de um tribunal ter estabelecido uma equivalência entre um partido político e uma empresa e ter colocado no mesmo patamar um militante político responsável e um trabalhador assalariado.

É neste contexto que as relações sociais que sustentam o processo de produção e as que sustentam os aparelhos políticos ou quaisquer outros aparelhos burocráticos são deliberadamente confundidas.

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O esquecimento das relações sociais de produção foi oficializado pelos regimes soviéticos. O stalinismo e o que apesar de tudo foi a sua oposição oficial, o trotskismo, substituíram a problemática das relações sociais de produção pela das relações jurídicas de propriedade, na medida em que resumiram o socialismo às nacionalizações, que na realidade foram estatizações. E assim a noção de socialismo, originariamente referida a uma transformação das relações sociais de produção, ficou limitada a uma mudança nas relações jurídicas de propriedade.

Esta alteração das formas jurídicas de propriedade não modificou as relações de trabalho, simplesmente colocou a classe dos gestores em todos os lugares que antes eram ocupados pela burguesia. Enquanto no capitalismo concorrencial a propriedade dos meios de produção é partilhada pela burguesia e pelos gestores, no capitalismo de Estado inaugurado pelo regime soviético toda ela coube exclusivamente aos gestores. Ora, para proceder a essa operação os gestores têm necessitado em muitos casos do apoio dos trabalhadores. Assim, convém aos gestores fazer crer que a burguesia de propriedade privada é a única inimiga dos trabalhadores. Por isso, no plano ideológico, recusam a noção de classe dos gestores. A esta secular ambiguidade na conjugação da luta dos trabalhadores com os anseios dos gestores se tem chamado socialismo, e é ela que explica a degenerescência da esquerda e as sucessivas falências dos projectos de remodelação social. Quando os trabalhadores se tornam conscientes da existência de uma classe de gestores aquela ambiguidade desfaz-se.

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O modelo das estatizações generalizadas e integradas num centro único entrou em falência com a derrocada dos regimes soviéticos. Mas as estatizações não sistemáticas e parcelares, sobretudo as dos serviços públicos, continuam a ser defendidas pela esquerda. Na verdade, os políticos — os gestores da política — pensam que os mecanismos eleitorais lhes assegurarão algum tipo ou grau de controle sobre as empresas estatizadas, enquanto sabem que raramente terão competência para ascender à direcção de grandes empresas privadas.

O esquecimento das relações sociais de produção, agravado pelo desprestígio do modelo soviético de remodelação das relações jurídicas de propriedade, levou a privilegiar a distribuição sobre a produção. Regressou-se assim a um socialismo primitivo, de raiz mais religiosa do que económica, para o qual o capitalismo seria um roubo, cabendo ao socialismo uma vocação distributiva. Porém, Marx pusera em causa a base daquele socialismo. Se o roubo era a transgressão, Marx considerara o capitalismo não como uma transgressão, mas como a norma. Para ele não era a violação da regra do jogo, mas a própria regra que devia ser combatida.

Ora, o socialismo distributivo agora ressuscitado pelo programa da esquerda está intimamente ligado à luta contra a corrupção, e a crítica da economia foi substituída por sermões morais. Uma das grandes lições do marxismo mudou ironicamente de campo, porque é hoje a direita a pensar em termos de interesses, enquanto é a esquerda que passou a pensar em termos de ética e de preconceitos morais, a tal ponto que, em vez de falar de luta de classes, fala de assédio dos patrões e assédio do capital.

A complexidade da luta de classes ficou assim transformada na divisão simplista entre os muito ricos e a multidão, que dissimula numa escala contínua de rendimentos as clivagens entre classes, as suas hierarquias internas e a sua divisão de funções. Com esta análise da sociedade feita por uma mentalidade de comerciante ou, mais modernamente, com esta aplicação do modelo do shopping center, deixou de se falar de classes e passou a falar-se de pessoas.

Difundiu-se assim a noção de que basta opor ao capitalismo mau um bom capitalismo. A exploração é confundida com a desigualdade na distribuição dos rendimentos e a solução seria um capitalismo benemérito. O socialismo distributivo aparece agora como um programa que funde a esquerda nos outros populismos, gerando uma nova convergência, ou cruzamento, da direita e da esquerda, que sempre alimenta os fascismos. O populismo actual é o terreno prévio de um fascismo pós-fascista, substituindo a clivagem entre classes pelos antagonismos entre o nacionalismo e o cosmopolitismo, entre a tacanhez de espírito e a abertura mental. O populismo é sempre um anti-intelectualismo, porque a demagogia caminha invariavelmente a par da ignorância, e o anti-intelectualismo é um dos fios condutores que leva do fascismo clássico ao fascismo pós-fascista. Por isso a base de apoio do populismo é a massa atreita a ser conduzida pela demagogia, e o principal ardil dos fascismos é a conversão da luta de classes em ressentimento. Assim como a luta de classes tem como objectivo a transformação das relações sociais de produção, o mecanismo do ressentimento é a inveja aos ricos, e o socialismo distributivo é a resposta a este ressentimento.

Na realidade, porém, é funesta a confusão entre riqueza e poder. Se quisermos usar um critério rápido e prático, não devemos prestar atenção ao dinheiro que um rico tem, mas à quantidade de pessoas que um capitalista pode demitir. Dou um único exemplo. Em 2018 o chief executive officer do Deutsche Bank, Christian Sewing, recebeu em pagamento € 7 milhões, o que o converteu num dos gestores mais bem pagos da banca europeia, mas não é isto que revela o seu poder. Em Julho de 2019 ele decidiu demitir 18.000 dos 91.500 trabalhadores do banco, cerca de 1/5 da força de trabalho. É nestes termos que a análise ascende, dos meros rendimentos, ao plano das relações sociais de produção.

Mas por que motivos a esquerda pôs de lado essas relações sociais?

Referências
A citação de Mário Pedrosa encontra-se em A Opção Imperialista, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, pág. 347. O livro de Steve Shipside é Marx. 52 idées du Capital à utiliser aujourd’hui dans l’entreprise, [s. loc.]: Maxima, 2009.

É escusado indicar a proveniência das ilustrações.

Esta série inclui também os seguintes artigos:
1. O dicionário sem palavras
3. Dois lugares-comuns do nosso tempo
4. O sistema da vaca leiteira
5. Tudo se esvai em fumo
6. A utopia de uma sociedade transparente

7 COMENTÁRIOS

  1. Caro João Bernardo,

    A tua afirmação de que a direita hoje pensa em termos de interesses e a esquerda em termos de preconceitos morais, levou-me questionar sobre os posicionamentos da extrema-direita mundial ligada a Steve Banon (mas não só) e as questões do chamado marxismo cultural, da ideologia de gênero etc. Não seria um posicionamento também dessa parte da direita nos termos dos preconceitos morais?

  2. Tales,
    Eu não confundo direita com fascismo, e distingo mesmo extrema-direita radical e fascismo. Ora, Bannon é um agente do fascismo e, neste momento, da articulação entre fascismo e extrema-direita radical. Se forem precisos nomes para ilustrar as coisas, na direita situam-se a chanceler Merkel ou o presidente Macron. Aí «os interesses».

  3. Caro João Bernardo,
    Teu último comentário me deixou meio em dúvida. Como diferenciar nitidamente a extrema-direita do fascismo? Minha aposta vai no fator mobilização das classes subalternas para uma reestruturação autoritária do Estado, e também no fator entrecruzamento de temas caros à esquerda e temas caros à direita. Assim, portanto, para usar alguns exemplos, poderíamos dizer, com absoluta certeza, que a Ação Integralista Brasileira foi um dos fascismos na história do Brasil, ao passo que os militares que governaram o país entre 1964 e 1985, adeptos da doutrina da segurança nacional, eram de extrema-direita, mas não fascistas. Estaria correta esta avaliação?
    Grato.

  4. O problema é que existe e sempre existirá mecanismos para que alguns trabalhadores se tornem chefes e assim se mantém a desunião entre eles. As diferenças e as rivalidades entre os trabalhadores são muitas. Seja uma empresa ou um bairro popular, há variadas hierarquizacoes.

    O que faz supor que um igualitarismo proletário venha um dia a derrubar o capitalismo senão uma fé profunda?

  5. Elenilson,
    Sim, é exactamente isso. Mas se lhe interessar uma resposta mais completa, remeto para o meu livro Labirintos do Fascismo, na 3ª versão, o Capítulo 2 da Parte I, nas págs. 44-69, que pode ver aqui. Há uma terminologia nas págs. 51-52. Muito sinteticamente, considero que o campo do fascismo é demarcado por dois eixos. Um eixo radical, que reúne, num pólo, o conjunto partido + milícias com, no outro pólo, o conjunto sindicatos + milícias. E um eixo conservador, que reúne, num pólo, o Exército com, no outro pólo, as Igrejas. Para existir um movimento fascista basta o eixo radical, mas para que se instaure um regime fascista é necessário que o eixo radical e o eixo conservador se articulem. O eixo conservador, por si só, nem constitui um movimento fascista nem é suficiente para a instauração de um regime fascista. Houve golpes militares, abençoados pela Igreja, que instauraram regimes fascistas, mas para isso tiveram de se articular com as instituições do eixo radical, o que não sucedeu no Brasil em 1964-1985.
    Há ainda uma questão que devemos sempre ter em conta. É que, se o socialismo ou o liberalismo ou o conservadorismo têm genealogias próprias e razoavelmente bem definidas, o fascismo, pelo contrário, é muito plástico. O facto de resultar do cruzamento de um eixo radical com um eixo conservador e o facto de o próprio eixo radical conjugar o eco de temas sociais com os ecos do nacionalismo fazem com que o fascismo tenha uma periferia difusa e gere variantes diferenciadas.

    M.,
    Tem-se fé em algo que nos cai do céu. Neste caso, «que um igualitarismo proletário venha um dia a derrubar o capitalismo» só pode ser o resultado de uma luta, ou melhor, é este o objectivo estratégico da luta. Ora, quando se luta não existem nenhumas garantias de vitória. Mas acho que é esse o único objectivo pelo qual vale a pena lutar.

  6. No artigo fiz referência ao processo judicial movido por Miguel Casanova contra o Partido Comunista Português. Miguel Casanova era funcionário, o que significa, na gíria do comunismo português, que era um militante com funções de responsabilidade, dedicado exclusivamente às tarefas políticas e remunerado pelo Partido. Como Casanova discordasse da orientação que estava a ser seguida, a direcção do Partido demitiu-o de funcionário, e ele colocou a questão em tribunal e ganhou na primeira instância. O Partido Comunista recorreu para o Tribunal da Relação e no dia 29 de Abril esse Tribunal confirmou a decisão da primeira instância, condenando o Partido a reintegrar Miguel Casanova nas funções que exercia e a pagar-lhe as retribuições que ele deixara de receber desde 31 de Agosto de 2018. Desgostosa, a direcção do Partido Comunista emitiu um comunicado onde afirma que «todo o processo até hoje mostra que a pessoa em causa provocou as condições objetivas de um conflito laboral para em torno dele alcançar o que pretendia: atacar o PCP, denegrir a sua imagem e pôr em causa a sua identidade». E assim a direcção do Partido vê-se agora perante a obrigação de reintegrar em funções de responsabilidade um quadro político que se opõe à orientação dessa mesma direcção. É uma situação hilariante para todos aqueles que não sejam, e talvez até para alguns que sejam, membros do Partido Comunista. Mas, sobretudo, as novas peripécias deste caso confirmam a tese que defendi no artigo, a semelhança de estrutura entre as empresas e os partidos políticos.

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