Por João Bernardo

As teses hoje hegemónicas na esquerda recusam a análise económica prosseguida no campo das relações sociais de produção e dotadas com o peso da tecnologia. Em vez disso acenam com a miragem de uma sociedade sem mercado nem dinheiro, baseada exclusivamente em relações directas. Mas o que significa isto na realidade?

No mercado de bens de consumo a alternativa ao dinheiro é o racionamento, entendido como distribuição administrativa dos bens. O que sucede, porém, quando se quer menos de uma coisa e mais de outra ou quando se desejam coisas diferentes? Para este dilema existem duas soluções, não alternativas, mas cumulativas, que em conjunto constituem um estímulo à economia paralela.
– O mercado negro é uma dessas soluções, já que quanto mais se desenvolvem numa sociedade as restrições económicas, tanto mais se multiplica o número de pessoas que assume o ofício de contornar essas restrições. E assim quem quer menos de um produto e mais de outro ou procura algo diferente recorre aos profissionais do mercado negro. Mas como podem efectuar-se estas transacções se não existir dinheiro?
– A outra solução, que torna possível o mercado negro ou pelo menos o agiliza, é o recurso a formas ad hoc de dinheiro. Se for suprimida a emissão centralizada de dinheiro, ela será substituída por emissões descentralizadas, devidas à iniciativa de particulares.

A história do século passado e deste século fornece numerosos exemplos de substituição do dinheiro oficial, mostrando a inviabilidade da utopia da abolição do dinheiro, tanto no paraíso revolucionário como no inferno concentracionário. Começo pelo paraíso.

– Durante a guerra civil na Rússia, no período denominado Comunismo de Guerra, o governo bolchevista prosseguiu a utopia da abolição do dinheiro. No que dizia respeito às empresas estatizadas, considerava-se que a planificação central da produção e da distribuição seria suficiente para, num prazo mais ou menos curto, se prescindir do dinheiro. No que dizia respeito às relações entre o sector estatizado e o sector de propriedade privada, que naquele caso correspondia ao campesinato, considerava-se que a desvalorização progressiva do dinheiro, devida a uma inflação provocada deliberadamente pelo Estado, teria como consequência última a abolição do dinheiro. Os resultados desta utopia foram, porém, uma desilusão. No sector estatizado admitia-se que o dinheiro estava abolido quando as transacções entre empresas se processassem mediante acertos contabilísticos, o que mostra até que ponto o instrumento pecuniário era fetichizado, pois tomava-se como dinheiro unicamente a sua expressão material, moedas e notas. Da parte de marxistas, este fetichismo não deixa de ser irónico. Mas a realidade foi mais rápida do que as ilusões, e mesmo entre empresas estatizadas nem sempre se prescindiu das formas materiais de dinheiro. Ora, como a inflação precipitada pelo governo bolchevista retirava praticamente o valor às notas emitidas pelo banco central, sucedia que o director de uma fábrica ou qualquer outra autoridade local emitisse senhas que, garantidas com a sua assinatura, valiam como dinheiro. E assim o mesmo Estado que, por uma ponta, abolia o dinheiro, punha dinheiro em circulação pela outra ponta. Nas relações entre o sector estatizado e a economia camponesa a utopia revelou-se ainda mais catastrófica. A crise de produção nas empresas estatais impedia que fossem fabricados artigos em quantidade e variedade suficientes para serem oferecidos aos camponeses em troca dos produtos agrícolas e pecuários. E a inflação, que deixava sem valor o dinheiro oficial, fazia com que os camponeses se recusassem a vender a troco de notas. A única alternativa, para que a população das cidades não morresse de fome, foi a requisição forçada. Como podia prever-se, a reacção dos camponeses incluiu, além do açambarcamento e da ocultação de stocks, a redução das áreas plantadas e o abate massivo de animais. As transacções de bens alimentares cada vez mais se processavam no mercado negro; e como o dinheiro oficial, desvalorizado pela inflação, deixara de ser aceite, desenvolveram-se formas pecuniárias alternativas, nomeadamente sal, tabaco, farinha, tecidos e álcool. Regressara-se à situação, mencionada no artigo anterior, em que um bem de consumo podia ser usado como dinheiro e, portanto, podia entrar e sair da circulação pecuniária. Ao mesmo tempo, a centralização económica desejada pelos bolchevistas via-se sem base real, porque a emissão pecuniária passara a ser descentralizada e a depender da iniciativa de particulares.

– Durante a guerra civil espanhola não foram os marxistas, mas os anarquistas quem prosseguiu a utopia da abolição do dinheiro. Haviam já ocorrido experiências precursoras, em Janeiro de 1933 no Levante, em Dezembro desse ano nalgumas aldeias do Baixo Aragão e em Outubro de 1934 nas Astúrias. O que sucedia era que os comités revolucionários emitiam senhas dizendo «vale 1 kg de pão» ou qualquer outra declaração similar; mas, como as pessoas podiam trocar as senhas entre si, aquela restrição da sua liquidez ficava sem efeito e as senhas acabavam por equivaler a notas de diferentes denominações. Aconteceu o mesmo durante a guerra civil em aldeias onde os anarquistas decretaram a abolição do dinheiro. Por exemplo, em Alcora, uma localidade de Castellón de la Plana com 4.500 habitantes, o comité local apropriou-se de todo o dinheiro ali existente (refiro-me ao dinheiro emitido pelo banco central) e usou-o nas relações comerciais com outras localidades. Internamente, o comité local calculava os salários em moeda oficial, que, portanto, perdurava na função de padrão de valores, e os salários eram pagos em vales, alguns restritos à aquisição de pão e os outros à dos demais artigos de consumo. Na realidade, como a população permutava as senhas, elas ficavam convertidas num dinheiro local de liquidez total. Noutras localidades ocorreram processos semelhantes e com as mesmas consequências. No governo da Catalunha o comportamento dos dirigentes anarquistas não foi menos paradoxal. Por um lado, o Ministério dos Abastecimentos (anarquista) comerciava com as outras regiões de Espanha mediante acertos contabilísticos, pretendendo ter abolido o dinheiro quando na realidade só dispensara a sua forma palpável. Ao mesmo tempo, porém, o Ministério da Economia (igualmente anarquista), quando vendia produtos da Catalunha a outras regiões de Espanha, exigia o seu pagamento em moeda estrangeira. E assim, enquanto os anarquistas julgavam ter abolido o dinheiro por um lado, restauravam-no pelo outro.

No inferno concentracionário as autoridades decretaram também a supressão do dinheiro, com menos hipocrisia do que no paraíso revolucionário, mas com iguais consequências. Quando se lê descrições da vida no interior dos campos de concentração, sobretudo memórias dos presos, encontra-se ocasionalmente referência ao uso de botões como dinheiro, numa forma estritamente fiduciária. Mas é mais frequente deparar com o recurso ao tabaco como dinheiro. Tratava-se de um artigo usado então pela prática totalidade dos homens e por muitas mulheres, o que o incluía na categoria dos bens que tanto podiam ser consumidos como empregues em funções pecuniárias. Além disso, era possível dividir os cigarros em partes, o que os convertia em dinheiro de várias denominações.

Mesmo sem evocar os casos extremos do paraíso e do inferno e mantendo-me no purgatório em que vivemos, a abolição do dinheiro por um lado e, por outro, o recurso a instrumentos pecuniários alternativos é uma situação frequente em vários países:
– Quando uma inflação muito considerável leva a uma depreciação acentuada do dinheiro emitido centralmente, sucede que senhas destinadas a fins específicos, como vales de alimentação, vales de transporte e outras modalidades de vales, passem a ser aceites generalizadamente e, portanto, se convertam numa forma de dinheiro com elevado grau de liquidez. Nestes casos ocorre a substituição de uma emissão centralizada por uma emissão descentralizada. Porém, e ao contrário do que sucede noutras emissões descentralizadas, o novo suporte pecuniário não é um bem de consumo, mas um instrumento exclusivamente fiduciário.
– Nos casos em que a hiperinflação leva à desvalorização catastrófica do dinheiro emitido centralmente num dado país, pode ocorrer a adopção de uma moeda estrangeira, geralmente o dólar. Mas como a importação de moeda estrangeira para uso interno é ilegal, ela processa-se através de redes de contrabando e de economia paralela, o que a converte, no quadro desse país, numa modalidade descentralizada de emissão pecuniária.

Já algumas vezes apelei, em artigos publicados neste site, para que os leitores estudassem a experiência do Cambodja sob os Khmers Vermelhos, onde se fundiram numa realidade única a miragem do paraíso revolucionário e a realidade do inferno concentracionário e onde a utopia da abolição do dinheiro atingiu maiores proporções. É sempre bom verificar na prática as consequências das ideias. Mas não tive sucesso naquelas ocasiões, por que hei-de ter nesta?

*

Em resposta à utopia da abolição do dinheiro, o que sempre ocorreu foi a criação particular de dinheiro, porque o dinheiro é a insubstituível condição da plasticidade de uma sociedade complexa. Mas é muito difundida numa certa esquerda a noção de que o dinheiro constituiria obrigatoriamente uma forma de reificação, e portanto de alienação, que impediria a apreensão directa das relações sociais e até dos seres humanos. Ora, a confusão entre a alienação e o mito de uma sociedade transparente tem uma génese conturbada.

Mesmo pondo de lado os poemas de inspiração senhorial e feudalizante que na Europa do começo da Renascença exprimiam o receio das abstracções quantitativas, vamos encontrar esta mesma temática mais tarde, no alvor da civilização moderna. Prosseguindo a dialéctica dos contra-revolucionários antiburgueses na área da cultura alemã da transição do século XVIII para o século XIX, Adam Müller pretendeu reconstituir no acto de pensamento um dinamismo puro, que dissolvesse qualquer sistematicidade dos conceitos. Ele considerava que os conceitos sistemáticos correspondiam às abstracções quantitativas dos jacobinos, e assim as suas declarações filosóficas eram também uma manifestação política contra a Revolução Francesa e contra os exércitos napoleónicos. Adam Müller postulava uma antítese entre o conceito, considerado rígido, estático e genérico, e a ideia, considerada fluida e susceptível de desenvolvimento como a realidade e que, por isso, permitiria o pensamento dinâmico, e ele sentia pelos números uma igual aversão. Mas assim Adam Müller colocava a linguagem perante limites inultrapassáveis.

Estas noções foram desenvolvidas por Oswald Spengler na sua obra maior, constituindo um dos elementos fundamentais para definir a oposição entre a cultura, que ele valorizava como orgânica e inconsciente, e a civilização, que ele desdenhava como inorgânica e consciente e que, por isso, representaria a decadência. As noções de Adam Müller, reelaboradas por Spengler, contribuíram ainda para que Henri de Man traçasse a ponte que o levou da social-democracia ao nacional-socialismo. Afinal, Adam Müller foi um filósofo muito estimado no Terceiro-Reich, o que coloca em incómoda companhia aqueles defensores de uma teoria da alienação que promovem a utopia de uma sociedade transparente e consideram que o dinheiro a torna opaca.

Pretender que o dinheiro obnubila a sociedade é o mesmo que pretender que a linguagem obnubila a realidade.

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Uma sociedade complexa desprovida de dinheiro, uma sociedade transparente, deveria obrigatoriamente ser uma sociedade de abundância imediata e fácil. Ora, a falha deste tipo de utopias consiste em admitir o carácter inato dos desejos, quando na verdade os desejos são sempre construídos. E entre a construção de um desejo e a produção dos elementos necessários para o satisfazer medeia um tempo mais ou menos longo. O dinheiro é o veículo indispensável para que a economia se organize durante esse período, e o mesmo em sentido inverso.

É decerto possível pensar que a redução dos desejos ao mínimo os ajuste à capacidade de produzir e, portanto, dispense o dinheiro. Mas assim, em vez da satisfação da abundância, teríamos a submissão à escassez. E como esta não é uma realidade estática, mas dinâmica, tal como a construção de novos desejos não encontra meta e se desdobra noutros e novos desejos, também a escassez não encontra limites a não ser os do genocídio pela inanição. O sonho do pays de cocagne, do reino da abundância onde tudo é fácil, revela-se, ao despertar, como um vasto cemitério macabro. A utopia de uma sociedade transparente é, afinal, o resultado mais funesto da utopia ecológica do decrescimento económico.

Uma sociedade sem dinheiro é como uma sociedade sem linguagem, um mito irrealizável, a não ser que se animalize a humanidade. Graças a esta esquerda, do socialismo ou barbárie chegou-se ao socialismo e barbárie.

Referências
Entre os artigos publicados no Passa Palavra em que analisei a experiência do Cambodja sob os Khmers Vermelhos destaco Post-scriptum: contra a ecologia. 3) a hostilidade à civilização urbana.

As ilustrações reproduzem obras de René Magritte.

Esta série inclui também os seguintes artigos:
1. O dicionário sem palavras
2. O dinheiro não é o poder
3. Dois lugares-comuns do nosso tempo
4. O sistema da vaca leiteira
5. Tudo se esvai em fumo

7 COMENTÁRIOS

  1. A supressão do dinheiro só se dará com a mudança do caráter do trabalho. Abolir o dinheiro, sem abolir a troca (e portanto o valor e o trabalho como medida de equivalência entre as coisas produzidas como mercadorias) é impossível. Afinal o dinheiro não é o papel moeda, ou o ouro, mas qualquer equivalente geral a ser usado como medida para as trocas. Pensando na sociedade mundial, será necessário abolir as classes socias, socializar os meios de produção efetivamente (e não mudar apenas o caráter da propriedade privada, ou seja, ao invés de capitalistas proprietários, gestores estatais proprietários/gerentes) e subordinar o trabalho à produção de bens para a vida e não para a troca. Seria necessário abolir a relação valor-trabalho…até hoje tentamos mas não conseguimos. Se a relação capital é mundializada, a supressão dela tambem precisa ser…senão continuaremos esbarrando na socialização da escassez (caso das tentativas de transição que não se completaram por uma série de questões, dentre elas o grau de desenvolvimento das forças produtivas e a restrição destas experiências a determinadas partes de mundo, em um mundo onde a relação capital ainda é predominante). Ou socializamos a abundância corresponde a um determinado estágio de desenvolvimento destas forças produtivas (inclusive a abundância e o constante movimento de aumento/incremento das necessidades da humanidade para produção da sua vida) ou estaremos negando o próprio movimento da história da humanidade. Precisamos superar mundialmente essas relações e os fundamentos do capital (mercadoria, troca e trabalho assalariado) e não somente a propriedade privada dos meios de produção. Os problemas que surgem estão diretamente ligados as tentativas de supressão disso tudo não serem concomitantes nem mundializadas…esse é o grande nó que temos a tarefa de desatar!

  2. João Bernardo, você tem acompanhado a questão das criptomoedas? Sei que é um tema complicado pois há lados tentando vendê-las e outros lados tentando desacreditá-las. É um tema que tem interessado muito aos “anarco-capitalistas” pela possibilidade da emissão desregulada de moedas e por um suposto tráfico livre das mesmas. No entanto o que me chama muito a atenção é outro ponto, a tal tecnologia “blockchain”. É um tema espinhoso para não-especialistas, mas aparentemente conseguiram criar uma forma tecnológica tão complexa que o que estão propondo é que o dinheiro seja criado a partir da credibilidade nesta própria forma. Me parece interessante porque já não estamos no terreno das mercadorias que assumem a função dinerária, nem no de uma moeda palpável (papel ou metal) garantida por uma instituição, mas no de um dinheiro que seria resultado de processos informáticos puros.
    E aos poucos as grandes corporações vão se interessando por esse tipo de dinheiro, como no caso do Facebook. A questão da tecnologia “blockchain”, pelo que me foi contado, poderia ser desenvolvida para além do dinheiro, mas as empresas ainda não inventaram formas de aproveitá-la.

  3. O comentário da Trabalhadora do Estado começa com uma afirmação completamente contrário ao que o texto mostra, mas sem um argumento sequer. Parece artigo de fé.

    Dando pitaco no comentário do Lucas,

    fiquei convencido de que as criptomoedas não são dinheiro. Não tem a função de dinheiro, como o dinheiro em uma situação de hiperinflação perde sua função, como o artigo do João Bernardo mostra. Com a volatilidade delas, que já chegaram a cair 50% ou dobrar de valor em questão de horas, qual comerciante aceitaria isso como equivalente geral?

    “Adquirir bitcoins, ou fechar contratos em bitcoins, significa assumir todos os riscos da variação da moeda. Uma moeda com tal grau de volatilidade jamais servirá como meio de troca na economia real.” https://jornalggn.com.br/economia/salve-se-das-criptomoedas-enquanto-e-tempo-por-luis-nassif/

  4. Lucas e Leo,

    Não tenho nenhuma competência para analisar as criptomoedas. Li algumas coisas sobre o assunto, mas sem estudar o problema a fundo. De qualquer modo, a emissão desse tipo de dinheiro não é forçosamente descentralizada, já que na Venezuela o regime de Maduro emite, ou pretende que emite, uma criptomoeda, a Petro. Mas quando Lucas escreve que já não se trata «de uma moeda palpável (papel ou metal)», mas «de um dinheiro que seria resultado de processos informáticos puros», o mesmo sucede com os cartões electrónicos e, mais ainda, com o 5G, que já está a ser utilizado correntemente na China para os pagamentos. O Leo cita um artigo onde se lê que «adquirir bitcoins, ou fechar contratos em bitcoins, significa assumir todos os riscos da variação da moeda», o que aproxima as criptomoedas daquele tipo de contratos que tomam como referência o valor futuro de uma dada matéria-prima, só que neste caso a volatilidade dos bitcoins é muito superior.

    Porém, se não tenho competência para falar das criptomoedas, tenho alguma para falar do crédito e do dinheiro fiduciário em sistemas económicos pré-capitalistas. Ora, para a questão que interessou estes dois comentadores, é importante saber que, por vezes, entre os mercadores de longo curso, que constituíam um corpo profissional especializado e formavam um meio social bem definido, circulavam formas de dinheiro fiduciário, por conseguinte sem valor intrínseco, e não garantidas por qualquer poder soberano. Era a simples coesão social dos mercadores que sustentava o valor atribuído a esse dinheiro. A evolução desta forma pecuniária, que eu denominei Forma III do dinheiro, teve um papel crucial na formação dos sistemas de poder no limiar da idade moderna. Tratei disto extensivamente em Poder e Dinheiro, vol. III, págs. 361 e segs.

    Ainda a respeito do dinheiro, um caso fascinante é o kula, um sistema de pagamentos em vigor nas ilhas melanésias de Tobriand. Há abundantes e célebres estudos sobre o assunto. Na obra que mencionei acima, escrevi: «O caso das Ilhas Trobriand é uma raridade, não enquanto excepção, mas como exemplo extremo, que ilumina e esclarece as outras formas de emprego arcaico do dinheiro. Um objecto tornava-se dinheiro quando se convertia em símbolo, como tal reconhecido pela generalidade da sociedade. E antes de operar como símbolo na troca de bens e, sobretudo, muito mais amplamente do que o mero quadro das transferências, o dinheiro serviu de veículo para as formas básicas do inter-relacionamento social» (vol. I, pág. 476).

    Já agora, cabe aqui fazer uma observação. Eu discordo da forma como Marx analisou o dinheiro no capitalismo, e esta é mesmo uma das minhas divergências mais profundas. Mas, independentemente de se estar de acordo ou em desacordo com Marx, o principal é que ele só conhecia aquilo que a historiografia da sua época dava a conhecer. Assim, tudo o que Marx escreveu sobre o regime senhorial se baseia numa bibliografia que o progresso do conhecimento histórico deixou ultrapassada. Mais importante ainda é o facto de a antropologia económica ter lançado luz sobre questões que na época de Marx eram completamente ignoradas. Pretender hoje estudar o dinheiro com base em citações de O Capital é um dos exemplos mais trágicos, ou talvez mais caricatos, do que denomino marxismo pré-galilaico.

  5. Leo Vinicius, não entendi o “artigo de fé”… o que tentei lançar na discussão é que não consigo compreender a supressão do dinheiro (não é isso que o autor do artigo defende, mas incluí o comentário não para divergir ou concordar com o autor, mas para lançar mais uma questão na discussão, que obviamente não é uma questão nova) sem a supressão da relação social que está no seu fundamento ou origem…só isso…

    E gostaria de aprofundar a discussão sim, sobre a supressão do dinheiro sem a supressão da troca e se há possibilidade do dinheiro enquanto tal sobreviver se a troca não estiver na base da produção social da vida, ou melhor, se a nossa produção não for orientada pela troca e sim para produção mundializada do que a humanidade considera necessário para viver (em todas as dimensões disso que é viver, desde o biológico até o artístico, enfim…toda a abundância que já conseguimos desenvolver e produzir mas pouco usufruímos sob o capital).

    Não consigo enxergar essa superação dissociada da superação do caráter do trabalho no capital (relação valor-trabalho). Pode-se discordar do argumento, dizer que é estreito, restritivo…mas que é artigo de fé…gostaria de entender.

  6. Trabalhadora do Estado,

    deduzi que era artigo de fé a partir da primeira frase do seu primeiro comentário. O artigo do João Bernardo procura mostrar que tentar suprimir o dinheiro é como tentar suprimir a linguagem, é regressivo em termos civilizatórios. E a sua primeira frase pode ser interpretada como um desejo de supressão do dinheiro.

    Da minha parte, e do Castoriadis e do Proudhon, o que deve ser abolido para o socialismo não é a troca, mas sim o valor passar a ser baseado no trabalho, o que não ocorre necessariamente na sociedade capitalista.

  7. Trabalhadora do Estado, a questão é a seguinte. O seu comentário diz que a produção deve ser orientada não para a troca, mas para produção mundializada do que a humanidade considera necessário para viver. Ora, será possível que uma economia funcione apenas com produção, sem distribuição? Se não houver distribuição, não haverá consumo, nem consumo para a satisfação de necessidades humanas (comer, beber, vestir, etc.) nem consumo enquanto absorção de determinados produtos, pelas unidades de produção, para a produção de outros produtos. Como, por exemplo, sinalizar a uma determinada unidade de produção (Unidade B) que outra (Unidade A) precisa de um determinado produto para que continue funcionando, e que, se esse produto for fornecido pela Unidade B, poderá a Unidade A retribuir com uma quantidade X daquilo que produz à Unidade B? Obviamente que, numa economia planejada, não se relacionam unicamente uma Unidade A com uma Unidade B: relacionam-se unidades A, B, C, D… com a instituição (ou conjunto de instituições) reguladora (ou reguladoras) da globalidade do sistema econômico, aquela instituição que fará um balanço do que há (ou do que pode ser ainda produzido) e do que falta (ou do que poderá faltar), da abundância e da carência em cada unidade de produção, colocando-as para trabalhar coordenadamente e segundo um plano, decidido prévia, direta e democraticamente pelos próprios produtores, com consultas regulares às bases para o aperfeiçoamento de todo o plano. Hoje chamamos isso de mercado: no comunismo poderemos chamá-lo de, sabe-se lá, “coordenação da produção” (mudar o nome não mudaria nada, pois seria uma nova modalidade de mercado). Enfim, o dinheiro seria o sinal, o símbolo necessário para exprimir, na comunicação entre diferentes unidades de produção, o balanço do que há ou poderá haver em abundância e do que falta ou poderá faltar. O que eu não consigo conceber é uma sociedade sem dinheiro, até hoje não consegui imaginar uma sociedade sem mercado e sem dinheiro, a não ser que inventemos novos nomes para as mesmas coisas, que existirão de uma maneira relativamente diferente.

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