Por André Queiroz

Para Mariano Mestman e Roberto Baschetti

1.
Valentina Llorens se utiliza do que parece dispor às mãos: uma palheta de cores para uso diário. O caderno de notas no que deve esboçar um argumento, quem sabe se uma penca de perguntas abandonadas tão logo, espécie de ensejo de roteiro com uns nomes de cidades, algumas estações abandonadas onde antes o ferrocarril cortava a pampa úmida nos longes das serras cordobesas, avançando por Santiago del Estero até San Miguel de Tucumán, os traços pontilhados de uma árvore genealógica. Talvez sirva para tracejar a ordem do dia. Talvez que haja ali um indicativo para um primeiro set: Começar pela casa da avó – lugar dos remansos de outrora, zona fluida de memórias estilhaçadas que repicam acesas quando Nelly conta as leyendas santiagueras. Na certa que servem aos modos de galletitas banhadas numa xícara de chá.

Mas não é somente este o sortilégio de artifícios que Valentina traz à mão para costurar seu enredo, o seu quê fazer de disparos até que se lhe faça presente a tessitura fina do enredo. Valentina usa o dispositivo das fotografias. Um maço de retratos antigos e outros novos no que caiba o de Frida a sacolejar-se na cama por entre o cochilo de Nelly e seu lento despertar. Além dos baralho dos retratos, Valentina nos oferta desenhos da infância, desenhos de agora. Valentina conta que descobriu o manejo de pincéis num ensaio de textura e de formas. Talvez que sirvam para imprimir no branco da tela a partitura dos gestos. É que a mão de Valentina bordeja paisagens, decupa personagens, tramita olores e contrastes sob o estourado da fotografia. Por vezes, a câmera treme, repica, desenquadra e granula a imagem. Noutras vezes, a câmera capta o vazio como se tivesse sido esquecida enquanto as coisas do mundo se dão numa indiferença a ela. Faz parecer que o quadro será sempre pequeno for o caso o afronte do real, tangido pelo primado da ausência que não se deixa representar. Senão apenas os restos – que escorrem. Senão pelo que sobra – e não se traduz. Senão pelo que falta – e insiste em não regressar[1]. Valentina abre caixas, desata nós cegos surdos mudos, como quem revolve a terra estriada pelas intempéries que desabilitaram safras e destinações; descobre senhas de ingresso, cartas que nunca, palavras pela metade, Valentina as remonta desde as bordas soltas e em fiapos, as reedita como quem trama em patchwork fragmentos de relatos, histórias de vidas cindidas e apagadas em sucata, por vilania e arbítrio. Valentina as faz carrear como se perfilasse temporalidades distintas – Frida arrancando passos desde o still de uma Valentina infante. Será se re-ligam se não se ousar a travessia do deserto onde prima a aridez do solo que nada promete, lá onde as vozes de outrora não encontram as paredes necessárias ao seu rebatimento?!

Voltemos à casa dinamitada, signo sintoma dos interditos e dos esquecimentos. Casa-família-caso Llorens, pero no solo. Onde começa e se encerra o movimento das gentes àquela casa, aquela família recortada entre dias que nunca terminaram e blocos de tempo que se fazem estanques?[2] Frida parece puxar para frente (al porvenir) o carro de boi na remontagem das máquinas de há tanto encarquilhadas em bolor. Máquinas de retenção, de clausura, de repetição, de retorno. Como se fora um projetor que arremetesse imagens que não cansam de voltar. Frida lhe seria como uma tamanca que se coloca de entre as roldanas até que sature o círculo de giz deste tempo suspenso e represado. Frida é quem o faz correr num para fora e para frente sem que isto lhes soe aos modos da indiferença e desrespeito para com os que cayeron en la lucha.

Nelly, la abuela, cumpre seu dever de memória, cumpre sua função de testemunho, encarna seu papel de narradora. É ela quem salga a provisão para longas jornadas noite adentro. Parece não ter pressa. Traz consigo a justa medida da horas, as lépidas e as exaustas. Nelly tem o acúmulo do tempo inscrito no seu rosto marcado de vincos e suturas. Sabe de cor e salteado as palavras para todas as idades e condições. É ela quem ocupa as noites em que se conta, se reconta, se desmonta e reinventa.

Valentina não para por aí. De entre os apetrechos que gira a moviola dos fatos sob o impacto afetivo da memória, Valentina se utiliza de recortes de jornais que nos certifiquem que el pasado (que) no pasa deixou marcas indeléveis. Marcas que insistem como se fossem uma prega à existência: o dia interminado de um sequestro. Nelly conta a Frida que eram homens maus, muito maus, verdadeiramente maus a entrar na casa, a tomar de assalto as gentes e as coisas, a levarem consigo Sebastián e Diana, filhos de Nelly, irmãos de Fátima, tios maternos de Valentina, e tios-avós de Frida – eis um elo indelével. Mas não só a isto se prestaram aquellos hombres malos, muy malos, eles se puseram à tarefa de dinamitar o imóvel como se despregassem vestígios, digitais, resíduos.

Quanto tempo dura àquele dia no corpo do relato de Nelly Llorens? Não será imprescritível e irresgatável a cena que se repete e se repete e se repete no tampo das palavras de que pode Nelly e de que sempre faltaram à Fátima? Necessária e imprescindível a função do testemunho. Fazer falar, instar a que se conte o não-dito, a que se desate os nós que encerram carretéis. Imprescindível que se destrinche as tramas costuradas em laços de marinheiro para que a embarcação se despregue do porto e se arremesse ao clamor das águas, outrora turvas. A tarefa de Valentina é a de desbravar estes caminhos inconclusos, e para tal Valentina se faz parteira, urde dispositivos de lubrificação para que o testemunho se lhe descarrilhe. Terá que tramitar encontros, encurtar o sempre das distâncias, lidar com ausências e frustrações, e remontar agenda e compromissos, empurrar num para frente os segredos de lá atrás – porque fora desde atrás que Valentina e Fátima cumpliciaram a sordidez dos algozes; os homens maus de que contara Nelly a Frida. É que Fátima estivera ao sabor e à sorte de suas ações sob encomenda, sicários a sueldo. Valentina estava com ela. Estava dentro. Estava nela. Desde ali, reservado de eco e bacilo, Valentina se percebe involucrada. Porque estivera no sequestro de Fátima. Porque estivera no cárcere de Fátima. Porque estivera sob os alvos dos chutaços e bordoadas de que sofrera Fátima. Porque estivera sob a rebordagem das picanas. Desde o ventre revolvido de Fátima, Valentina sacolejava à condição a mais limítrofe de refém. Com certeza que sentia, sem nada saber. Talvez por isto Valentina queira saber, precise saber – para construir identidade onde parece primar ruína e ausência.

Este o seu mote na construção de si que atravessa LA CASA DE ARGÜELLO. E para tal, há que destravar o tempo morto, há que rebobinar o que parece represado. Valentina não para com seu disposito sensível, a sua caixa de cuidados. Utiliza-se de certas imagens de arquivo usadas num para frente e num para trás. É que Valentina está à caça de sentido como que para conjurar o indevassado silêncio. Silêncio da mãe que tardou em contar o que lhe passara. Como se de sua boca não lhe restasse sequer o riso largo que coubera no rolo de filme antigo. E Valentina manipula a imagem como se buscasse recuar o tempo, retornar o tempo, re-entorná-lo.

Como se por seu retardo em recuo, as formas se lhe fizessem inteiras: a casa assassinada remontasse ao perímetro de antes e reocupasse o mapa da região, geografia e afeto, a casa reposta à carta cartográfica, e na casa recomposta, a família Llorens recolocada aos lugares da mesa, às disponibilidades dos dias, e de tudo isto, quem o saberia dizer, se por sua força expressiva, fosse re-escrita àquela noite de assalto ao seu anverso, qual seja este senão, o do ensaio da festa no que se anunciasse, em presença de todos, o estado interessante de Fátima, embarazada de Valentina.

Talvez seja desde aí que Valentina e Frida se mesclem em passos firmes.

2.
Importante destacar alguns pontos transversais ao documentário de Valentina Llorens, LA CASA DE ARGÜELLO. Comecemos pelo que Valentina sugere, em uma entrevista concedida a um programa de rádio, certo tema de que pouco se fala, o das desaparições forçadas, o da violência de Estado que estivera se conformando ainda em democracia. Era o ano de 1975 quando tudo ocorrerá com a família de Valentina. São palavras dela:

(…)Em minha família, lhe sucede tudo em 1975. Em 1976, em realidade, minha avó será perseguida, estará em situação de semi-clandestinidade. (…) Mas em 1975, tenho morte em Tucumán, casa dinamitada, nascimento em cativeiro, presos políticos, exílio. Tudo neste ano. E isto é um tema de que não se fala muito na Argentina. Me parece que é um ano tabu” (…)[3].

Importante que se destaque este depoimento de Valentina depois de passados quase cinquenta anos dos fatos de que narra a documentarista. De há muito, em América Latina, quando se evoca as lutas nas que se mobilizaram amplos setores sociais, e em particular, as organizações político militares, se lhes restringe o raio de sua intervenção ao tempo histórico das ditaduras de segurança nacional assim como, no que tange aos seus planteamentos, se lhes voltasse, em combates e rechaços, os esforços pela retomada do regime político à sua normalidade democrática. Espécie de borramento de intentos no que tange às linhas de ação tática e ao programa estratégico daquelas organizações de luta na que estiveram os militantes dos 60 e 70’. Por outro lado, arriscamos apontar a tergiversa naturalização da violência regular e estrutural de Estado no marco da democracia liberal burguesa.

É desde aí que destacamos a importância do relato de Valentina ao circunscrever no calendário o ano tabu de 1975 no qual tudo se lhes deu. Noutros termos, os arbítrios do terrorismo de Estado não estavam subscritos tão somente ao depois do fatídico dia 24 de março de 1976, senão que desde antes, em pleno governo de Isabelita Perón. E destacaremos aqui, de forma alusiva, alguns destes eventos. Claro está que nada disto há de surpreender a um leitor atento da história política recente em Argentina – sobretudo aos que não passaram em brancas nuvens as ações da banda para-militar Triple A (Alianza Anticomunista Argentina) forjada desde as oficinas do Ministério do Bem-Estar Social, sob a baqueta de José López-Rega. Sabe-se que por meio dela, planificava-se os atos de perseguição e aniquilamento de adversários políticos, lideranças sindicais, militantes peronistas de base, assim como da esquerda marxista. Nada que surpreenda àqueles que atentaram aos argumentos de Rodolfo Walsh em sua Carta abierta de un escritor a la Junta Militar. Walsh apontará a forma orgânica e instestina dos vínculos entre as três forças armadas (os verdugos de depois, los hombres malos de 76 em diante) para com este dispositivo de repressão perpetrado por uma obscura ação do governo de Isabelita (los hombres malos de entonces…)[4]. Dispositivo que, entre outros, implicará na conformação de uma banda clandestina do Exército atuando sobretudo no campo de inteligência e repressão. Irá ser posta em prática os métodos da chamada guerra contrarevolucionária – sequestros, assassinatos, a prática sistemática de tortura durante os interrogatórios – sem tempo nem hora de começar e acabar como na alusão de Rodolfo Walsh. Importante ainda destacar que se este acionar repressivo buscou se justificar pelo combate às organizações guerrilheiras, o que se pode verificar foi a extensão das suas ações operativas a toda população civil num claro objetivo de tomada do poder e disciplinamento de amplos setores sociais de corte popular.

Não estaria Walsh tecendo uma quase continuidade entre o antes e o depois do golpe no que tange a um projeto político de poder a serviço da acumulação capitalista àquela etapa histórica – na que, entre outros, se operava a desindustrialização em amplos setores de produção, assim como o desmantelamento da espinha dorsal do sindicalismo operário combatente que avançava desde o ano de 69 para uma maior aproximação com setores mais radicalizados do movimento estudantil, destacando-se ainda a participação de organizações político-militares que estavam metidas na resistência armada à violência estrutural do Estado capitalista burguês?![5] Afinal devemos destacar que desta frente que se ia formando, avançava-se também no que diz respeito às metodologias e táticas da luta operária-estudantil tais como a ocupação de bairros declarando-os zonas liberadas sob o controle popular, os enfrentamentos de ação direta, as largas marchas avançando em cada bairro, na que se assomava parte da vizinhança simpatizante, a exigência de liberação de presos políticos e a ocupação de fábricas com a retenção de seus gerentes e diretores[6].

Isto posto, retomemos com uma questão: afinal, para que serve um golpe de Estado? Para o quê o acionar de tropas armadas desde dentro das casernas senão para o desdobrar de artimanhas de conformação de um certo estado da luta de classes?! Reordenar a balança de pagamentos, impor um regime de lucro às empresas sacado às custas de enormes sacrifícios impostos aos trabalhadores – reprimindo-lhes no seu direito de organização, perseguindo lideranças populares, proibindo greves e assembleias, reordenando o corpus legislativo ainda que no marco da constitucionalidade liberal. Ousamos dizer que na genealogia das forças que atuaram na intenção do golpe não se deve ter dúvidas em evocar as grandes corporações empresariais locais e internacionais que expandiram seus negócios durante os anos do terrorismo de Estado; corporações e grupos empresariais estes que, antes e depois do mesmo, não deixaram de estar envolvidos nas tramas de bastidor a ver se lhes fazia interessar os planos econômicos a serem gestados por seus diversos representantes nas esferas institucionais de poder, sejam eles civis ou militares[7]. Será não se faz em conformidade a tais interesses e seus atores protagônicos, o deflagrar de medidas e dispositivos estratégicos que lhes garanta, a despeito de qual for a condição e modo, a sua balança de lucratividade sob preceitos monopólicos?! E eis que então, como que em moto contínuo veremos a atuação do governo de turno ao cumprimento deste plano de metas de lucratividade.

Recuemos, outra vez, à data estampada na fala de Valentina Llorens: o ano de 1975. Ano em que tudo se lhe deu, assalto, sequestros, prisões, torturas, nascimento em cativeiro, exílios, a família fraturada. Em que marco de violência e terror de Estado isto se lhe deu? Poderíamos situá-los no raio de ação da intensificação repressora costurada nos primeiros meses daquele ano? Intensificação como a que fora plasmada através do decreto de nº 261/75 do Poder Executivo datado de 05 de fevereiro de 1975, e assinado pela presidenta Isabel Perón e por sua turma de ministros: Antonio Benitez (Justiça), Alberto Rocamora (Defesa), José López-Rega (Bem-Estar Social), Oscar Ivanissevich (Cultura e Educação), Alfredo Gomez Morales (Economia), Alberto J. Vignes (Relações Exteriores) e Ricardo Otero (Trabalho). Ainda que não seja desde o tom de denúncia que se costure o fio narrativo do documentário LA CASA DE ARGÜELLO de Valentina Llorens, nos perguntamos se a violência testemunhada e sofrida por Nelly – sua avó, por Sebastián, Diana – seus tios, e por Fátima (e desde dentro desta, por Valentina), assim como por tantos outros militantes, trabalhadores sindicalizados ou não, estudantes e população em geral àquele ano de 75, não atendia pelo que se reverberava a partir de ações de governo como esta? No caso do referido decreto, prescrevia-se salvo conduto ao Comando Geral do Exército no procedimento de execução das ações militares que fossem necessárias para efeito de neutralização e/ou aniquilamento do acionar de elementos subversivos que atuam na Província de TUCUMÁN[8]. Sabe-se que a restrição a tal província era temporário e serviria como balão de ensaio de uma repressão que tão logo vai se estender à totalidade do território nacional da Argentina. Confira-se a ressonância desta política ostensiva aos modos de uma guerra de baixa intensidade através dos decretos subsequentes ainda no ano de 1975. São eles os de número 2770/75, 2771/75 e 2772/75, todos estes datados de 06 de outubro de 1975.

No decreto presidencial nº 2770/75, constitui-se o Conselho de Segurança Interior, presidido pelo Presidente da República e pelos Senhores Comandantes Gerais das Forças Armadas. Ainda que se possa reivindicar a condição de atos de exceção o de que versa o decreto como atribuições a este Consejo de Seguridad Interior, não deve passar despercebido que a fundamentação na que se sustenta a legitimidade regulatória desta medida se dá em perfeita conformidade com as atribuições asseguradas às Forças Armadas da Nação segundo o Artigo 13 da Lei 20.524. Do estado de coisas utilizado como justificação para este decreto presidencial se afirma que se trata de garantir a paz e a ordem constitucionais abaladas por elementos subversivos que con sus acciones vienen alterando la paz y la tranquilidad del país. Conforme este decreto, no artigo nº 4, ordena-se que a Secretaria de Imprensa e Difusão da Presidencia da Nação, assim como a Secretaria de Informações do Estado ficarão submetidas ao Conselho de Defesa. Mas não só estes órgãos estarão tramados em rede com o acionar repressivo do terrorismo de Estado, no artigo seguinte, submete-se a Polícia Federal e o Serviço Penitenciário Nacional a este mesmo Conselho. Tal Conselho de Defesa, no que concerne ao exercício das atribuições que lhe são designadas, será assistido pelo Estado Mayor Conyunto.

Os decretos de nº 2771/75 e 2772/75 são aditivos complementares ao anterior. Todavia, é importante descrever o conteúdo de cada um deles. No caso do decreto nº 2771/75, está firmada a necessidade de que se some a este dispositivo repressor, a participação das forças policiais e penitenciárias das províncias. Para tal, ordena-se que se estabeleçam convênios, sob a ingerência do Ministério do Interior e no âmbito de comando do Conselho de Defesa, com os governos dos Estados (Províncias) no sentido de tornar disponíveis o seu aparato policial, assim como a sua logística penitenciária. Já no caso do decreto nº 2772/75, delibera-se que o efeito a ser atingido pelo entramado repressor é o aniquilamento dos elementos subversivos em todo o território nacional.

Assinaram os três decretos, o Presidente Provisório do Senado da Nação em exercício do Poder Executivo e em acordo geral da ‘patota’ ministerial. Estes os nomes dispostos nas páginas dos decretos: Italo A. Luder, Carlos F. Ruckauf, Ângel F. Robledo, Antonio Cafiero, Tomás S.E.Vottero, Carlos A. Emery e Manuel Arauz Castex.

Uma vez apresentado os meios e motes dispostos pela razão de Estado expressos sob o arrazoado institucional, cabe-nos avançar no que tange ao planejamento de ações ofensivas pelo aparato repressor de que apresenta a Diretiva do Conselho de Defesa No 1/75. Adiantamos, apenas a título de esclarecimento, que trata-se de documento que determina, na tripla hélice Combate/Comunicação/Inteligência, os modos e meios através dos quais se buscará lograr o intento repressor. Desta vez, editemos antes do disposto pelo documento, os nomes dos que lhe garantirão a chancela da oficialidade institucional: Br.Gral. Hector Fautario, Br. Tomas Salvador, Fausto Salvador, Almte Massera e Tte Crl. Videla. Nomes e distintivos que atendem à conformidade assegurada pelo mencionado Artigo 13 da Lei 20.524, o que versa sobre as atribuições constitucionais das Forças Armadas no âmbito do Estado de Direito Constitucional sob o regime político de uma democracia liberal.

Mas sigamos com o texto da Diretiva do Conselho de Defesa.

Segundo o documento, a complexidade da atuação das forças subversivas implicaria a simultaneidade e a regularidade de ações nas diversas instâncias sob o comando geral do Estado Maior. Isto no que diz respeito aos trâmites e latitudes geográficas, assim como nos intentos geopolíticos e estratégicos. Para tal, traça-se distinta qualificação das zonas de intervenção: zonas sem problemas, zonas controladas e zonas quentes. Delimita-se como zonas prioritárias as províncias de Tucumán, Córdoba, Santa Fe, Rosario, Capital Federal e La Plata. Estas seriam as chamadas zonas calientes. Outras áreas como Misiones, Chaco/Formosa, Salta/Jujuy, Delta do Río Paraná foram descritas como zonas potencialmente aptas ou áreas nas quais o accionar subversivo es limitado. Neste caso, o que implicaria que as operações fossem ‘suficientemente intensas para desalentar ou desarticular o aparato subversivo’. Destaca-se também que, na atribuição particular e específica, a cada uma das Forças Armadas, implicará os cuidados ostensivos para com outras zonas limítrofes tais como o Território Nacional de Tierra del Fuego, as fronteiras terrestres, marítimas, fluviais, assim como o controle do trânsito aéreo e o despacho aéreo-portuário. As menções de destaque no que concerne ao trânsito fluvial destacou-se as missões operativas no Rio de La Plata, no Rio Paraná e no Rio Uruguay.

Por fim, o documento assinado por Videla, Massera, Fautario e outros, determinava os efeitos a serem logrados. Uma brevíssima síntese deles indica:

(…) a obtenção de informação sobre elementos que integram o aparelho político e administrativo; instar situação de instabilidade permanente; aniquilar os elementos constitutivos das organizações subversivas através de pressão constante sobre elas; eliminar e desalentar o apoio de pessoas e organizações de diversos tipos possa vir a dar aos subversivos; incrementar o apoio da população às próprias operações; orientar a opinião pública nacional e internacional afim de que tome consciência de que a subversão é um inimigo indigno desta pátria (…)[9].

Uma vez mais, a Górgona repressora do Estado terrorista aponta sua ramificação ostensiva: regularidade intensiva de ações, delimitação cartográfica e disponibilidade de tropas e tecnologia para o recorte das distintas zonas de intervenção, formulação de métodos variegados para obtenção de informação, inserção de componentes em meio a população civil, trabalho contínuo e centralizado de implementação ideológica sob irrestrita propaganda e publicidade em âmbito nacional e internacional. Disto talvez se possa concluir que a referida Górgona de repressão estatal não atende a disjuntiva entre as formas democráticas e as ditatoriais.

Importante destacar, ainda, que faltou ao decreto presidencial nº 261/75 o esclarecimento sobre quem seriam esses elementos subversivos[10]. Sebastián, Diana, Fátima estariam circunscritos por este distintivo, ou pelos outros que lhe seguiram? E Nelly – cujo crime fora o da contumaz visitação aos cárceres pelos quais deambulavam seus filhos quando ainda não desaparecidos, poderia ela ser talhada por tal qualificativo?

Um último interrogante. Como se custeava tal aparato repressor? De onde viria a prata necessária para os deslocamentos terrestres, aéreos, marítimos, manutenção de corpo altamente especializado de comando estratégico e tecnológico, mobilização de tropa, custeio do rancho e de munição, instalação de aparatos de comunicação nos mais diversos veículos fazendo uso, inclusive, de seus ideólogos orgânicos espraiados nos mais diversos meios de publicidade e de propaganda a que, de forma eufemística, se lhes autodenomima como meios de comunicação? Quem será que pagava por esta conta indébita? For o caso seguirmos a letra do documento militar do Conselho de Defesa, diz-se, sob forma lacônica mas pontualíssima, que os custos operacionais estão garantidos no Artigo 7 do Decreto nº 2770/75.

Estranha fatura aquela na qual o saldo dos custos parece caber àqueles contra os quais se lhes voltará a eficiência mórbida e atroz do aparato adquirido.

3.
Sigamos na direção do fim. Todavia cabe uma questão: para o quê se constrói uma película documental? Será para llenar la pantalla com os relatos do passado histórico político recente – disponibilizando-nos fatos e agentes, sujeitos coletivos e individuais, diretrizes e programas de luta, ou a complexa trama de contextos contraditórios pelos quais trafegam os homens? Será para contrarrestar certo relato hegemônico encadeado de forma massificada pelos oligopólios da propaganda (os chamados meios de comunicação) no intento de promover consciências manufaturadas? Será para inscrever-se como programa de ação aportando a uma de suas esferas, o da formação de quadros de vanguarda política? Ou ainda, no que tange ao recorte histórico a que o documentário atenderia, seria na direção do resgate do feito histórico passado, ou seria imiscuindo-se numa espécie de presente absoluto – ambos, quem o saberia dizer, atirando (en arranque) para adelante a fim de que não se esteja fadado, sempre, a começar do zero a trama de lutas de há tanto empreendidas e nunca que abandonadas? Diríamos que é larga a bibliografia que se tem debruçado sobre tais questões e suas variantes nos estudos cinematográficos em Nuestra América. Inclusive as investigações que se tem destinado a problematizar as razões e instantes de certa guinada na produção documental argentina – na que o filme de Valentina Llorens se inscreve[11]. Guinada esta que deposita no corpo da narrativa os tormentos, as angústias, o desassossego e os extravios em primeira pessoa; espécie de subjetividade esgarçada ao olhar do mundo, em ex-posição, buscando – quem sabe – elaborar o que lhe empanturra, o que lhe aturde. Como quando pela voz emocionada de María Inés Roqué, em seu belíssimo Papá Iván, ela diz ter realizado seu filme para buscar entender o porquê das opções de luta nas quais seu pai, Juan Julio Roqué (ou Iván Lino), da Conducción de Montoneros, lançou sua vida. María Inés dirá que pensava que seu filme poderia ser um lugar, uma tumba na qual depositaria a Iván, ela que dele não dispunha de nada porque se lhe levaram tudo. São palavras de María Inés Roqué:

(…) No tengo nada de él. No tengo una tumba. No existe una tumba. No existe cuerpo. No tengo un hogar onde poner todo esto. Yo creía que esta película iba a ser una tumba. Pero me dé cuenta que no lo es. Que nunca es suficiente. Y yá no puedo más. Yo no quiero saber más detalles. Quiero terminar con todo esto. Quiero poder vivir sin que esto sea una carga todos los días. Y parece que no puedo (…)[12].

Albertina Carri, realizadora, entre outros, de Los Rubios (2003), em entrevista com a professora e investigadora Ana Amado afirmará:

(…) En Los rubios es desmesurada la primera persona, casi como un chiste. Tiene un permanente desfasaje, hay como una tercera persona falsa, como un yo duplicado. Lo que quería contar era esta cuestión de la memoria fragmentada, quebrada. Ahí me resulta que está muy presente la primera persona, por eso de los recursos que utiliza la película: animación, ficción, documental. La siento mucho más presente de lo que en realidad está. La desaparición de mis padres es una experiencia tan fuerte que me es imposible no decir yo, aunque me quisiese correr. Hay una cita que dice que la experiencia es como una vela que ilumina demasiado. Creo que ahí hay algo de eso. Si bien soy consciente de que esa experiencia es apenas una vele, también sé que en mi construcción como persona, me ilumina demasiado. Entonces me parece que era un juego con eso, esa primera persona que aparece, desaparece y se multiplica (…)[13].

No caso do filme de Valentina Llorens, LA CASA DE ARGÜELLO, a busca de que move a realizadora é por ser capaz de bordar um sentido para o que parece lhe escapar de entre os dedos. Porque como ela mesma disse, e o mencionamos atrás, tudo se fraturou naquele 1975 – a família a casa a cidade o país as palavras. Era preciso retomar as coisas de algum lugar, e a partir de algum fio desencapado e chicoteando, reaprumar os elos, reasegurar laços cindidos, nortear caminhos comuns no que se trama, solidário e fraterno, el sendero de los de abajo. Por isto escolhe subir até os longes de Santiago del Estero e deixar-se levar pelos cheiros de maiz, pela luz estourada da estepe onde quase nunca chove, pela língua quechua que rebate e repisa o que parecia adormecido, amortalhado. Talvez que chegue pelo olfato e pelo paladar o fino tempero más allá de las horas aciagas. Talvez que chegue pelos dedos esmerilhando o pincel por sobre o branco das telas que tudo registra e acolhe, acondicionando o que era vago e atordoado. Como quem oferta casa e comida. Por vezes, tantas vezes, um abraço companheiro. Valentina Llorens tem ouvido atento. Na certa que deve concordar com o que disse Patrício Guzmán: El pasado no pasa. Ele vai e volta como um bumerangue louco, descarrilhado, peligroso. Todavia arriscamos dizer que, talvez sem que ela o saiba, LA CASA DE ARGÜELLO evoca, em nós, quem sabe se em outros, os ritmos e revezes de que nos conta o poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade. Em certo instante ele diz assim:

(…) Mas de tudo fica um pouco
Da ponte bombardeada,
De duas folhas de grama,
Do maço – vazio – de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio um pouco ficou,
Um pouco nos muros zangados,
Nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana,
Dragão partido, flor branca,
Ficou um pouco de ruga na vossa testa,
Retrato (…)[14].

André Queiroz é escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. É Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Casa de Argüello, 82 min, roteiro e direção de Valentina Llorens, é um longametragem documental argentino que estreiou no dia 30 de janeiro de 2020, nas salas do Cine Gaumont/INCAA, em Buenos Aires.

Notas do autor

[1] Destacaria a importância de pensarmos o limite da representação, e no caso, este limite se apresenta no paradoxo: a representação da ausência, do desaparecido, dos vestígios apagados.

[2] Referência ao documentário de Carmen Castillo, Calle Santa Fe (2007). No caso de Carmen Castillo, companheira de Miguel Enríquez, Secretário Geral do Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR) chileno. São palavras de Carmen sobre este tempo morto que não passa e não pára de passar: “O tempo parece parado; só tive de me acostumar à ausência, ao vazio para ousar um dia aproximar-me da casa, essa casa incrustrada em mim desde àquele sábado, 05 de outubro de 1974. Tudo começou nessa casa. O rompimento com o meu país, a desintegração de uma família, as andanças”. Cf. QUEIROZ, A. Palavra Imagem – filosofia cinema literatura. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2011.

[3] Cf. Depoimento de Valentina Llorens.

[4] Cf. WALSH, R. Carta abierta de un escritor a la Junta Militar (1977). Outra referência importante no que tange a carta de Walsh podemos ver no documental realizado por Cine de La Base no Peru, em 1977. Sugiro também ao nosso livro: Rodolfo Walsh, a palavra definitiva. Escritura e militância. Florianópolis: Editora Insular, 2018.

[5] Vejamos este trecho da carta de Walsh: “Las 3 A son hoy las 3 Armas, y la Junta que ustedes presiden no es el fiel de la balanza entre “violencias de distintos signos” ni el árbitro justo entre “dos terrorismos”, sino la fuente misma del terror que ha perdido el rumbo y sólo puede balbucear el discurso de la muerte. La misma continuidad histórica liga el asesinato del general Carlos Prats, durante el anterior gobierno, con el secuestro y muerte del general Juan José Torres, Zelmar Michelini, Héctor Gutiérrez Ruíz y decenas de asilados en quienes se ha querido asesinar la posibilidad de procesos democráticos en Chile, Boliva y Uruguay”.

[6] Cf. QUEIROZ, A. Rodolfo Walsh, a palavra definitiva. Escritura e militância. Op. cit. (p.155-168).

[7] Norberto Galasso, depois de descrever os fartos lucros dos negócios da família Macri que possuía 7 empresas em 1973 e alcançou à cifra de 47 ao final da ditadura, se pergunta pelo papel histórico da chamada burguesia nacional na Argentina. São palavras de Galasso: “No asumen el rol historico que les correspondería: liderar un desarrollo capitalista autónomo, es decir, concretar la acumulación del capital para impulsar un desarrollo industrial soberano, con fuerte expansión del consumo interno, nacionalizando los resortes principales de la economía y poseyendo a su lado a importantes banco que financien su desarrollo. (…) Por el contrario, tienden a transnacionalizarse, arrojándose en los brazos de capital extranjero en aras de una política económica de ‘bajo costo argentino’ centrada en la exportación, entre otros, los casos más notorios son el de Techint, Aluar, Bulgheroni, que fijan sus objetivos en los mercados externos. Renuncian a ser ‘burguesía nacional’ para ser ‘burguesía transnacionalizada’ y en tal carácter, se constituyen en clase dominante. Desprecian el proteccionismo y asumen las mismas concepciones liberales que la vieja oligarquía”. IN: GALASSO, N. Mauricio Macri, la vuelta al pasado. Buenos Aires: Colihue, 2015 (p.21-22).

[8] Cf. Link: https://www.capitancaceres.com/single-post/2017/02/04/Decreto-26175-Poder-Ejecutivo-Nacional

[9] Cf. Documentos del Estado Terrorista. Cuadernos del Archivo General de la Memória, vol 4. Sobre os Decretos de 1975, ver as páginas 201-205. Sobre o Documento do Conselho de Defesa, ver as páginas 206-218. Do trecho citado dos efeitos a serem logrados pelo acionar subversivo, cf. p.208.

[10] Em certo trecho do filme de Valentina Llorens, sua avó Nelly fala da perseguição e combate através das forças operativas do Estado aos subversivos. Nelly Llorens, todavia, se perguntará: Mas quem são os subversivos? Na certa os que tomaram de arrasto as casas do militantes operários, os que roubaram seus utensílios, e sequestraram a sua gente, os que mantiveram aos seus filhos presos em estabelecimentos clandestinos, os que violavam as mulheres, e roubavam-lhes as crias, passando estas, como butim de guerra, aos seus cumpliciados. Quem sabe se possa dizer que subversivos sejam aqueles que chegaram a ponto limítrofe de cinismo institucional ao atuar em transações imobiliárias para venda e aluguel dos apartamentos e casas ‘’arrancados à força’ das gentes que se perseguia e fazia desaparecer. Na certa que subversivos deva ser o nome usado para aqueles que à margem da lei torturaram àqueles sequestrados, e dopando-os com Pentotal, os levavam aos chamados Vuelos de la muerte. Cenários que, confusamente, se misturam num antes e depois do golpe de Estado – como se fora de um crescendo o percurso que segue, desde a ante sala, ao palco operacional do terrorismo de Estado.

[11] Cf. PIEDRAS P. El cine documental en primera persona. Buenos Aires: Paidós Editorial, 2014. RUFFINELLI, J. De los otros al nosotros. Família fracturada, visión política y documental personal. IN: SARTORA J. & RIVAL, S. Imágenes de lo real – la representación de lo político en el documental argentino. Buenos Aires: Libraria, 2007 (p.141-155). PALADINO, D. En torno a la primera persona. IN: Documental/Ficción – reflexiones sobre el cine argentino contemporáneo. Sáenz Peña: EDUNTREF, 2014 (p.57-68).

[12] Cf. Papá Iván (María Inés Roqué, Arg, 2000). María Inés Roqué assina a direção, o roteiro e produção executiva.

[13] IN: TCHERKASKI, O. (ed.) Cine por cineastras – debates sobre documental y ficción. Sáenz Peña: EDUNTREF, 2013 (p. 57). Poderíamos citar de memória a alguns outros documentários nos que a primeira pessoa é esta instância vetora, e auto-esgarçante, a partir da qual se costura a trama narrativa: Calle Santa Fe, de Carmen Castillo (Chile, 2007), El Edifício de los chilenos, de Macarena Aguiló (Chile, 2010), Diário de uma busca, de Flávia Castro (Brasil, 2010).

[14] Trecho do poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade.

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