Por Raquel Azevedo
Por mais que haja grande semelhança entre certas imagens atuais e as da década de 1930, há detalhes que as distinguem e são eles que buscamos aqui.
O período que se seguiu à Primeira Guerra se caracterizou por uma combinação incompatível entre um programa de pacificação estruturado no retorno ao padrão-ouro e uma mobilização crescente para uma nova guerra. Havia no entreguerras uma relação recíproca entre a recuperação da estabilidade monetária e o controle dos gastos militares. A “regra dos dez anos” adotada pelo governo britânico em 1919 é um exemplo do objetivo compartilhado entre a austeridade da política monetária e o controle de armas: para que houvesse uma consolidação fiscal e um retorno ao padrão-ouro, conta Adam Tooze no livro O preço da destruição (2013), o orçamento militar deveria ser elaborado a partir do pressuposto de que nenhuma guerra seria esperada nos próximos dez anos. O último grande esforço para institucionalizar essa dupla tarefa de pacificação foi a Conferência Naval de Londres de 1930, em que EUA, Grã-Bretanha, Japão e França reafirmaram seu compromisso de limitação dos armamentos e da base monetária. A ameaça à pacificação parecia estar, porém, na própria deflação global coordenada adotada pelas partes.
Em 1931, Grã-Bretanha e Japão abandonaram o padrão-ouro. Em 1933, uma onda de falências bancárias nos EUA levou Franklin D. Roosevelt a priorizar o restabelecimento da economia doméstica através de uma significativa desvalorização do dólar. Em 1935, o comércio mundial ainda não havia retornado ao nível anterior à crise de 1929, mas a recuperação era notável em países que haviam abandonado as regras de cooperação internacional fixadas pelo padrão-ouro. Tooze explica que isso permitiu que esses países adotassem novos arranjos de política econômica expansionista. Já o bloco de nações que permaneceu fiel ao padrão-ouro (Bélgica, Holanda, Polônia, Checoslováquia, Suíça e França) seguiu sofrendo com baixa produção industrial, desemprego elevado, deterioração do balanço de pagamentos e déficit nas contas públicas.
Na Alemanha, os gastos militares chegaram a 11% da produção nacional em 1936, um número sem precedentes em países capitalistas em período de paz. Na véspera da Primeira Guerra, esses gastos não superavam 4% do PIB nas maiores potências europeias. Enquanto a mobilização militar sufocava os demais setores da economia nas nações do Eixo e na URSS, a Frente Popular francesa procurou combinar programas de criação de empregos e de seguridade social com os gastos de defesa. Mas o governo de Léon Blum não conseguiria acomodar por muito tempo as despesas crescentes com a rigidez do padrão-ouro. Em 1936, a França iniciou uma desvalorização coordenada do câmbio ao lado de EUA e Grã-Bretanha. A estrutura do Acordo Tripartite, como ficou conhecido, em que os secretários do Tesouro dos países envolvidos se comprometeram informalmente a trabalhar de forma conjunta para a manutenção da estabilidade monetária, anteciparia, em grande medida, a diplomacia financeira do pós-guerra. Tooze lembra que mesmo o presidente do Banco Central alemão, diante da escassez de reservas, demonstrou interesse no acordo. Em agosto de 1936, Hjalmar Schacht foi a Paris negociar uma desvalorização do marco em coordenação com França, EUA e Grã-Bretanha, mas logo perdeu espaço dentro do governo nazista para as demandas militares de Hermann Göring.
Um dos aspectos mais interessantes a respeito das negociações (iniciadas já em 1941) entre John Maynard Keynes e Harry Dexter White, secretários do Tesouro da Grã-Bretanha e dos EUA, respectivamente, é o entendimento de que a reforma do sistema financeiro internacional exigia um retorno a uma regra de taxas de câmbio fixas, mas que permitisse certa margem de atuação das economias nacionais. Esse era o grande aprendizado que as severas restrições associadas ao padrão-ouro haviam deixado. Mais do que isso: o pós-guerra marca o início de um período em que a economia teve se adaptar a um estado prolongado (ou permanente) de mobilização.
Os atuais impasses da cooperação econômica internacional são no máximo um jogo dos sete erros com o período do entreguerras – o que importa são as diferenças. E é curioso traçá-las a partir dos efeitos da emergência climática, que é agravada pelas medidas protecionistas e exige uma regulação supranacional. Em um artigo publicado em janeiro na revista Foreign Policy, Tooze lembra que embora a China tenha se notabilizado pelos esforços para reduzir a emissão de dióxido de carbono desde que ultrapassou os EUA como maior emissor em 2007, a competição geopolítica com os americanos pode levar o governo chinês a deixar de priorizar uma economia de baixo carbono em detrimento da segurança energética. Contra a corrente nacionalista está a tentativa de associar a política monetária dos bancos centrais à crise climática (no entreguerras o controle da base monetária estava associado ao controle de armas). Assim que assumiu a presidência do Banco Central Europeu em outubro do ano passado, Christine Lagarde admitiu que, além da estabilidade de preços, a instituição poderá começar a considerar os efeitos das mudanças climáticas em sua estratégia de política monetária. Ainda não estão claros quais seriam os mecanismos de transmissão da política dos bancos centrais para um outro modo de produção, mas aí está algo para se acompanhar.