Por Alan Fernandes

Os artigos sobre os protestos em Hong Kong foram reunidos em um dossiê.

1. Faz 8 meses desde que eclodiram revoltas que têm abalado Hong Kong e o império chinês. A relação dos protestos com este último é decorrente do pacto de jurisprudência que a China tem sobre a colônia baseado no artigo 31 da Constituição chinesa, que estabelece Hong Kong como uma Região Administrativa Especial. Contudo, Hong Kong assegura um sistema jurídico próprio com leis próprias, muitas delas da época em que ainda era colônia britânica.

2. É sugestivo que exista uma direita coagindo nos protestos populares. Até uns meses atrás era normal manifestantes carregarem bandeiras britânicas, e em alguns casos até dos EUA pedindo socorro contra a brutalidade do regime chinês. O paradoxo da direita libertária versus o comunismo ditador não deixa de ser uma constatação quando as forças da ordem dizem estar em caminhada para o comunismo científico. Quando existe essa contradição gritante na geopolítica, os PCs logo se detêm a apontar a priori a direita como posição dominante na oposição.

3. A esquerda e a extrema-esquerda também disputam os protestos. Ainda que não pareça existir um norte favorável para o “anticapitalismo” como uma pauta futura, as ações dos manifestantes em tudo têm a ver com a interrupção da circulação e produção de capital. Os protestos são violentos, as greves são selvagens e multiplicam-se barricadas e paralisações em terminais de metrô. O imperativo dos manifestantes é ir para a rua e resistir! São essas forças que creem que as pautas civis favorecem a classe trabalhadora para se manter organizada.

4. Mas é muito difícil fazer uma mensuração do conteúdo dos protestos se não entendermos como determinante a atividade dos lutadores sociais. Há rumores de que uma das pautas seria a independência de Hong Kong da China. Essa sugestão é vaga, uma vez que não há esforço algum, por meio da população ou da diplomacia internacional, para fazer isso acontecer. Essa pauta nunca foi consenso entre os lutadores. Agora que já estabeleci o quão importante é se rebelar contra o regime chinês, devo me deter em dizer que o separatismo não é uma proposta que serve à classe trabalhadora. A renovação dos gestores tende a se articular em seguida com os países do Ocidente, ou não, para impedir mecanismos de poder popular. De todo modo, não parece ser uma preocupação emergencial para agora. Com a dúvida de o que querem os manifestantes, passo para o 5º comentário.

5. As reivindicações que a maioria reivindica são 5: 1) arquivamento imediato da lei da extradição, motivo principal para iniciar os protestos. Meses depois do começo dos atos de rua, o governo já tinha dado para trás com o projeto de lei; 2) que se faça uma comissão que investigue a polícia de Hong Kong em detrimento de violência e abuso de autoridade; 3) sufrágio universal. Hoje, quem propõe projetos de lei ou indica cargos é quem compõe o Colégio Eleitoral; 4) liberdade para os presos e processados em detrimento dos protestos. E por último 5) que o governo se retrate sobre as queixas de vandalismo.

6. Muitos manifestantes também pedem a renúncia de Carrie Lam — chefe do executivo. Acreditam que ela é influenciada pelo regime chinês e portanto “anti Hong Kong”. Basta ver, após os protestos do dia 11/11, soldados da PLA — People’s Liberation Army —, que são o braço armado do PCCh (Partido Comunista Chinês), adentrarem a colônia e marcharem pelas ruas cantando em mandarim, e neste meio tempo desfazendo barricadas e insultando manifestantes. O que se cobre na mídia é que a entrada das tropas chinesas é ilegal, pois não houve decreto de intervenção. Embora a afirmação seja verdadeira, a chefe do executivo parece não achar um absurdo. Na ocasião do dia 11/11 se manteve intransigente em não atender uma pauta sequer. Disse ainda, em comunicado, que tomaria providências para “estabelecer a ordem”.

No matter what you believe in, what kind of political opinion you hold. The proud for society is to stop violence and restore calm to Hong Kong.
Carrie Lam – 11/11/2019

7. Na ocasião do onze de outubro a polícia baleava um manifestante mascarado. Tempos depois um opositor do movimento aparece em vídeo sendo queimado vivo em uma das estações de metrô que os manifestantes ocupavam. Naquele mesmo momento, muitas outras unidades estavam sendo ocupadas pelo tumulto. A mentalidade de responsabilizar todos os revoltosos pela morte de um indivíduo foi usada como uma bandeira por figuras públicas, pasmem, de esquerda, para condenar o movimento. Esses esforços são de figuras ideológicas da tradição stalinista, muito característica em considerar como luta de classes a posição favorável no cenário geopolítico, e não a atividade libertadora dos trabalhadores em luta.

8. No madrugada do domingo o terror tomava conta da universidade PolyU, onde ocorria uma ocupação estudantil em solidariedade ao movimento. A polícia cerca e atira bombas de gás e orienta, a quem quiser se retirar da universidade, que se renda e abandone seus materiais violentos pelo caminho. Ao saírem, porém, são encaminhados direto para a delegacia e são presos. A polícia também está detendo médicos e jornalistas nas redondezas. Mais um bônus para o paradoxo do anticomunismo! Há uma campanha forte no Twitter para que os EUA se solidarizem com os manifestantes. A polícia chegou até a acionar um sniper no museu próximo à universidade na esperança de amedrontar os estudantes.

9. Os rumos dos protestos vão depender da dinâmica dos próximos dias e de como a esquerda vai se colocar. É tarde para uma aliança com a classe trabalhadora chinesa, muito presa a um chauvinismo disfarçado de comunismo? Os protestos em muito diferem dos que combatem os efeitos da austeridade na domesticação da força de trabalho (como tem sido o caso na América Latina desses últimos dias), e também deixam a desejar porque o movimento não se desenvolveu de tal modo que os manifestantes conseguissem se organizar nos seus locais de trabalho e nos seus bairros para problematizar a falta de controle sobre o trabalho. Ainda assim, em alguns casos os manifestantes que têm de ir para o trabalho vão em ato, criando uma situação nas ruas em que se contorna a normalidade. A esquerda assumir essas pautas de liberdades civis é uma boa garantia para a continuidade das mobilizações e e a possibilidade de avanço em torno de práticas de sabotagem. Um imperativo para os habitantes da colônia hoje é confrontar não só o Estado rígido, mas a ditadura das empresas que se estabelecem no território. Para isso, precisam superar a utopia de democracia ocidental que coabita com a violência do capital. A classe trabalhadora de Hong Kong pode lidar com o paradoxo do anticomunismo libertário no terreno onde se confronta com o capitalismo chinês — na crítica às relações de produção vigentes.

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