Por Cris R. e Júlio C.
Enquanto o filme Bacurau, que venceu o prêmio do júri do Festival de Cannes, causou frisson e tem movimentado os cinemas, Estou me guardando para quando o carnaval chegar passou quase despercebido, apesar de ter feito parte da seleção oficial da Mostra Panorama do Festival de Berlim e recebido Menção Honrosa do Júri Oficial e da ABD/SP, além do prêmio da crítica no Festival É Tudo Verdade 2019. O primeiro, com suas alegorias e simplificações, é mais palatável comercialmente. O segundo obriga a pensar, é nu e cru, como arte de rua.
Um diretor de cinema passa por Toritama, no agreste de Pernambuco, percebe que o lugar está mudado, bem diferente da cidade que havia conhecido quando criança. As fábricas substituíram a biblioteca, a orquestra e até as festas dos santos padroeiros. O homem fica ainda mais intrigado ao saber que, nas vésperas do carnaval, as pessoas chegam a se desfazer dos poucos bens que possuem, para juntar dinheiro e passar o feriado na praia. Televisores, geladeiras, motocicletas e telefones celulares são vendidos a preço de banana e recomprados posteriormente, com muito suor do próprio rosto.
A pessoa em questão é Marcelo Gomes, pernambucano nascido no Recife, mas filho de família vinda do agreste. Como as primeiras lembranças dele remetem a “feiras livres, plantadores de milho e feijão, criadores de bode, quase nenhum barulho de carro, poucas pessoas nas ruas”, resolveu investigar as mudanças ocorridas em Toritama, filmou o documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar[1]. O título é uma referência à canção de Chico Buarque, que cai como uma luva: “Quem me vê sempre parado, distante, garante que não sei sambar. Tô me guardando pra quando o carnaval chegar. Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando. Não posso falar. Tô me guardando pra quando o carnaval chegar.”
O problema é que o carnaval passa, e as pessoas retornam ao trabalho: jornadas de 12 horas ou mais, salários por produção, sem férias, sem folgas, ambientes insalubres, nenhuma proteção social, nenhum direito trabalhista…
Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “Por quê?” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro — escreveu Albert Camus.
Mas, em Toritama, os trabalhadores parecem felizes, os cenários não desabam, o “Por quê?” não surge, não há lassidão nem assombro, pelo menos para entrevistados. É o paradoxo que o documentário investiga.
Trabalho
O vai e vém da agulha na máquina de costura. É preciso produzir mais para ganhar mais. “Quanto mais eu tô trabalhando, mais eu tô ganhando”, diz um. “Meu nome é trabalho, e o apelido é hora-extra”, afirma outro. “A gente trabalha das 7 da manhã às 10 da noite. Cansa, né?, mas a gente vai ganhar mais”, fala uma das mulheres entrevistadas. O ritmo acelerado e extenuante mostrado em tela já foi transposto em palavras pela filósofa francesa Simone Weil, que trabalhou em fábricas na década de 1930:
Sinto-me desfalecer de cansaço e de desânimo. Que horas são? Ainda duas horas antes da saída. Como vou poder aguentar. Chega o contramestre. Quantas você faz? 400 por hora? É preciso 800… Mais depressa… Bater ponto, vestir-se, sair da fábrica com o corpo todo esvaziado da energia vital, a alma oca de pensamentos, o coração mergulhado no desgosto, raiva muda, e acima de tudo isso, um sentimento de impotência e de submissão… Por que a última esperança para o dia seguinte é que se dignem deixar-me passar ainda um dia como este. Quanto aos dias que virão depois, estão muito longe. A imaginação se recusa a percorrer um número tão grande de minutos tristes.
Mas já não existem fábricas no formato taylorista-fordista, descrito por Weil, em Toritama. Os tempos são outros, mas o esvaziamento de sentido, a exploração do capital e a exaustão não mudam. Só ganham novas roupagens. Na cidade do Agreste Pernambucano, a produção ocorre dentro das casas das famílias ou no fundo dos quintais. São as chamadas facções. As pessoas continuam tendo a energia sugada, o desgaste é visível, suor pinga dos corpos, mas ninguém reclama, já não se enxergam como trabalhadores. Acreditam ser donos do próprio tempo, já que não batem cartão; mas chegam a trabalhar até 16 horas por dia, de segunda a segunda. Não há descanso nem no domingo, quando vendem a produção na feira da cidade. São os chamados empreendedores, que tiveram a subjetividade capturada e colonizada pelo capital.
O ponto forte do documentário é insinuar questionamentos: 1º) Se os moradores de Toritama são forçados a vender bens para passar uma semana na praia, quem se apropria da renda? Por que não conseguem juntar dinheiro? 2º) A classe operária está diminuindo ou o capital está descentralizando a produção? 3º) As indústrias estão externalizando o trabalho pesado e insalubre? Colocando adoecimentos e acidentes longe das plantas produtivas? Para evitar custos e ações judiciais? 4º) Como os trabalhadores ganhavam a vida antes de serem transformados em engrenagens da indústria têxtil? Eram cortadores de cana? Boiadeiros? Migrantes? As condições de vida e de trabalho eram ainda mais precárias? Por que as pessoas se submetem a tamanha exploração? 5º) Qual a vida útil de um trabalhador submetido a jornadas tão extensas e intensas? 6º) Como é possível um trabalhador superexplorado referendar e endossar sua própria desgraça?
Sequências repetitivas sugerem movimentos repetitivos e doenças ocupacionais. Uma busca rápida pela internet aponta alguns artigos, notícias e pesquisas sobre acidentes e adoecimentos relacionados ao trabalho em Toritama. Mas é uma vereda que o diretor não percorre. Marcelo Gomes afirmou que tinha material para dez filmes, que precisou escolher um. Pelo menos um dos nove filmes excluídos seria sobre saúde e segurança dos trabalhadores. Mas a opção de Marcelo Gomes é explorar a dimensão experiencial dos que trabalham. Ainda assim, na linha de frente, nas máquinas de costura, em geral, estão jovens, o que sugere que o trabalho é desgastante, e a vida produtiva é curta. Trabalhadoras e trabalhadores mais velhos atuam no acabamento final das peças, não raro nas calçadas da cidade, onde antes se jogava conversa fora espiando o tempo passar, tempo que já não existe mais.
O barulho é insuportável durante toda a jornada: do começo da manhã ao final da noite. Corpos suados e sujos, como se estivem numa fábrica de Manchester nas primeiras décadas do século XIX. Movimentos repetitivos e ritmados, como se os homens fossem engrenagens. Máquinas que não param. Sensação de que apenas um acidente de trabalho romperia a roda-viva. O diretor registra o ir e vir de uma mão que parece prestes a ser engolida pela máquina; é quando o ruído do ambiente é suprimido. Um breve silêncio, posteriormente, trocado por Bach. A sensação é de estranhamento, como se o incômodo derivasse apenas do ruído da produção, e não do trabalho repetitivo e sem sentido, que ao som de Bach se torna tolerável e até poético; a música dá leveza à cena cinza e triste, transformando a dor em arte. Mas o trabalho continua. O narrador é forçado a intervir, diz que “o barulho ensurdecedor causa ansiedade, mas a repetição dos movimentos causa angústia”. Na plateia, ansiedade e angústia se misturam. As cenas incomodam. Trazem inquietações das vidas que insistimos em não enxergar.
Salário por produção
Sabe-se, no mínimo desde Marx, que o pagamento por produção é preferido pelo capital, porque permite a intensificação do trabalho e diminui a necessidade de supervisão. Um cortador de cana remunerado por produção, no século XXI, produz o dobro do que produzia um trabalhador escravizado, no século XVIII. É sintomático que, no documentário, as pessoas concedam as entrevistas sem parar de trabalhar.
Partindo de relatórios dos inspetores de fábrica ingleses, Marx discute, em O Capital, o crescimento dos acidentes de trabalho aos sábados. A explicação era que aos sábados os operários limpavam as máquinas, sem pará-las, porque eram pagos por produção e não pela limpeza das máquinas.
Na enquete operária, elaborada em 1880, Marx retoma a questão e pergunta se os trabalhadores eram remunerados por tempo ou por tarefa. Foi a luta dos trabalhadores que reduziu as jornadas de trabalho e impôs formas de pagamento menos desfavoráveis. Mas, com a crise, o capital volta à carga tentando impor padrões de extração de mais-valia observados no século XIX. Estou me guardando… registra fotografias vivas que parecem saídas das primeiras revoluções industriais: rostos e corpos cansados, roupas e ambientes sujos. É um alerta. O sonho de consumo do capital é transformar o Brasil numa imensa Toritama.
A poética das preposições e do estranhamento
Nos anos 1990, Marcelo Gomes e Karim Aïnouz recolheram imagens e sons que resultaram no documentário Sertão acrílico azul piscina. Com as imagens e sons não utilizados, rodaram, posteriormente Viajo porque preciso, volto porque te amo. Se não fosse a canção do Chico, que parece ter sido feita para o documentário, Estou me guardando… talvez pudesse se chamar Agreste azul calça jeans. Toritama é uma cidade pintada de azul calça jeans: nas salas, nos quintais, nas calçadas, nas mesas, empilhado sobre as motocicletas.
A poesia às vezes tem a ver com as preposições, que ligam palavras dificilmente conciliáveis, como uma aquarela de sombras, ou uma orquestra de intestinos. É por onde se pode pensar a poética do documentário. Estou me guardando… costura ligações improváveis. Uma cidade inundada pelo azul das calças jeans. O ambiente fechado das facções contraposto ao céu azul do agreste. Cabras atravessando a BR-104, interrompendo o fluxo dos caminhões e das mercadorias, teimando em mostrar um mundo deixado para trás. A ave maria das seis horas, que tocava no rádio, substituída por Vida Loka, dos Racionais, que é ouvida nos locais de trabalho: “Fé em Deus que ele é justo! Ei, irmão, nunca se esqueça, na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta. Onde estiver, seja lá como for, tenha fé, porque até no lixão nasce flor”. O esperado seria que surgisse o “Por quê?”, como escreveu Camus, mas o questionamento não ocorre. O diretor intervém e conta sua história pessoal — como no excelente Elegia de um crime, de Cristiano Burlan —, mas Marcelo Gomes não problematiza as opiniões dos entrevistados, como quer o público. É a poética do estranhamento: que não permite a identificação fácil e obriga a pensar.
Se aparência e essência coincidissem, a arte seria desnecessária
“A arte existe porque a vida não basta”, como disse Ferreira Gullar. Mas a arte existe também porque aparência e essência não coincidem. O que Marx escreveu sobre a ciência pode ser extrapolado para a arte. Aqui voltamos à pergunta formulada anteriormente: como pode um trabalhador superexplorado referendar e endossar sua própria desgraça? Uma das respostas possíveis é razoavelmente simples: quem não naturalizasse a exploração da indústria de Toritama não duraria meia hora na linha de produção; some-se a isso a necessidade de sustentar a família, a falta de opções… Se as pessoas reconhecessem seus sofrimentos, não conseguiriam trabalhar.
Salários por produção somados à necessidade de naturalizar a exploração explicam as falas dos entrevistados, que só soam absurdas fora das facções de Toritama. A sacada do documentário consiste em mostrar a aparência (falas dos trabalhadores) emoldurada pela essência (processo de produção). Como as pessoas ganham por peça produzida e não param de trabalhar nem para dar entrevista: está montado o quadro com os dilemas do trabalho no século XXI, como os salários por produção, que, segundo Marx, são conhecidos pela classe trabalhadora desde o século XIV.
São Paulo e Toritama
Nos anos 1970, pernambucanos passaram a abastecer as costureiras de Santa Cruz do Capibaribe com rejeitos da indústria têxtil paulistana. Para não retornarem vazios, caminhoneiros levavam a carga para o agreste. Emendando retalhos, as costureiras produziam roupas e cobertas que eram vendidas em feiras livres. Com o barateamento das matérias-primas, as confecções renasceram, cresceram e chegaram a Toritama. Uma trabalhadora, entrevistada no documentário, comenta que antes era preciso migrar para São Paulo em busca de emprego, o que não é mais necessário, porque há trabalho em Toritama.
Partindo de microdados do Censo de 2000, estudo[2] publicado por pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco comparou trabalhadores do setor de confecção e vestuário de São Paulo e Toritama. Os pesquisadores notaram uma semelhança e resolveram explorá-la. O número de migrantes cearenses empregados no setor de confecção e vestuário paulistano era 6025. O número de trabalhadores empregados no setor de confecção e vestuário de Toritama era 6003.
No estudo, constataram que jornadas superiores a quarenta horas semanais prevaleciam nas duas cidades, mas o trabalho era menos informal e melhor remunerado na capital paulista. 2,4 salários mínimos em Toritama. 3,2 salários mínimos em São Paulo. A conclusão foi que, se considerados os custos de vida (alimentação, habitação, serviços públicos e pessoais) e os custos não monetários (tempo de deslocamento, violência, poluição sonora e atmosférica) não é possível inferir que os trabalhadores cearenses, que trabalhavam em São Paulo, estivessem em vantagem sobre os trabalhadores de Toritama.
Aos custos de vida e não monetários seria preciso agregar a matemática difícil da migração; antes trabalhar 12 diárias no fundo do quintal de casa do que em lugares distantes e inóspitos. É também por isso que o “Por quê?” não surgiu em Toritama, ainda.
Toritama e Itabira
Itabira era uma cidadezinha qualquer no interior de Minas Gerais. Mas, no começo do século XX, descobriram minério de ferro no meio do caminho. Multinacionais, homens e mulheres foram para a cidade. A população aumentou vertiginosamente. Serras foram devassadas. Picos foram britados. Carlos Drummond de Andrade escreveu que Itabira era uma fotografia na parede, que doía, e evitou retornar à cidade natal. Não quis presenciar a destruição. Conseguiu. Guardou na memória a Itabira da infância; no final da vida escreveu e imortalizou a cidade que conheceu no começo do século.
Toritama era uma fazenda na beira do rio Capibaribe, possui grandes pedras que lembram torres, que, atualmente, escondem-se atrás dos outdoors. A cidade chegou a se chamar Torres. Não se tem notícia de que existam quantidades expressivas de minério de ferro nas pedras de Toritama, como havia em Itabira. O solo pobre e os baixos índices pluviométricos não permitem grandes investimentos agrícolas. Por essa razão, a cidade se concentrou na produção de calçados e, posteriormente, de roupas, especialmente calças jeans. A população cresceu atraindo migrantes, o desemprego é pequeno. Marcelo Gomes conheceu o lugar pouco tempo depois de o distrito ter sido transformado em cidade. Eram tempos de calmaria e pobreza. O que aconteceu com a cidadezinha que o menino conheceu pelas histórias dos antigos e nas viagens com o pai? A resposta é Estou me guardando para quando o carnaval chegar.
Se Drummond tivesse voltado para Itabira, talvez não escrevesse seus poemas memorialísticos, como as séries Boitempo. Marcelo Gomes só filmou Estou me guardando… porque voltou a Toritama; a cidade pacata provavelmente já não existe nem na memória do cineasta: plantadores de milho e criadores de bode se transformaram em operários da indústria têxtil.
Bacurau e Toritama
Bacurau[3] é um pássaro noturno que caça insetos. Toritama significa “terra alegre”, segundo uma das versões. Bacurau é uma cidade inventada no interior de Pernambuco. Toritama é uma cidade real no interior de Pernambuco. Bacurau foi tirada do mapa por assassinos estrangeiros. Toritama foi colocada no mapa da economia globalizada pelas costureiras e pelos rejeitos da indústria têxtil. Bacurau, que resistiu aos assassinos estrangeiros, teria dificuldades para resistir às máquinas de costura que invadiram Toritama.
A ficção Bacurau, com suas alegorias e simplificações, é um filme palatável comercialmente, com sua visão de mundo maniqueísta[4]. O documentário Estou me guardando… não traz este apelo comercial, o que ajuda explicar por que um causou frisson, enquanto o outro passou quase batido.
Bacurau provoca catarse e identificação: após as sessões, houve quem respirou fundo, encheu o peito e gritou “Lula livre”. Foi quando outros redobraram a desconfiança. Estou me guardando… provoca estranhamento e reflexão: o “Por quê?”, que não surge nas falas dos entrevistados, costuma surgir para quem assiste. Estou me guardando… obriga a pensar, é nu e cru, como arte de rua. Os filmes dialogam por contraste. A luta de classes, que Bacurau camufla, Estou me guardando… escancara. No primeiro, o idílio[5] sertanejo é rompido por um punhado de assassinos estrangeiros, mas a ordem é restabelecida e o bem prevalece, hollywoodianamente. No segundo, o idílio[6] sertanejo foi rompido pelo processo de produção capitalista, e não há saída que não implique em revolucionar a ordem estabelecida; ainda que ela não aconteça na tela, ecoa na cabeça de quem assiste ao filme.
Solidão
Marcelo Gomes afirmou que Estou me guardando… é um filme sobre trabalho, tempo e vida. Talvez seja também um filme sobre solidão: a solidão dos dias úteis e dos carnavais.
Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, também é um filme sobre trabalho, tempo, vida e solidão. Um geólogo atravessa o Nordeste a trabalho e por solidão, precisa construir um canal e esquecer uma mulher. O homem percorre estradas e conta sua história, como se conversasse com a amada. Em uma das cenas, no final da madrugada, o geólogo deixa o motel em que dormiu com uma garota de programa. Segue viagem sozinho, pensando na mulher que queria esquecer. Enquanto o dia nasce, toca Dois[7], interpretada por Lairton e seus teclados: “Quando você disse nunca mais, não ligue mais, melhor assim. Não era bem o que eu queria ouvir. E me disse decidida, saia da minha vida.”
São filmes sobre trabalho, tempo, vida e solidão. Solidão das estradas e dos motéis de beira de estrada. Solidão dos caminhoneiros e das famílias dos caminhoneiros. Solidão das garotas de programa e dos clientes das garotas de programa. Solidão dos bordéis e dos postos de conveniência. Solidão dos crepúsculos e das madrugadas. Solidão das tecelagens e das costureiras. Solidão das feiras populares e dos postos de gasolina. Solidão das mercadorias e das taxas de lucro. Solidão do trabalho assalariado e dos pagamentos por produção. Solidão da mais-valia relativa e da mais-valia absoluta. Solidão do capital e das personificações do capital. Solidão dos orelhões e dos telefones celulares. Solidão das crianças e dos bichos de estimação. Solidão dos operários e dos diretores de cinema. Solidão dos celibatários e dos casados. Solidão dos bêbados e da música brega.
Em Estou me guardando…, com a chegada do carnaval, o diretor opta por não acompanhar a viagem dos trabalhadores. Poderia atrapalhar o lazer escasso das famílias. Marcelo Gomes decide filmar Toritama vazia, e recordar a cidade calma que havia conhecido na infância, antes da chegada das confecções; ao mesmo tempo, pede que os trabalhadores filmem a estadia no litoral, imagens que são usadas na conclusão do documentário. É quando ocorre uma passagem emblemática. Um casal bebe cerveja numa mesa, provavelmente dentro de um imóvel alugado. Cantam Desculpe, mas eu vou chorar, que ficou conhecida com a dupla Leandro e Leonardo: “As luzes da cidade acesa, clareando a foto sobre a mesa e eu comigo aqui trancado, nesse apartamento. Olhando o brilho dos faróis, eu me pego a pensar em nós, voando na velocidade do meu pensamento […] E quando vem a lucidez, estou sozinho outra vez, então volto a conversar com minha tristeza. […] Faz parte dessa solidão”. É como se a vida estivesse em outro lugar.
Quando finalmente chega o carnaval, as pessoas pedem desculpas e choram, talvez porque lhes venha a lucidez, o que não ocorre quando estão ocupadas costurando calças. O documentário ressignifica Desculpe, mas eu vou chorar: “quando vem a lucidez, estou sozinho outra vez, então volto a conversar com minha tristeza”. Não é pouco. Quando o carnaval chegar só toca depois do final, junto com os créditos. O carnaval, que não chega na canção do Chico, chega mas não contempla os moradores de Toritama: é o outro lado da mesma moeda, pequena extensão da labuta incessante nas facções, pausa mínima para a manutenção das máquinas, das engrenagens e dos homens — faz parte da mesma solidão.
Notas
[1] Estou me guardando para quando o carnaval chegar foi exibido na sessão de cinema do Sindsef-SP, Cinesef. Este texto se valeu de contribuições apresentadas no bate-papo realizado depois da exibição do documentário.
[2] DUARTE, Renato Santos; FUSCO, Wilson. Migração e emprego precário em dois contextos distintos: São Paulo e Toritama. Cad. CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 335-345, ago. 2008. Acessos em 12 nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792008000200010.zz
[3] Para uma crítica a Bacurau e uma comparação com Estou me guardando para quando o carnaval chegar, ver: Bacurau, alegoria de um sonho que morreu.
[4] Para uma crítica a Bacurau e um comentário interessante sobre a recepção do filme fora do circuito cult, ver: Filme “Bacurau” perde no cabo de guerra forma versus conteúdo.
[5] A sugestão de um idílio sertanejo é o ponto fraco e o risco assumido por Bacurau. A comunidade peleja bravamente para conservar-se, a luta de vida ou morte não altera a realidade, como se a vida numa cidadezinha do interior não estivesse carregada de limites e contradições.
[6] Idílio que só existiu na memória do menino Marcelo Gomes, que associava Toritama e o agreste pernambucano ao pai falecido.
[7] A canção Dois é de Michael Sullivan e Paulo Ricardo.
[8] A canção Desculpe, mas eu vou chorar é de César Augusto.
Meus parabéns aos autores deste artigo e ao PassaPalavra por dar importância a esse debate.
Muito bom o artigo, escrita quase poética.
A certa altura comenta-se “Se os moradores de Toritama são forçados a vender bens para passar uma semana na praia, quem se apropria da renda? Por que não conseguem juntar dinheiro?”
Acho que o documentário indica sutilmente o lado burguês daquelas relações de produção, quando mostra a empresa que trabalha o jeans no laser e, provavelmente, exporta as peças mais elaboradas/valorizadas. Afinal, se a cidade é responsável por 20% da produção nacional de jeans, certamente não é na feirinha municipal que se escoa essa produção toda. Certamente há facções que produzem sob encomenda de grandes empresas, algo que o documentário não aborda devido à decisão (acertada) de focar nas especificidades subjetivas e objetivas das relações de produção por parte dos trabalhadores. Aliás, o fato de serem produções sob encomenda fica claro quando uma das entrevistadas comenta os valores recebidos: 10 centavos por botão, 20 centavos por bolso etc.
Outra coisa muito interessante é a divisão socio-etária “municipal” do trabalho, com os mais velhos fazendo certas funções, os mais jovens outras etc. E ainda outra questão que me deixou intrigado foi a alegada fraqueza dos ramos produtivos de entorno: lanchonetes, restaurantes etc que lucrariam em cima da produção desses trabalhadores (assim como, por exemplo, gente ficava rica vendendo coisas básicas na Serra Pelada). Me parece que embora a magnitude da produção de jeans tenha crescido a estrutura dos gastos paralelos à produção, relativos à subsistência dos trabalhadores, se manteve firme e forte em termos familiares. Nesse sentido faltou no documentário algum trecho que esclarecesse isso: quem cozinhou, quando os trabalhadores chegam em casa exaustos e capotam na cama após comer? Isso recoloca a pergunta: os restaurantes e o supermercado dessa cidade são inflacionados? Outra coisa: parece haver certo “status” para quem mora lá e não trabalha com o jeans…
Garimpo não se compara com cidade. É um lugar completamente isolado, sem qualquer atividade econômica no entorno além daquelas ligadas ao extrativismo. Quem ficou rico vendendo itens básicos de consumo pessoal para garimpeiros sabia disso, e aproveitou-se de uma situação de monopólio. Se duvidam, assistam uma entrevista com um dos grandes pilotos de garimpo, Rogério “Maconha” (https://www.youtube.com/watch?v=5jW-8Zg8VtE), ou uma reportagem antiga do Globo Repórter sobre os pilotos de garimpo (https://www.youtube.com/watch?v=oV9-SEAO02Q).
A ausência de restaurantes e lanchonetes em Toritama é um sinal de que a renda não fica na cidade. Outro sinal é o fato dos moradores venderem bens de consumo duráveis para financiar a ida à praia.
Enfim. Estou me guardando… é um filme que fica passando na cabeça, depois da sessão.