Por Rodrigo Oliveira Fonseca

No último dia 09 de outubro o exército turco e as milícias que controla em meio ao conflito na Síria iniciaram uma grande ofensiva militar contra a Administração Autônoma do Norte e do Leste da Síria – nome adotado atualmente pela federação formada a partir da Revolução de Rojava em 2012 e da campanha que, com o apoio de uma coalizão encabeçada pelos EUA, desmontou o extenso “califado” que o ISIS (Estado Islâmico do Iraque e da Síria na sigla em inglês) erigiu em 2014. A operação turca, denominada “Primavera da Paz” a despeito dos crimes de guerra que vem cometendo desde o primeiro dia, começou pouco após os EUA anunciarem oficialmente a retirada de seus soldados da Síria.

Eis que no dia 13 de outubro, após quatro dias de apelo das forças de Rojava em prol do fechamento do espaço aéreo no norte da Síria e de um mínimo de mediação com a Turquia por parte dos EUA, tornou-se público o acordo de cooperação militar entre as Forças Democráticas Sírias (SDF na sigla em inglês) e o Exército Árabe da Síria, de Assad (SAA na sigla em inglês), contra a ofensiva turca. No dia 14, aviões da Força Aérea Russa deram cobertura a movimentações conjuntas das SDF e do SAA e impediram o bombardeio do quartel-general das SDF em Manbij.

Cidades em que as forças governistas não pisavam desde 2011 ou 2012 terão o exército de Assad nos seus arredores, de modo que os receios são grandes quanto ao alcance e aos desdobramentos dessa cooperação entre o regime e a revolução. O comandante-em-chefe das SDF, Mazloum Kobani, deu a entender que haverá um preço alto a ser pago pela sobrevivência: “Sabemos que teremos de assumir compromissos dolorosos com Moscou e Assad se quisermos trabalhar com eles. Mas, se temos de escolher entre compromissos e o genocídio do nosso povo, evidentemente escolhemos a vida do nosso povo”. Já o co-porta-voz do Partido da União Democrática (PYD, ligado ao PKK, Partido dos Trabalhadores do Curdistão, da Turquia), Salih Muslim, assegura que o acordo visa exclusivamente a preservação da soberania nacional síria sobre seus territórios contra a invasão turca e seu plano genocida, afirmando que não haverá intervenção sobre os trabalhos da Administração Autônoma Democrática e seus conselhos.

Afora a extrema-direita ocidental, que vê na luta de Rojava um “importante movimento anti-islâmico”, e sem considerar a esquerda identitária, que concorda com a extrema-direita mas inverte o sinal, acusando Rojava de racismo e islamofobia, até esse momento da conjuntura parecia haver um equilíbrio entre três posturas principais na esquerda mundial em relação ao movimento de Rojava: apoio, oposição e perplexidade. O apoio sem vacilações [1] vindo sobretudo de militantes e grupos libertários atentos às experiências de autogoverno que têm se desenvolvido na Síria; a oposição – aberta, envergonhada ou nas entrelinhas – vinda da esquerda leninista (tanto do lado pró-Assad, que se bate pelo nacionalismo terceiro-mundista, quanto do lado anti-Assad e pró-rebeldes do Exército Livre da Síria); e, de todos os lados, uma perplexidade sincera, frente às muitas contradições e improbabilidades em torno desse processo desde o seu início há sete anos.

A partir dos entendimentos entre as Forças Democráticas Sírias e os governos de Putin e Assad o campo da perplexidade se expandiu ainda mais, despertando também uma espécie de gozo incontido na esquerda leninista: no campo trotskista corre o “não me enganaram, eu já sabia”, como se o PYD, que nunca defendeu a derrubada de Assad, mas sim a realização de eleições livres, jamais tivesse sido efetivamente revolucionário; e no campo do nacionalismo terceiro-mundista corre um sórdido “bem-feito, a gente avisou”, que tem sido a tônica das intervenções de Assad quanto a Rojava.

Uma das questões que causa receios e perplexidade pode ser formulada da seguinte forma:

“Se os curdos tiveram o apoio dos EUA por tanto tempo, então não deve ser coisa boa o que tem se desenvolvido no norte e no leste da Síria”.

Evidentemente, os EUA têm interesses estratégicos no Oriente Médio, mas, grosso modo, estes já são muito bem representados e atendidos por Israel, Arábia Saudita e os petro-Estados. Quando os protestos por toda a Síria foram brutalmente reprimidos pelo governo de Assad e desembocaram em uma guerra civil, várias forças internacionais, com destaque para o governo de Barack Obama, buscaram influenciar e apoiaram militarmente o autodenominado Exército Livre da Síria (FSA na sigla em inglês). O crescimento e fortalecimento dos grupos fundamentalistas islâmicos no interior do FSA, com destaque para a Al-Qaeda local (atualmente organizada na Hayat Tahrir al-Sham, HTS, Organização para a Libertação do Levante), e a expansão vertiginosa do ISIS em 2014, levaram os EUA a uma mudança de estratégia. A Turquia foi assumindo progressivamente o financiamento de boa parte destes grupos, ao ponto de formar um “Exército Livre da Síria turco” (TFSA na sigla em inglês, o oficialmente denominado Exército Nacional Sírio), e os EUA passaram a priorizar o combate ao ISIS, investindo no armamento e no treinamento de forças curdas, árabes, assírias/siríacas, turcomenas, ligadas ao PYD. Inclusive, as Forças Democráticas Sírias foram criadas em 2015 nesse processo de formação de um agrupamento militar mais amplo que as guerrilhas do PYD (as YPG e YPJ, Unidades de Proteção Popular e Unidades de Proteção das Mulheres), para o combate ao ISIS em intensa articulação com a Coalizão internacional encabeçada pelos EUA.

O apoio militar dos EUA aos braços armados de Rojava mostrou-se totalmente exitoso no combate ao ISIS, de modo que já não há regiões sírias controladas pelos fundamentalistas que mais apavoraram o mundo. Tratou-se realmente de um apoio pragmático e restrito ao combate ao ISIS. Por exemplo, as SDF não se envolveram na resistência à invasão turca de Afrin em 2018, cabendo esse papel às YPG e YPJ. Hoje, sem a colaboração dos EUA (antes o contrário!), as SDF estão ombreando com o SAA na resistência à invasão turca do norte da Síria.

Mas não devemos escapar da parte final do enunciado, “não deve ser coisa boa o que tem se desenvolvido no norte e no leste da Síria”. Sob o horizonte do Confederalismo Democrático existe o desafio da organização social em comunas [como analisado aqui, com desdobramentos na propriedade dos meios e nos modos de produção [analisados aqui e aqui]. Não são essas, por certo, as partes do projeto mais propagadas mundo afora, e sim aquelas que são tidas como os três pilares: ecologia, feminismo e democracia direta (que por vezes é dita apenas como “descentralização”, “boa governança baseada em governo pequeno” e respeito à diversidade étnica e cultural dos povos da Síria). Aumentando a perplexidade e as hesitações, o formulador teórico desse programa, Abdullah Öcalan, “Apo”, não pleiteia a “tomada do poder” nem a conformação de um Estado “de novo tipo”, como no zapatismo.[2] Logo, o PYD não é separatista nem é “curdista”, não tem em seu horizonte qualquer projeto análogo ao do Curdistão iraquiano (que se presta a servir de quintal dos capitais turcos), visando investir em um processo de superação a longo prazo do Estado-nação que não passa pelo seu enfrentamento – o que se manifestou na rejeição do PYD às tentativas de derrubar Assad e desmantelamento da unidade nacional da Síria.

Isso posto, não se pode realmente extrapolar o sentido do apoio dos EUA às forças de Rojava. Mas por que, então, Assad e o PYD não deram esse passo antes rumo a um entendimento? Por que experiências de coexistência (mesmo que tensas) como as de Hasakah e Qamishlo não se disseminaram?

Em 2017 o governo de Assad, sob influência dos russos, acenou com a possibilidade de um acordo com o PYD em torno de algum nível de autonomia nas regiões do norte e leste da Síria. As forças de Rojava chegaram, inclusive, a alterar o nome do seu não-Estado: de Federação Democrática do Norte da Síria, nome adotado em 2016 para substituir oficialmente o nome curdo “Rojava” (Oeste), tornaram-se Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria no ano passado.

No entanto, as negociações não avançaram. As forças de Assad e os russos também atuaram no combate final ao ISIS, mas se concentraram no violento confronto (ainda não solucionado) com o FSA, e o governo vem repetindo que não negocia a integridade territorial síria de 2011. É de se considerar o quanto que a proximidade entre as SDF e as forças estadunidenses emperraram as negociações, assim como a firmeza do PYD e forças aliadas em Rojava em não abdicarem de sua autonomia política e militar [3] – o que pode ter se mostrado decisivo na invasão a Afrin, que no passado recente era o cantão de maioria curda mais pacífico ao norte da Síria. O cenário, naquela ocasião, era um tanto parecido com o do início da nova operação turca: os russos, que colaboravam com as YPG e as YPJ na defesa territorial de Afrin, se retiraram pouco antes do início da ofensiva turca, em claro sinal de traição aos curdos; Assad bradou que não iria tolerar qualquer ataque ao território sírio… e o resultado é uma ocupação que já leva mais de um ano, com uma política de intensa alteração demográfica (anti-curda) coordenada pelos turcos, bastante conveniente ao governo de Damasco, que no passado sempre buscou a arabização de toda a Síria.

É sabido que o apoio à defesa de Afrin contra os turcos foi condicionado à “devolução” da região ao governo de Assad. Será esse o preço hoje a ser pago pela revolução ao custo da sobrevivência dos revolucionários? Rojava atira em Erdogan sobre os ombros de Putin e Assad como um dia os bolcheviques atiraram na reação czarista (Kornilov) sobre os ombros dos mencheviques (Kerensky)? Não há indícios de que Assad e, sobretudo, Putin, tenham algum interesse numa ação que vá além da dissuasão da pressão turca sobre a revolução de Rojava [4], e esse “ombro amigo” às SDF pode muito bem ser outra coisa no curto e médio prazo.

Enfim, é difícil não desconfiar de (mais) uma arapuca contra a revolução. Ao contrário do governo de Putin, que no início reconheceu a legitimidade da busca de segurança nacional pela Turquia nas suas fronteiras com a Síria, o governo iraniano protestou imediatamente contra a operação turca. Mas assim que os turcos iniciaram sua campanha, as forças iranianas presentes em território sírio, fortes aliadas de Assad, atacaram bases das SDF em Deir Ezzor, na divisa com o Iraque (que é hoje um país sob influência do Irã).

Erdogan lida com uma forte pressão interna contra os milhões de refugiados sírios no país. Também na Turquia existe uma direita xenófoba e isolacionista, que faz pouco caso da política imperialista do governo. A possibilidade de deportação desses refugiados para Rojava (ao invés do que houve em Afrin, com o envio de grupos fundamentalistas e de outros opositores que viviam na rebelde Idlib, ainda controlada pelo FSA) significaria um enorme ganho tanto para Erdogan quanto para Assad. Mas é razoavelmente claro que Assad não poderia, dessa vez, se comportar como no ano passado em relação à invasão de Afrin. As regiões que estão sendo atacadas agora não são tão predominantemente curdas quanto Afrin. Árabes, turcomenos e assírios (estes, em geral, cristãos) estão sendo também atingidos. Trata-se, assim, de uma oportunidade de ouro para o governo de Damasco recuperar a sua legitimidade nesses territórios. E a “cereja do bolo” dessa desconfiança é a intensa dedicação com que a mídia do governo tem se referido à movimentação do Exército sírio no norte do país sem mencionar qualquer acordo com as SDF e mesmo sem mencionar as SDF, a Administração Autônoma ou os curdos [por exemplo, aqui. Um silêncio com sabor de maus presságios.

Por sorte essa história não termina nas ações e nos propósitos dos russos e de Assad frente à barbárie genocida promovida pelo Estado turco, assim como as SDF não terminaram na campanha contra o ISIS para a qual os EUA as prepararam. A sobrevivência dos revolucionários de Rojava é condição absoluta para o prosseguimento da revolução, que até aqui jamais se deu em condições favoráveis. E frente ao silêncio do Estado sírio estamos nós, não dispostos a ecoá-lo.

Notas

[1] Sem vacilações mas também, em alguns casos, mais animado pelo “repertório de um fascínio estético e fé política do que [pel]a própria realidade no terreno, que se apresenta aos nossos olhos sob uma nuvem de mistificação.” Ver o excelente artigo de Rachel Pach, Biji Kritik Rojava: crítica radical e solidariedade contra a barbárie das guerras de reordenamento mundial, disponível aqui. Este artigo é especialmente importante numa consideração realista das contradições do modelo econômico e social desenvolvido em Rojava, ao mesmo tempo em que reafirma o seu caráter revolucionário.
[2] Öcalan entende que o Estado-nação é uma colônia do capital, perfeitamente funcional aos processos capitalistas de exploração, sendo o fascismo a forma mais pura do Estado-nação. Em Adbullah Öcalan, Confederalismo Democrático. Tradução do Coletivo Libertário de Apoio a Rojava. Rio de Janeiro: Rizoma, 2016, pp. 21; 31.
[3] Para Öcalan (idem, p. 31; 32), o campo político não se separa do militar, “a liderança civil do Estado é apenas um acessório do aparato militar”, de modo que o confederalismo democrático é pensado como um “sistema de autodefesa da sociedade”.
[4] O governo russo, que tem tido sucesso na ampliação de sua influência sobre os Estados que disputam entre si o protagonismo no Oriente Médio (além do Irã e da Turquia, Putin está reatando relações com os sauditas), deixou claro no dia 15 de outubro que não permitirá um enfrentamento entre as forças sírias e turcas.

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