Por Miguel Serras Pereira

Um meu frequente interlocutor das redes sociais publicou há pouco tempo o sucinto post seguinte: “A transição do neoliberalismo para uma nova sociedade social-democrática faz-se no quadro da democracia, radicalizando-a”.[1]

Pois bem, quanto à “radicalização da democracia” proposta de acordo — mas com o acordo suspenso do que se entender por “social-democracia”. Com efeito, a radicalização democrática ficar-se-á pela rama, ou será muito pouco radical, se não incluir a democratização da proporção imensa do poder governante — poder político, portanto, embora não se assuma como tal — da organização e dos aparelhos de comando da economia. Já sabemos que esta democratização não pode, sob pena de se transformar no seu contrário, reciclando a dominação classista, confundir-se com a estatização, mas implica antes a intervenção governante dos cidadãos comuns, a instituição da sua participação democrática regular na direcção da economia — tanto a nível macro, como a nível micro, ou de base. O nome que possamos dar ao regime caracterizado por uma tal democratização instituinte talvez seja o menos. O de “social-democracia” não seria de rejeitar, se não levantasse tantos equívocos. Como acontece, de resto, com o de “democracia” sem mais.

Com efeito, na medida — hoje enorme — em que a economia é uma instância determinante ou um campo de relações de poder decisivo no governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar a transformar essa mesma economia. Aqui, é indispensável termos presente que a democratização da economia tem vários níveis, implicando, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica, etc. Assim, embora não possamos antecipar demasiado antes da acção que as crie as formas que assumiria a democratização da economia, sabemos que sem ela não há democratização efectiva do poder político, pois boa parte deste é hoje exercido na esfera económica, e, mais ainda, a componente “direcção da economia” tende a primar cada vez mais no governo efectivo da sociedade sobre a parte que cabe ao aparelho de Estado propriamente dito. Portanto, será talvez preferível falarmos, não tanto do poder político e do poder económico da oligarquia governante, como de um poder político oligárquico que se exerce ora sob a forma da organização hierárquica da economia, ora sob a forma de controlo dos aparelhos do Estado.[2] E, sendo assim, a democratização terá de fazer-se opondo a construção e extensão da dimensão activa e governante da cidadania comum tanto ao Estado como ao poder político de qualquer forma de direcção oligárquica da economia.

A subordinação da economia radicalmente democratizada ao poder político do autogoverno dos cidadãos e a destruição do seu primado intervêm aqui como garantindo a liberdade de criação de novos valores, usos e costumes, na dimensão informal da existência colectiva das mulheres e homens comuns, bem como na das condições de existência individual de cada um deles.

Notas

[1] Cf. o post de José Carmona.
[2] Esta tese, que remete para as conclusões que tiro do pensamento político de Castoriadis (Cf., por exemplo, “Fait et à faire” [1989], in C. Castoriadis, Fait et à faire. Les carrefours du labyrinthe, Paris, Seuil, 1997), surge também, a partir de certo momento do desenvolvimento das suas ideias próprias, em João Bernardo — nomeadamente na distinção que opera entre “Estado amplo” e “Estado restrito” (Cf., por exemplo, João Bernardo, Economia dos Conflitos Sociais, 1ª ed. São Paulo, Cortez, 1991).

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