Por Victor Santos Vigneron
Bacurau tornou-se um dos raros filmes brasileiros a desencadear algum debate na imprensa. Na Folha de São Paulo, os articulistas Demétrio Magnoli e Inácio Araújo explicitaram seus diferentes pontos de vista, embora tenham tratado pouco da obra. Seus textos serviram para marcar posições diversas, ainda que Magnoli tenha estabelecido os termos do debate: a vinculação do filme (e da esquerda) com perspectivas políticas e estéticas dos anos 1960. De maneiras diversas, essa comparação também aparece nas intervenções de Pablo Villaça (Cinema em Cena), Samuel Pessôa (Folha de São Paulo), Miguel Forlin (O Estado de São Paulo) e Durval Muniz de Albuquerque Jr. (Saiba Mais). Não se trata, evidentemente, de uma lista exaustiva. No entanto, a diversidade ideológica dessa pequena amostra torna ainda mais significativa a insistência em comparar Bacurau com o horizonte revolucionário daquela década, sobretudo através da referência constante a Glauber Rocha.
Existem marcações no filme que parecem endossar essa posição. Entre elas, as canções que abrem e encerram o enredo, respectivamente “Não identificado” e “Réquiem para Matraga”. Mas a simples justaposição dessas referências já sugere que algo não vai bem com esse argumento, uma vez que o filme incorpora elementos tão distantes entre si quanto Geraldo Vandré e a trupe formada por Gal Costa, Caetano Veloso e Rogério Duprat. Se somarmos a isso um Glauber Rocha em transformação entre Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), percebemos que a comparação, quando não é bem circunscrita, não faz justiça nem aos anos 1960, nem a Bacurau.
Há algo curioso nessa vinculação automática entre o banditismo sertanejo e Glauber Rocha. Afinal, o tema não deixou de aparecer no cinema brasileiro recente, inclusive num contexto familiar aos roteiristas e diretores de Bacurau, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: Baile perfumado (1996) e Árido Movie (2005). Quanto aos anos 1960, é importante lembrar que Glauber Rocha foi apenas um dos diretores que se dedicaram à construção de um verdadeiro “universo fílmico do cangaço” (a expressão é de Paulo Emílio Salles Gomes). Basta lembrar que no ano de lançamento de Deus e o diabo na terra do sol, 1964, também apareceu O Lamparina, produzido e estrelado por Amácio Mazzaropi. Assim, a vinculação automática entre o sertão e Glauber Rocha corre o risco de reproduzir o olhar estereotipado sobre o cinema brasileiro moderno lançado por instâncias como o Festival de Cannes (este sim, um vínculo direto entre o Cinema Novo e Bacurau).
Além disso, a organização formal do roteiro escrito por Mendonça Filho e Dornelles e mesmo algumas das imagens mais impactantes do filme não se assemelham tanto ao universo glauberiano. No jogo das comparações, talvez haja muito mais semelhança com filmes como A morte comanda o cangaço (1960, dir. Carlos Coimbra) e Memória do cangaço (1964, dir. Paulo Gil Soares). Nesse caso, a comparação se fundamenta numa homologia formal mínima e permite, entre semelhanças e diferenças, iluminar alguns aspectos próprios de Bacurau.
O primeiro aspecto é o caráter sumário do enredo. Ainda que essa história de ataque a uma vila no interior de Pernambuco por parte de elementos externos demore a apresentar seus contornos gerais, a trama pode ser resumida a isso. Nesse sentido, o filme repete todo um conjunto fílmico que tematiza agressões externas, presentes ontem e hoje nas obras de faroeste, em Matar ou morrer (1951) como em Godless (2017). A morte comanda o cangaço, não indiferente a esse gênero, também repete o modelo da agressão: o bando do cangaceiro Silvério incendeia a sede da fazenda de Raimundo Vieira e assassina todos que encontra por ali; Raimundo sobrevive e providencia sua vingança. Nesses filmes, os acontecimentos exibidos são mais importantes que o enredo, cujo único desdobramento é o desfecho.
Essa contração narrativa não é modificada pelas poucas tramas paralelas de Bacurau. Sabe-se logo que elas convergirão no desfecho, o que reforça a expectativa por ele. Mas trata-se de uma expectativa de tipo bidimensional: invasores ou invadidos vão sobreviver. O que, aliás, é endossado pelo desfecho efetivo. O que faz Bacurau transbordar esses limites é o uso de outros dois recursos narrativos, aparentemente disparatados, as elipses e as digressões. Em outras palavras, estamos falando de um filme sumário, cheio de lacunas, com mais de duas horas de duração.
Durval Muniz de Albuquerque Jr. insiste nas ambiguidades decorrentes dessas elipses. A respeito da distribuição de cápsulas alucinógenas, nota as alternativas que ficam no ar: “denúncia do tráfico de drogas? Valorização dos saberes tradicionais, das drogas naturais? Expressão do próprio surrealismo da situação e da trama, do próprio mundo em que vivemos?”. A simples indicação dessas dúvidas, que realmente ocorrem, sugere que a leitura do filme como “propaganda”, tal como feita pelo par Magnoli-Araujo, não é satisfatória. De fato, o filme beira a falta de sentido devido a algumas dessas elipses. Como pode, então, ser propagandístico? É importante lembrar a essa altura que a elipse é uma ferramenta elementar e corriqueira da narração fílmica ou literária. O simples fato da edição já supõe elipses. E se as elipses em Bacurau são forçadas, o que se força não é tanto a narrativa em si, mas sobretudo seu vínculo com o espectador, a quem é atribuída a tarefa de dar sentido aos acontecimentos (mas não à trama) com um número pequeno de elementos.
Ao lado das elipses, o uso das digressões também enfraquece a tese de Bacurau como propaganda. Assim, embora a trama central permaneça pairando sobre o filme, dela nos afastamos e nos aproximamos ao sabor dos acontecimentos, que não apontam numa mesma direção. Algo semelhante, aliás, ao que ocorria em O som ao redor (2013) e mesmo em Aquarius (2016). Mas diferentemente desses filmes, onde o desfecho não é tão evidente, há em Bacurau um contraste entre o desfecho bidimensional e a deriva que o precede. Nessa toada, o espectador do filme torna-se involuntariamente um colecionador de sugestões sem desenvolvimento. É o caso, sobretudo, da trajetória pregressa das personagens, invasoras ou ou invadidas. Aqui, é ilusório esperar das digressões uma compensação pelas elipses, pois não só o passado não explica o presente como dele voltamos com outras tantas dúvidas. Assim, se as elipses nos obrigam a formular hipóteses, as digressões multiplicam (ao invés de limitar) as possibilidades de explicação.
Mas o preenchimento das elipses e o prolongamento das digressões ocorre dentro de certos parâmetros fixados pelo material empregado no filme. E certamente a violência é, nesse caso, um dos critérios da imaginação. A esse respeito, Durval Muniz de Albuquerque Jr. sugere ainda que o filme repõe uma “narrativa utópica anacrônica”, por meio do emprego de clichês imagéticos parcialmente vinculados ao Cinema Novo. Assim, a imaginação ficaria ligada a uma perspectiva de revolução com o uso da violência. Em relação a essa afirmação, gostaria de fazer duas observações. Primeiramente, creio que há aí uma articulação infeliz entre material fílmico e sua recepção. Fica a impressão de que o público simplesmente adere e amplifica o conteúdo do filme, que ele é passivo. Nessa perspectiva, os espectadores são isentos de responsabilidade, a qual retroage ao filme, entendido um pouco como “laranja podre” cultural.
Mas há ainda uma questão mais significativa, a meu ver. Pensemos nas cabeças cortadas, citadas por Albuquerque Jr. em várias ocasiões. Há uma decapitação em Deus e o diabo na terra do sol, mas ela é elíptica. Glauber Rocha é tímido em comparação com A morte comanda o cangaço, onde a cabeça da mãe do protagonista aparece espetada numa estaca pelo bando de Silvério, e sobretudo com Memória do cangaço, em cujo final são exibidas várias cabeças de cangaceiros (Lampião, Maria Bonita, Corisco, Zabelê etc.) em redomas de vidro. Insisto nesses filmes para sugerir que a referência ao Cinema Novo (denominação duvidosa para Paulo Gil Soares e descabida para Carlos Coimbra) é um tanto estereotipada. Seria o caso de questionar, inclusive, a necessidade de remeter aos anos 1960 uma vez que o espectro da decapitação adquiriu uma sinistra atualidade, fartamente registrada em imagens, com as recentes rebeliões prisionais em Manaus, Boa Vista, Natal, Aparecida de Goiânia e, mais recentemente, Altamira.
À violência de Bacurau se articula a uma tese, a de que o Brasil e o mundo permanecem arcaicos. Eu diria que o problema do filme não repousa tanto na tese, mas no seu grau de desenvolvimento. Se, em nome de um gênero fílmico ou de determinadas técnicas narrativas, é lícito sumarizar ao máximo o enredo de base, o mesmo não se pode dizer da reflexão proposta. A justaposição de filmes tão diversos quanto O som ao redor, Aquarius e Bacurau preocupa pelo realejo que se tornou o diagnóstico do atraso. A cronologia dessas produções ou sua vinculação com os fatos políticos do momento torna-se até secundária dada a estagnação teórica em que essa produção se encontra.
Talvez isso fique mais claro se pensarmos na elipse que fundamenta a própria distopia de Bacurau. Algo aconteceu naquela sociedade, mas não se sabe bem o quê. O que se conhece é o resultado desse evento, uma comunidade “desconstruída” e de vínculos fortes, à qual se opõe a crueldade social estrangeira (municipal, regional, mundial). Creio que esta seja a única elipse realmente infeliz do roteiro, pois o que aqui é lançado à imaginação do espectador não é do domínio do enredo, mas sim da própria tese. A argumentação é suspensa justamente no xis da questão posta, isto é, na investigação sobre os mecanismos de adesão ou recusa à “crueldade social que emana diretamente da guerra social que é o mundo do trabalho atualmente” (a frase é de Paulo Arantes). Assim como Divino Amor (2019), Bacurau pula direto às conclusões.
Ainda assim, a busca por formulações estéticas novas para o mesmo problema coloca o filme no campo da experimentação. É nesse sentido que a articulação muito particular entre síntese, elipse e digressão me parece abrir uma reflexão não apenas sobre a fatura da obra, mas sobre sua forma de se relacionar com o público. Pressinto que o esforço de atualização não foi acompanhado por uma crítica que insiste em equivaler as formulações do filme a um todo (“a esquerda”) estereotipado (“anos 1960”). O abuso da metonímia, nesse caso, talvez seja índice de uma estagnação teórica e expressional.
Excelente texto.