Por Miguel Serras Pereira

Na nona, e uma das mais célebres, se não a mais célebre, das breves Teses sobre a Filosofia da História de Walter Benjamin podemos ler o seguinte:

Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos o progresso. 1

Pois bem, embora não saibamos se Maria João Cantinho, que, como ensaísta, tem visitado insistentemente a obra de Benjamin, teve em mente, ao escrever o seguinte poema propor-nos uma alternativa à tese de Benjamin e à sua concepção da “tempestade” da História, o certo é que se torna difícil não descobrirmos nas suas palavras uma réplica essencial — uma resposta alternativa à de Benjamin, ainda que retomando o seu ponto de partida. Senão vejamos:

Essa mulher que caminha no orvalho da madrugada,
de pés nus, que dança na margem do rio,
ouvindo o vento da noite,
           essa mulher
que canta o silêncio até onde o grito,
traz na fronte a cicatriz,
que se desenha como a luz na água, a sua loucura,
          ela, alheia a tudo,
dança até onde a música eleva os seus pés,
ardem-lhe os lábios, morde a dor, a vida
e nada recusa.

Dança até onde a tempestade a leva. 2

De facto, como não pensar, perante a “mulher que caminha no orvalho da madrugada” e “até onde a tempestade a leva”, no Anjo de Benjamin, que a tempestade obriga a avançar, recuando, e força ao progresso do futuro, acumulando ruínas aos seus pés? Mas o Anjo de Benjamin quereria ficar no passado ou voltar a ele; vira-se para o passado, contra o vento que dele vem e, acumulando ruínas a seus pés, o impele, num progresso forçado, juntamente com as ruínas, para o futuro. Não resta ao Anjo outro caminho a propor-nos senão, talvez, a imobilidade expectante do credo quia absurdum (“creio porque absurdo”) da esperança messiânica num Fim da História que a resgate, e supere, como prova do advento da redenção — e da língua única, que reunirá, mas suprimindo-as, todas as línguas. A Mulher, que Maria João Cantinho nos mostra neste seu poema de O Traço do Anjo, se luta contra o vento do passado, não o recusa nem renega; deixa que esse vento do passado sopre e se torne impulso, não de esperança ou progresso tendo por meta um futuro já prescrito, mas impulso presente na dança que dança ao dançar o seu caminho — agora mesmo, a cada instante, sempre agora, “até onde a tempestade a leva”. A tempestade fustiga ambos, o Anjo e a Mulher, mas o Anjo resiste-lhe, recuando, com os olhos postos nas ruínas da Terra Prometida perdida no passado, enquanto a dança da Mulher navega a própria tempestade. Virando costas ao Anjo, mensageiro da necessidade histórica, mas não à tempestade, que é a própria História, incerta desde sempre e para sempre. E fá-lo um pouco, ocorre-me agora, do mesmo modo, que Sophia nos convidava a retomarmos a “solenidade e risco” dos que “[n]avegavam sem o mapa que faziam” 3. Tal é o caminho que a navegação da Mulher faz: no vento por onde chega, é a sua voz que canta; na tempestade que a leva, é ela quem dança.

Notas
1 Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, tradução de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto, Lisboa, Relógio D’Água, 1992.
2 Maria João Cantinho, O Traço do Anjo, Porto, Editora Edium, 2011.
3 Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, Lisboa, Assírio & Alvim, 2018.

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