Por Estudante & Trabalhador da UFG

A discussão sobre os cortes de gastos na educação sempre se dão em um plano abstrato. Na Universidade Federal de Goiás não é diferente. Existe um discurso hegemônico de defesa “da educação, da ciência, do conhecimento” que acaba resultando em movimentos em defesa das instituições. Dessa forma, se apagam os impactos específicos que as medidas de austeridade têm sobre a força de trabalho que faz a universidade funcionar. Nos últimos meses, no entanto, estudantes e trabalhadores vêm tentado pautar como esses cortes resultam em demissões e degradação das condições de trabalho e estudo das pessoas que compõem a universidade.

Apesar de já haver denúncias de planos de redução massiva de trabalhadores antes mesmo da entrada do governo Bolsonaro, como um projeto inicial de redução de 50% dos vigias e uma tentativa, frustrada de demissão de 22 trabalhadores da limpeza, a questão não tinha gerado muita repercussão. Esse quadro mudou ao longo do ano de 2019, uma vez que a administração da universidade pretendeu mobilizar a comunidade em defesa da instituição, da educação e (alguns imaginavam) de seus trabalhadores. Diante dessa necessidade de mobilização da gestão, foi firmado um compromisso tácito de que cessariam os ataques contra os trabalhadores dentro da instituição enquanto houvesse a luta contra os cortes de recursos aplicados pelo governo federal. A precariedade desse acordo já ficou evidente com a demissão de 34 trabalhadores, no mesmo dia do compromisso firmado pelo reitor. Mas essa questão se perdeu em meio a euforia da defesa “da universidade”.

Abraço coletivo em torno da universidade – as pessoas mal aparecem diante da “grandiosidade” da instituição

No segundo semestre, no entanto, estudantes e servidores descobriram, voltando das férias, que grande parte dos trabalhadores terceirizados foi demitida e outros estavam cumprindo os últimos dias de aviso prévio. No decorrer da primeira semana de aula, circularam relatos de que diversos trabalhadores não estavam mais em seus locais de trabalho, que haviam sido remanejados ou demitidos. Diante disso, surgiram diversas propostas entre os estudantes tendo como objetivo denunciar as demissões e prestar solidariedade aos trabalhadores. No dia 25 de agosto, na correria entre as aulas, realiza-se uma reunião e coloca-se como pauta única e urgente a construção de uma manifestação estudantil em solidariedade aos trabalhadores demitidos e contra a demissão dos que estavam de aviso prévio.  A manifestação ficou para o dia 29/08 às 13 horas. O objetivo era pressionar a reitoria e a SEINFRA, que é responsável pela demissão e contratação dos trabalhadores terceirizados.[1]

Contando com algumas dezenas, os estudantes caminharam para o Restaurante Universitário (RU) com o objetivo de fazer um jogral acerca do caráter da manifestação e da questão dos terceirizados. Em todos os espaços e ambientes que a manifestação passou para chegar à reitoria, os estudantes falavam palavras de ordem, panfletavam e convidavam os estudantes para lutar em solidariedade aos trabalhadores.

Após chegarem à reitoria, os estudantes entraram gritando palavras de ordem e cobrando a presença do reitor – de “esquerda”, “contra o golpe”, contra o “desmanche da universidade” – Edward Madureira. De acordo com outra estudante “entramos no gabinete de reitor e tinha um senhor lá dentro filmando a gente, e a moça que trabalha lá dentro disse que o Edward estava em reunião no anfiteatro da Faculdade de Química”.

Neste momento, os estudantes fizeram uma votação para decidir se ficavam na reitoria ou se iriam “invadir a reunião dos burocratas”. Os estudantes decidiram ir para o anfiteatro, onde estava acontecendo à reunião. Entraram cantando essa palavras de ordem:

“Que vergonha, que vergonha deve ser, deixar várias famílias sem ter o que comer!” Logo depois, puxaram mais um jogral: “Ei reitoria, para de hipocrisia!”

Reunião do Conselho Gestor da Regional Goiânia sob intervenção

Neste segundo jogral, a reunião foi interrompida, todos os diretores ficaram chocados e bravos com os estudantes que estavam atacando uma reitoria de esquerda. Afinal, eles entendiam o problema! Eles estavam com os terceirizados!

Depois do choque inicial, o reitor Edward argumentou que a demissão dos trabalhadores não foi por causa do corte de gastos do governo, mas era uma medida tomada desde o final de 2018. O reitor afirmou que se sensibiliza com os trabalhadores demitidos, mas que essa decisão teve que ser acelerada por causa do congelamento de recursos – além disso, os trabalhadores não sairiam de mãos abanando, já que a UFG daria um curso de capacitação profissional. Embora a reitoria pense nessa proposta como alternativa, o curso de capacitação tem apenas 60 vagas. Apenas desde maio, cerca de 101 trabalhadores foram demitidos. No final da conversa, o Reitor, de acordo com um estudante disse “que não ia parar a universidade porque isso é entrar no jogo do governo”.

Quadro de trabalhadores desarmados de segurança[2]
2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 HOJE
412 409 260 299 299 202 91
  • Informações retiradas do coletivo Invisíveis

Essa reunião terminou com a reitoria irredutível com as demissões e com a repetição do argumentos de que as demissões não faziam parte dos cortes. Esse discurso era o oposto do que foi dito para os próprios trabalhadores demitidos, já que para eles se dizia que o problema era “lá em cima” com o governo. Nos dias que se seguiram, alguns estudantes aceitaram o argumento da reitoria e “entregaram as armas”, pois se tratava de um projeto “técnico”. Ao mesmo tempo, vários trabalhadores relataram que tinham conseguido garantias de não serem demitidos, pelo menos até o fim do mês. Contudo, não havia comunicação direta entre estudantes e trabalhadores, por isso os estudantes não ficaram sabendo.

Em meio ao desânimo, o Diretório Central dos Estudantes ocupou a reitoria com o objetivo de pressionar pela realização de uma nova assembleia universitária, pautar a demissão dos terceirizados, o congelamento das bolsas e a degradação das condições de estudo.

A ocupação conseguiu uma reunião com o reitor para apresentar as seguintes reivindicações:

1) a homologação das bolsas de monitoria;

2) o compromisso de não paralisar o Restaurante Universitário;

3) a realização da assembleia universitária;

4) o compromisso de não demitir mais trabalhadores terceirizados.

Em duas horas e meia de reunião, o reitor e sua equipe se esforçaram em tentar fazer os estudantes “entenderem” que a luta deles era um só, que tinham que confiar na administração, que não existia hierarquia na universidade.

Vários membros da gestão chegaram a fazer falas emocionadas citando Lenin, Marx, Rosa Luxemburg, falando de Estado burguês, de Justiça Burguesa e foi necessário muito esforço para retomar a pauta dos terceirizados. O reitor Edward e o Ricardo Barbosa (Secretário de Segurança e Direitos Humanos) mais uma vez “explicaram” que as demissões faziam parte de um novo projeto de segurança de UFG. Neste projeto, os mais de 480 vigias, seriam demitidos e seriam substituídos por vigilantes, câmeras e alarmes. Apesar de insistirem no projeto,  houve um acordo de não demitir mais trabalhadores. A implementação desse projeto que, aos olhos da reitoria, traz mais segurança aos campi, seria gradativa. Por isso estabeleceram o compromisso de não demitir mais trabalhadores e de esperar o final dos contratos. Os trabalhadores terceirizados confirmaram que receberam garantias de suas chefias de que ficariam até o final do ano.

Nesse momento, surgem fora dos núcleos até então existentes diversas mobilizações estudantis. Como primeira medida, os Centros Acadêmicos criaram comitês para escrever uma carta conjunta contra as demissões e como forma de denunciar o descumprimento do acordo com a reitoria.  Os estudantes também estão discutindo formas de denunciar as demissões para os alunos por meio da construção de um manifesto, de panfletagens e construir na prática uma aproximação maior dos trabalhadores terceirizados. Além disso, está circulando uma proposta de pressionar a direção das faculdades para que escrevam ofícios para a reitoria pedindo a não demissão dos trabalhadores.

E os trabalhadores?

Fora uma nota de repúdio do sindicato dos servidores às demissões, ainda não houve nenhuma manifestação pública coletiva dos servidores públicos a respeito da questão. Embora individualmente eles sejam importantes como fontes de informação e colaborem com articulação e comunicação entre terceirizados e estudantes, parece que ainda não assumiram essa luta para si. Entre os professores da UFG, inexiste qualquer manifestação individual ou coletiva sobre o assunto além de “preocupação com a educação, com a ciência”. Parece que para eles a questão não existe e que é possível dar aula sem trabalhadores da limpeza, sem o guarda das chaves e materiais, enfim, pode-se trabalhar na educação apenas com as boas ideias e discursos.

Outro ator que está ausente em todo esse processo são os próprios terceirizados – os demitidos e os ameaçados de demissão. Apesar de algumas formas subterrâneas, coletivas e ativas de luta que estão desenvolvendo – como “cercar” os diretores e expor o que está sendo dito dentro da empresa de forma mais ou menos pública – eles não são chamados a negociar, não participam dos protestos, nem de sua organização. Se é pra se construir uma aproximação bem sucedida, seria importante pensar formas em que esses trabalhadores consigam lutar diretamente também, lado a lado com as pessoas que pretendem se solidarizar com eles.

Nesse dia 23 de setembro, após muita pressão, a reitoria teve que convocar uma assembleia universitária para expor se afinal a instituição vai paralisar ou não por falta de verbas, se foram feitas demissões ou se haverá mais demissões, enfim, um momento em que os trabalhadores podem de forma pública manifestar interesse e debater o assunto. Pode ser uma boa oportunidade para testar formas de ação que unifiquem essas categorias. Se em uma instituição tão fortemente marcada pela segregação que chega a parecer uma estrutura de castas foi possível ocupar a reitoria articulando a pauta de bolsistas e terceirizados, os mais baixos dentro dessa estrutura, quem sabe se não será possível construir nessa luta contra as demissões outras formas de relacionamento, convivência e trabalho entre as diversas categorias que compõem e fazem funcionar a universidade?

Assembleia com estudantes e trabalhadores… a organização política, por um lado….

Talvez um caminho já esteja apontado em uma ação feita pelo Centro Acadêmico de História no dia 20/09 – após um café da manhã coletivo que envolveu os terceirizados, estudantes, professores e técnicos, ocorreu uma assembleia de professores, estudantes e técnicos pautando as demissões que conseguiu fazer com que o Pró-Reitor de Finanças tivesse que se explicar e fosse pressionado para não aplicar os cortes sobre os trabalhadores – todos eles. Esse é um quadro da administração que raramente se manifesta publicamente ou se envolve em debates – o que quer dizer que a administração de fato está preocupada com uma mobilização independente e unificada das categorias. O depoimento de uma participante da organização desse movimento é significativo sobre as suas potencialidades:

Em uma assembleia lotada de alunos da história, feita em uma sexta que rolou paralisação dos alunos foi tirado uma atividade de integração, um café da manhã com a galera toda da faculdade. Tava apreensiva, se ia dar certo, se teria participação, se a galera traria o pratinho – já que era um café coletivo – queria muito que desse certo. Pra mim esse tipo de atividade são vitais para a luta, por mais que pareçam tão pequena. É um respiro no meio de uma rotina extremamente hostil, hora de tomar um café, comer um bolo e trocar uma ideia e, nossa, foi muito legal! Tinha bastante comida, os profs, técnicos, alunos e funcionários juntos, trocando uma ideia e abrindo uma brecha na rotina antes de irmos pra aula e começarmos o dia. Foi um momento, ao menos para mim, de estreitar os laços com pessoas que já tinha relações. Muito interessante também estarmos todos juntos sem a hierarquia profESSOR, aluno, etc. A gente precisa construir essa luta juntos. Não temos que lutar pelo outro mas com ele. Essa construção é gradual e envolve atividades assim, ao meu ver, pra estabelecer confiança, conhecimento do outro.

Cabe aos que pretendem dar continuidade a essa mobilização, fazer da convivência uma arma que nos permita lutar juntos. E que a luta contra os cortes seja contra o governo, mas se mantenha também dentro da universidade – não deixando ninguém para trás.

Café coletivo de trabalhadores e estudantes na Faculdade de História

Notas

[1] Para um relato mais detalhado do protesto e da explicação dada pela reitoria, ver o texto de Isadora Malveira.

[2] Apesar da designação de trabalhadores da “segurança” e “vigia”, esses trabalhadores desempenham muito mais as funções de porteiros, recepcionistas, guarda de chaves, “guia”, enfim, funções muito mais comunitárias do que repressivas. O vigia que de fato tem uma função repressiva é designado “vigilante” e costuma andar armado e ter maior proximidade com as forças policiais do Estado. A substituição desses vigias desarmados pelos armados implica, na verdade, numa militarização da segurança da universidade, assim como na mudança de foco da prevenção de crimes de oportunidade, por exemplo, para a dissuasão através da repressão armada.

As fotografias das atividades da Faculdade de História foram retiradas do Instagram do Centro Acadêmico. As fotografias do primeiro protesto foram retirados do site da Federação Autônoma dos Trabalhadores. Finalmente, as fotografias da ocupação da reitoria foram retiradas da página oficial do DCE.

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