Por André Luiz Barbosa da Silva
Há uma onda de protestos na América Latina[1] — Argentina, Equador, Chile, Colômbia —, uma efervescência revoltosa contra as promessas não cumpridas da ideologia neoliberal.
Momento propício para a esquerda reerguer o sonho socialista nas mentes do povo infeliz que sofre a irracionalidade da acumulação capitalista. No entanto, aparentemente, a esquerda continua a apostar no mesmo, reformas e mais reformas para um capitalismo com ‘rosto mais humano’. Utopismo maior não há!
Caso a esquerda continue a apostar nessa receita o desfecho será o mesmo, o aprofundamento do barbarismo, o aumento da desconfiança do povo naqueles que dizem ser sua voz, dentre outros resultados catastróficos. Isso ocorrerá, pois não se trata de uma crise do ‘neoliberalismo’. Esta ideia transmite a percepção de escolha, ou seja, o neoliberalismo é a maneira pela qual os ‘malvados’ comandam o capitalismo. Por outro lado, caso os ‘bonzinhos’ assumam o poder decretarão o Estado de bem-estar social, onde a distribuição de riquezas acontece de forma equânime, os patrões e empregados tomam da mesma cerveja e brindam os lucros compartilhados, há empregos para haver patrões e empregados, a alegria e a felicidade descem do céu para acontecer na realidade.
O avanço do neoliberalismo a partir de 1980 não era um jogo sujo dos capitalistas mais ávidos, um golpe de Estado montado com a cumplicidade dos políticos mais complacentes, como insiste em acreditar a esquerda ‘radical’. O neoliberalismo era, pelo contrário, a única maneira possível de prolongar por um pouco mais de tempo o sistema capitalista.[2]
Deste modo, entende-se que o neoliberalismo é o modo que o sistema encontrou para a continuidade da valorização do valor, para a manutenção do modo de reprodução capitalista. Parafraseando Max Horkheimer, ‘aquele que não quer falar de capitalismo, cale-se sobre o neoliberalismo’,[3] pois o neoliberalismo é apenas o capitalismo em estágio avançado. Por isso a crítica do neoliberalismo deve ser lastreada pela crítica do Capitalismo de modo geral e não um apontar para a retomada do fordismo ou qualquer coisa parecida com um fantasioso Estado de bem-estar social.
Na verdade, é este o problema da esquerda, ela não quer findar a doença, dar o golpe de misericórdia para aqueles que sofreram e sofrem as misérias desta sociedade em putrefação. Apenas deseja tratar seus sintomas, remediar o irremediável. Todavia, no momento em que o povo se revolta, abre-se uma brecha para a liberdade e esta tem que ser aproveitada.
A esquerda ‘radical’ terá agora que se decidir: ou passa a uma crítica do próprio capitalismo, embora ele não mais se proclame neoliberal, ou participa da gestão de um capitalismo que incorporou uma parte das críticas contra seus ‘excessos’.[4]
É preciso voltar a pensar e expressar a Ideia do socialismo. Parte da esquerda conjuntamente com a direita tentaram enterrar esta Ideia, acreditaram no fim da história e na ideologia liberal de que daqui para a frente só há o capitalismo, contentaram-se com o consumismo desenfreado, lutando só para que os mais pobres pudessem comer e viajar uma vez ou outra de avião, comprar via crédito e ser felizes com ‘migalhas’. Mas esqueceram de contar que no final disso tudo haveria uma conta bem robusta a ser paga, a disponibilidade de crédito que parecia ser a alegria tornou-se motivo de tristeza e suicídio.
De modo resumido, adentraram na dança das cadeiras e mesas, compartilharam dos interesses da sociedade da mercadoria, esta mesma que deveria ser criticada por seus pressupostos e fundamentos pela esquerda em geral, que jamais deveria compartilhar de seus sonhos irrealizáveis. O governo do possível se quebra nas revoltas populares. É preciso pensar o que é dado como impossível, uma vez que o possível não dá mais.
É nas manifestações populares que se percebem os desejos mais latentes que são irrealizáveis pela sociedade da mercadoria, a ‘nova sensibilidade’ que Marcuse falava em seus escritos se apresenta em estágio de desenvolvimento nessas revoltas populares.
A nova sensibilidade tem chegado a ser, através deste mesmo significado, práxis: emerge na luta contra a violência e a exploração, ali onde esta luta se encaminha a ganhar modos e formas de vida essencialmente novos: negação total do sistema estabelecido, de sua moralidade e de sua cultura; afirmação do direito de construir uma sociedade na qual a abolição da violência e do esgotamento desemboque em um mundo onde o sensual, o lúdico, o sereno e o belo cheguem a ser formas de existência e, portanto, a Forma da sociedade mesma.[5]
Todavia, a revolta logo passará e, caso continuem a sonhar com o passado ‘keynesiano’ glorioso, voltarão as pessoas a seus estados anímicos, sentindo-se estas reduzidas por sua impotência diante a máquina de moer gente. É preciso aproveitar que há uma interrupção da engrenagem, é preciso fomentar ideias socialistas no cotidiano das pessoas — a ‘nova sensibilidade’. É preciso romper com a lógica da mercadoria por mais um instante até que se rompam as bases e um dia, em um pôr do sol vermelho alaranjado, seja possível vibrar que as pessoas não vivem mais somente para gerar mais-valor e consumir mercadorias inúteis em um ritmo competitivo infernal, que possam se abraçar e em ritmo tranquilo desfrutar de tudo que a vida tem a oferecer.
Caso isso não ocorra, continuaremos a sentir o insuportável cheiro do cadáver que custa a cair na tumba, vivendo dia após dia idealizando como numa velha fotografia o momento perdido.
Notas
[1] Por questões geográficas não pude citar o Haiti, que está passando por mais um difícil período de sua história. O povo irmão caribenho luta, e não poderia ser esquecido em hipótese alguma, mesmo que os limites geográficos me impeçam de listá-lo como país latino-americano. Sobre o Haiti ver um texto que escrevi no Portal Disparada.
[2] JAPPE, Anselm. A decomposição do capitalismo e de suas críticas. São Paulo: Hedra, 2013, p. 49-50.
[3] Max Horkheimer, em “Os judeus e a Europa”, escreveu: “Quem não quer falar do capitalismo deveria se calar também sobre o fascismo”.
[4] Idem, ibidem, p. 44.
[5] “La nueva sensibilidad ha llegado a ser, a través de este mismo signo, praxis: emerge en la lucha contra la violencia y la explotación, allí donde esta lucha se encamina a lograr modos y formas de vida esencialmente nuevos: negación total del sistema establecido, de su moralidad y su cultura; afirmación del derecho a construir una sociedad en la que la abolición de la violencia y el agobio desemboque en un mundo donde lo sensual, lo lúdico, lo sereno y lo bello lleguen a ser formas de existencia y, por tanto, la Forma de la sociedad misma”. MARCUSE, Herbert. Un ensayo sobre la liberación. México: Joaquín Mortiz, 1969, p. 32.
Neoliberalismo não morreu, só morre de morte matada!!