Por Marcelo Lopes de Souza
No primeiro texto desta coluna, fiz a seguinte pergunta: qual é a solução para as nossas cidades? Argumentei, ali, que soluções técnicas parciais, por mais interessantes que possam ser, não admitem ser divorciadas de um contexto sócio-histórico-espacial complexo. A conclusão que propus é a de que os problemas dos quais a população constantemente se queixa, mormente nas grandes cidades da periferia do capitalismo mundial, dos congestionamentos que nos fazem desperdiçar tanto tempo aos desastres ambientais e à criminalidade violenta que impõem o desperdício de tantas vidas não podem ser compreendidos a não ser contra o pano de fundo do capitalismo e seu cortejo de irracionalidades, iniquidades e opressões.
Para além da discussão dos chamados “problemas urbanos”, vale a pena prestar atenção a um outro patamar de discussão: aquele em que surge a questão sobre se as cidades, notadamente as grandes cidades, seriam, elas próprias, diante da pletora de atribulações e sofrimentos humanos que testemunhamos em quase todos os lugares e nas mais diferentes escalas, parte da solução ou do problema.
De acordo com dados disponibilizados pela Organização das Nações Unidas, 2007 foi um ano de histórica virada: mais da metade da humanidade passou, a partir daí, a viver em espaços considerados urbanos. Apesar dos problemas metodológicos que podem levar a uma superestimação do percentual de população urbana (o Brasil é um bom exemplo disso), a tendência de urbanização mundial parece ser um fato inquestionável. Esse é o tipo de informação que faz a alegria daqueles que veem nas cidades a humanidade no seu melhor (chamemo-los de “urbanófilos”), ao mesmo tempo que horroriza ou deprime os que, pelo contrário, consideram que as grandes cidades não fazem senão aviltar e embrutecer as pessoas (chamemo-los de “urbanófobos”).
A “urbanofilia”, não menos que a “urbanofobia”, existe sob as mais variadas roupagens ideológicas. O liberalismo e o desenvolvimentismo de inspiração keynesiana, mais ou menos reformista, sempre glorificaram as cidades, ao ponto de a taxa de urbanização ser elevada a um dos principais indicadores de “desenvolvimento”. Todavia, o pensamento social crítico, especialmente de figurino marxista, também tem sido majoritariamente “urbanofílico”: basta termos em mente a obra do neomarxista francês Henri Lefebvre, que nos legou a bandeira do “direito à cidade” e a tese da “urbanização completa da sociedade” (ou da “sociedade urbana”), recentemente repaginada pelo lefebvriano Neil Brenner e sua tese de uma “urbanização planetária” (segundo a qual já nada mais haveria, no mundo atual, que não fosse a “sociedade urbana”, tudo o mais sendo pura ilusão ou mero resíduo).
De sua parte, os “urbanófobos” também têm apresentado variadíssimas colorações político-filosóficas: grande parte do anarquismo clássico de mostrou indisfarçavelmente “urbanofóbico”, incorrendo em uma problemática idealização da vida no campo (Élisée Reclus foi, entre os clássicos, a mais notável exceção, pois soube bem evitar qualquer julgamento extremista sobre as cidades e urbanização); entretanto, “urbanófobos” foram igualmente, por exemplo, muitos dos ideólogos nazistas nos anos 1930, como se pode verificar pelos escritos de geopolíticos como Karl Haushofer, que atribuíam às grandes cidades todas as mazelas de podridão moral (prostituição, estrangeiros, comunismo…) e exaltavam as virtudes do camponês independente.
Uns e outros, “urbanófobos” e “urbanófilos”, sempre costumaram simplificar em demasia o problema. Mais do que isso: em geral, eles nos incentivam, tácita ou explicitamente, se não a abandonar, ao menos a abreviar a tarefa de pensar utopicamente o espaço e a sociedade. (Pensar utopicamente significa, aqui: pensar o que deveria e poderia ser, mas que ainda não existe, por mais que a concretização dessa existência pareça remota ou improvável.)
A industrialização da agricultura caminha a passos largos, juntamente com outros fenômenos como o crescente costuramento do mundo pelos transportes e pelas comunicações, a ubiquidade dos mecanismos de controle proporcionada pela disseminação de tecnologias como câmeras de vigilância, telefones celulares e drones e a difusão cada vez mais programada de modismos. Tudo isso, por mais que se origine dos interesses do grande capital transnacional e se espraie a partir dos centros de gestão do território localizados nos países centrais, atinge os mais remotos rincões do planeta. Antenas parabólicas, TVs e celulares, mas também formas de pensar e agir não são, em absoluto, coisas às quais somente os habitantes das grandes cidades (do “Norte” ou do “Sul”) têm ou queiram ter acesso. Teriam, então, razão os que sustentam a tese da “urbanização planetária”? Não exatamente, ou não inteiramente; e isso por diversas razões.
Por que parece tão difícil a uns tantos ver a hiperconcentração de recursos e oportunidades em grandes centros urbanos, por mais que eles sejam fontes de certas oportunidades (de cultura, de fazer política, de criar coisas novas…), como uma expressão das desigualdades que se reproduzem na esteira do capitalismo? E por que parece tão difícil a esses mesmos observadores abraçar uma crítica a essa hiperconcentração pelo que ela acarreta ou representa de ambientalmente danoso? Que preguiça mental nos impele a crer que seja tolice até mesmo cogitar uma matriz tecnológica e uma organização espacial que, articuladas com as relações sociais correspondentes, sejam capazes de proporcionar conforto e eficiência (de transporte, de comunicação, de moradia, de saúde individual e coletiva…) e também produtividade, sem por isso sacrificar a biodiversidade no altar da monocultura, contaminar mais e mais o ar e as águas, e assim sucessivamente?
Ao mesmo tempo, contudo, vale o raciocínio inverso: por que cargas d’água o mundo pré-Revolução Industrial, com suas agruras materiais e opressões (pensemos na situação da mulher, por exemplo), parece a outros tantos observadores possuir tão irresistível charme? Já se chegou, até mesmo, a romantizar as sociedades de caçadores e coletores e a clamar não só por uma “volta ao campo”, mas, até mesmo, por uma espécie de retorno ao paleolítico sem que se perceba (será?…) o profundo autoritarismo que se aninha em meio a tais delírios. Nada disso, entretanto, torna lícito tratar com desdém os modos de vida e os esforços de sobrevivência material e cultural de camponeses e aldeões, indígenas, caiçaras, quilombolas e outros atores sociais não urbanos (ou não plenamente urbanizados, em sentido qualitativo). O fato de eu não ser agricultor, indígena ou integrante de qualquer “população tradicional” e tampouco me imaginar vivendo fora de uma cidade grande ou de porte médio não me leva a acreditar que todos aqueles grupos são formados por infelizes e miseráveis que, coitados, não sabem o que estão perdendo. Me atrevo a pensar que respeitar suas escolhas (desde que sejam genuínas escolhas) não é uma questão de manter “megamuseus ao ar livre”, mas sim de aceitar a diversidade de caminhos nesta excitante aventura humana sobre a Terra. Me atrevo, ainda por cima, a não ver aqueles sujeitos coletivos como “inferiores”, crendo ser possível aprender várias coisas com as suas experiências e seu saber acumulado.
A esta altura, um pragmático talvez dirá: “temos tarefas mais urgentes do que pensar utopicamente; estamos lidando com fascistas, fascistóides e protofascistas em todo canto, direitos humanos elementares estão sob ameaça; investir em cenários de longuíssimo prazo é um luxo, ainda mais quando é tão improvável que o mundo do amanhã não seja outra coisa que a generalização de tudo aquilo que a grande cidade de hoje representa”. Ouso discordar. Justamente em uma época de expectativas tão rebaixadas quanto a nossa, em que o reformismo mais desfibrado já é tachado de “comunista”, não podemos nos dar ao luxo de parar de sonhar. Quanto a isso, inspirar-se em Kropotkin e Reclus (ou, para os marxistas, um pouco no Engels do Anti-Dühring, aliás atacado de maneira um tanto ligeira por Lefebvre) é mais que recomendável. Não é o caso, evidentemente, de repetir as palavras de quase um século e meio atrás, mas tão somente de reconhecer que a desconcentração econômico-espacial (sempre relativa, por óbvio) e a descentralização político-territorial permanecem sendo ideais inteiramente coerentes com aquele, maior, da superação da exploração e da heteronomia.
Tão ou mais pernicioso que romantizar a vida no campo (ou na não cidade) é desqualificar o modo de vida (e as lutas!) de camponeses, ribeirinhos, indígenas, barrageiros, quilombolas, faxinalenses etc.; e tão ou mais contraprodutivo e ingênuo que deplorar, nostálgica e regressivamente, a vida nas grandes cidades, é não enxergar e admitir as consequências da cooptação, domesticação e alienação dos trabalhadores urbanos (não somente pelo grande capital, mas também e cada vez mais pelos fundamentalismos religiosos e pelos circuitos do capitalismo criminal-informal), trabalhadores esses cada vez mais distantes daquela gloriosa classe operária, sujeito histórico e revolucionário por excelência, de que falavam os clássicos do pensamento crítico (especialmente no caso do marxismo).
Repensar profundamente as relações sociais e o espaço social, para evitar tanto uma “urbanofilia” acrítica (e amiúde etnocêntrica) quanto uma “urbanofobia” ingênua (quando não reacionária), é uma tarefa que se impõe. Ela é difícil e escorregadia; parece algo fora de nosso alcance, estranho à nossa agenda de prioridades. Porém, o que é a busca por alternativas, caso não tenhamos um horizonte, caso não debatamos projetos de sociedade, senão um caminhar errático, em que nos arriscamos a nos contentar com pouco ou a repetir os erros do passado?
Excelente texto! Olhar criticamente para as relações sócio-espaciais que se dão seja na cidade ou no campo (e, entre ambos) é essencial para refletir nossa participação enquanto atores transformadores. No caso dos caiçaras (como também de outras comunidades tradicionais e grupos minoritários citados) não é raro observar sua migração de áreas rurais para periferias urbanas (inclusive, no caso de grandes cidades) em busca de melhores condições de vida e seu posterior retorno ao local de origem pela conclusão de que se estava ruim, na cidade se tornou pior com as altas taxas de desemprego (ou subemprego), violência etc. Um trágico exemplo são algumas famílias de caiçaras da Península da Juatinga que, após sofrerem com o processo de desterritorialização por diferentes agentes (ameaças verbais e físicas de grileiros, avanço do turismo predatório e da pesca industrial, falta de infraestrutura social e técnica por parte do Estado, institucionalização de unidade de conservação que inviabiliza e criminaliza seu modo de vida tradicional e, portanto, suas existências) e se relocalizarem em favelas na área urbana de Paraty, em busca da escolarização de seus filhos, se depararam com a realidade de falta de saneamento básico, do tráfico etc. Algumas crianças caiçaras dessas famílias foram absorvidas pelo tráfico e, ao crescerem, desejaram retornar ao seu local de origem, levando com elas, agora já pessoas adultas, o tráfico para a comunidade tradicional.