Por Isadora de Andrade Guerreiro

Quando Eder Sader escreveu em 1988 sobre os “novos personagens”[1] surgidos no final da década de 1970, vivíamos um período de ascensão democrática no qual a organização popular a partir do território foi fundamental para a articulação política daqueles que consolidavam ali certa identidade de classe – marcada não apenas pelas determinações do trabalho, mas pela produção de um modo de vida urbano específico. Revisitando o livro, deparei-me com um dado importante neste cenário: os custos das famílias com rendimentos até dois salários mínimos tinham um perfil no qual alimentação ocupava o primeiro lugar (48%) e a habitação o longínquo segundo (20%)[2] – dado que se explica a partir da ocupação autônoma de terra livre seguida de autoconstrução.

Os dados me chamaram a atenção porque os dados recentes Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, mostram que os custos urbanos brasileiros estão quase exatamente invertidos. No caso de São Paulo a situação dos custos de moradia é ainda mais dramática do que a da alimentação na década de 1970, comprometendo mais da metade do orçamento das famílias, principalmente de até 1 salário mínimo. Os dados do déficit habitacional na região metropolitana de São Paulo[3] mostram que o principal fator de seu crescimento acelerado foi o ônus excessivo de aluguel durante a última década – justamente no período de implantação do mega-programa Minha Casa Minha Vida. A paisagem dos territórios populares se alterou, sendo a verticalização o fenômeno mais evidente. Para quem vive dentro dos territórios, porém, isso significa muito mais: a disputa por terra escassa faz parte de alterações profundas nas formas de organização popular, com desdobramentos políticos nefastos – como a ascensão miliciana no Rio de Janeiro e sua correlação com nosso governo federal.

Dos vínculos políticos criados a partir de princípios de solidariedade e trabalho mútuo – base da autoconstrução – passamos à atomização empreendedora, com mediação estatal, cujo princípio é a violência da competição. Entender o que se passa na produção do território popular me parece central para as análises de conjuntura recentes. Este exercício pode tecer relações entre organização política popular, Estado, mercado e novas relações de trabalho. Usarei aqui alguns trechos de depoimentos feitos a mim por moradoras e moradores de dois bairros de São Paulo que passaram por reintegrações de posse, cujas identidades serão mantidas em sigilo.

A dinâmica inicial passa pela questão do transporte e das grandes distâncias da cidade, que são parte dos fatores de valorização – e disputa – de terra mais central:

Eu morava em Itapecerica, longe pra caramba. Como era muito longe pra serviço eu achei esse barraco, aí falei: “ah, vou morar no barraco”. O cara [dono do barraco] falou: “cê me dá um som, eu te dou o barraco”. E eu comprei o som e troquei pelo barraco.

Este morador se refere à saída do aluguel na periferia e à compra de um barraco em local mais central, por meio da troca de um aparelho de som, em 2008. Depois disso ele foi removido, mas comprou outro barraco, agora em área pública, na própria comunidade. Percebe-se que para morar ou construir em ambas as áreas é necessário passar por relações mercantis reguladas por relações de poder local:

Aí o que foi que eu fiz? Eu comprei no terreno da prefeitura. Eu paguei R$4 mil pro cara. Aqui o pessoal tá vendendo [atualmente] barraco de até R$10 mil. Barraco, em qualquer canto… Tem terreno até de R$20 mil. [É por causa do terreno? Como funciona?] Eu faço meu barraco e vendo pra você. Pra quem não conhece, chegar assim na comunidade e fazer um barraco é difícil. Tem que ter um “conhecimento”. Funciona assim: “Aqui é meu e já era. Você quer morar? Então, você paga”. Tem que pagar. [Pela terra, né?] É, a terra que não é sua, e não é nem do outro. Mas tem que pagar pra morar, pra fazer [o barraco]. Aí eu paguei R$4 mil, fiquei morando um ano, foi quando a prefeitura veio e tirou. Isso foi 2009, e eu comecei a receber o Auxílio.

Nesta segunda remoção ele passou a receber da Prefeitura o Auxílio Aluguel, uma política pública de atendimento habitacional temporário da cidade. A Prefeitura paga um valor mensal (R$400) aos removidos, até que tenham acesso a uma moradia definitiva. Não há nenhum controle do local e das condições jurídicas e físicas da locação, que é feita no mercado popular. Há muita precariedade, e os relatos de agentes do poder público e pesquisas de campo mostram que as pessoas acabam indo para outras ocupações, áreas de risco ou cômodos na mesma comunidade, em locais nem sempre mais consolidados. No entanto, agora sendo submetidas ao aluguel e, em muitos casos, às despesas de água e luz, que antes não tinham. Desde 2011 este benefício tem crescido exponencialmente, pois a Prefeitura não produz a mesma quantidade de habitações que remove. Isso fez com que esse programa chegasse em 2016 a 30 mil benefícios, com frágeis perspectivas de atendimento definitivo.

Esse morador entrevistado, por exemplo, está há mais de 10 anos aguardando. Muitas pessoas entrevistadas acessam o aluguel pela primeira vez na vida por meio do programa público. E não teriam como continuar pagando o aluguel se não receberem o auxílio. Mesmo recebendo, o valor não é suficiente para alugar nas áreas informais da cidade. Tais valores também subiram por conta do crescimento do programa que, pela sua escala, cria um patamar mínimo para os valores cobrados no geral. Assim, as pessoas ficam submetidas à pressão da prioridade de pagar o aluguel, deixando suas necessidades de lado. E então entendemos os dados de inversão dos custos de alimentação e moradia. Este depoimento é de uma moradora removida de área de risco, que passou a receber o auxílio:

A melhoria depende… aqui é melhor porque é de tijolo. Mas eu sinto muita falta de lá. Sinto falta porque você tira de onde não tem, tem que inteirar o dinheiro do aluguel. Que nem mês passado mesmo, a gente teve que se virar para juntar o dinheiro do aluguel. Que R$400 não dá pra pagar um aluguel. Porque não tem mais casa de R$400. A maioria é R$500, R$600, R$700. Eu acho que mil vezes onde a gente tava. Mil vezes a gente tava felizes lá. A gente não estaria passando por sufoco. A gente tira do feijão para botar no aluguel. (…) Aqui é seguro porque é de tijolo e na hora da chuva a gente não tem que passar pelo que passava mas, sinceramente, eu preferia estar lá.

Nestes depoimentos vemos a sobreposição de regimes locais de regulação territorial com a ação do poder público, que criam, conjuntamente, um contexto de maior insegurança habitacional, ligada ao aluguel informal – uma das formas importantes de mercantilização da terra. Isso, associado às remoções em massa, cada vez mais frequentes e violentas na última década. Criou-se um regime de guerra urbana que vai retirando as possibilidades de solução autônoma ou solidária na moradia. E então as pessoas passam a naturalizar a necessidade de estarem submetidas ao mercado privado de aluguel. Naturalizam, também, se submetendo, às relações de trabalho cada vez mais precárias, como mostra a fala deste outro morador entrevistado:

Ah, isso é uma coisa normal, todo mundo tem que pagar um dia, né? (…) Eu até fiquei sabendo de outra área de ocupação, mas não quis ir não. Eu preferi ficar aqui mesmo. [Não queria ter que passar por tudo aquilo de novo?] Não, tudo de novo não! Cê é loco? Vê toda aquela destruição de novo, tudo aqueles negócios feios… não! Aqui tá suave. Cê é loco… mó coisa horrível. Tô tranquilo, nunca mais quero passar por isso na minha vida. Se tiver que pagar aqui… daí o Auxílio ajuda também. Mas, se não, se brecar, é pegar uns bicos aí, fazer o quê? Tem que pagar aluguel.

Mas o problema sempre pode aumentar. A forma desregulada do programa público tem sido questionada pelo mercado imobiliário formal. Está sendo aprovada em São Paulo uma lei de locação social que, entre outras modalidades, transferirá os recursos do Auxílio Aluguel para um Fundo Gestor (de administração privada), que vai pagar o aluguel diretamente para locadores cadastrados. Empresas de administração imobiliária poderão lançar papeis em bolsa lastreados nesses recebíveis. Mas que empresas são essas? São empresas que pretendem atuar no gerenciamento das relações informais, por dentro das relações comunitárias, buscando formalizá-las gerando um fluxo concentrado de recursos antes dispersos. Já temos em São Paulo o exemplo da Alpop. A Alpop é uma imobiliária de plataforma digital que faz alugueis populares. Ela não exige fiador do locatário e dá garantia de pagamento ao locador, retirando os recursos de um fundo próprio. Por trás deste negócio, na verdade, está uma empresa de Tecnologia da Informação. Seu objetivo é colher dados sobre as dinâmicas populares relacionadas à moradia, para poder atuar como intermediadora. Ela está criando um score próprio para avaliação de risco de crédito desta faixa de renda, que pode ter muitas outras aplicações de mercado. E constrói relações com agentes locais nas comunidades para acessar os territórios e entendê-los. Seu papel pode ser de centralizar alugueis hoje dispersos no mercado informal, e direcioná-los ao mercado financeiro. Se houver a segurança dos alugueis por meio do Fundo da Prefeitura, esse negócio ganha outro tamanho.

Acredito que a escala e a forma específica de mercantilização do território popular que vivemos hoje é um dos elementos que interferem na conjuntura política do país. Se, seguindo as pistas de Eder Sader, a organização política em movimentos populares nos territórios na década de 1970 fazia parte da formação da democracia nascente, como pensar a organização popular nesse outro contexto? Que formas ela está adquirindo e quais são seus objetivos? Anteriormente, a generalização da autoconstrução gerava certa coesão comunitária estável, que foi direcionada politicamente para a defesa de certo Estado democrático e políticas públicas participativas (algo bem específico da conjuntura brasileira, em parte latino-americana). Atualmente, a mercantilização do território popular, também incentivada pela política pública, gera novos elementos para a organização coletiva. A coesão comunitária passa hoje, muitas vezes, por figuras que ascendem politicamente intermediando os mercados ilegais – de mercadorias e de terras – e o poder público. Um cenário muito diferente daquele da participação popular na arena pública. Vejamos como isso aparece no depoimento desses dois moradores, que se referem às funções do seu líder comunitário, o “João” (nome fictício):

Na sexta-feira deu enchente. Quando a água baixou ficou só os pau em pé, porque a enchente levou tudo, tudo. Levou. Aí cabou tudo e eu não abaixei a cabeça, não. Fui na Telhanorte, comprei umas outras madeiras e coloquei no barraco tudo de novo. Vou ficar aqui! Quando foi outro dia a mulher da Prefeitura passou lá muito revoltada comigo, me xingou muito, também xinguei ela, então ela foi e falou com o João. O João falou pra ela: “ou você dá Auxilio Aluguel para a Cleide, ou volta todo mundo na beira do rio de novo”. E aí eles me deu e eu fiquei foi feliz, é pouco mas quebra o galho.

Aqui outro morador da mesma comunidade fala sobre a constante (re)ocupação do córrego depois das remoções. Em cada remoção, a Prefeitura pagava mais benefícios continuados. E isso começou a virar uma prática algumas vezes mais, outras vezes menos organizada. Em algumas comunidades, ela é controlada por grupos locais, que se beneficiam financeiramente do processo de remoção, por meio do Auxílio Aluguel. Em outras, como nesta, a gestão da violência privada parece estar a serviço “do que a comunidade quer”:

[Essa vez que vieram para não pagar nada foi mais violento de tirar as pessoas? Teve mais polícia?] Não. Não foi mais violento porque quando começou a construir já falaram já. Quando construíram a primeira já falaram. Cês pode até construir, mas cês sabem que não vai pagar nada. Quando o pessoal vier tirar, sabe que vai tirar de qualquer jeito. [Então o pessoal saiu resignado?] Saiu. Mas fazer o quê? [Agora então ninguém constrói porque já sabe que não vai receber?] Não constrói… ((Outra moradora:) Não constrói porque nós morador não quer mais barraco aí no córrego. Quem construir, tem que desmanchar). [Vocês próprios já conversam com quem chega?] (volta o morador anterior) Não, se a pessoa quiser construir… ((outra moradora) Mas não pode mais! A ordem é não construir mais barraco!) Vai da necessidade da pessoa. Cada um tem a sua necessidade. Mas ele já não constrói porque ele sabe que ali não vai ganhar mais nada. E se for morador daqui, ele não vai querer fazer. Primeiro porque a maioria já recebe bolsa aluguel ou já tem casa. E outra é a “família”, né? O próprio João, se a pessoa for construir, ele já fala “ó, você não pode construir aí, porque se você for construir vai começar tudo de novo, começa toda aquela bagunça”. [E se for alguém de fora?] Não deixa. A população não deixa. [Mas como é esse não deixar? Desmancha? Fala “vai embora”?] Não precisa nem desmanchar: ele não põe nem a primeira madeira no chão. ((Outra moradora:) A gente não deixa! Porque veio um monte de gente de fora fazer barraco aqui e foi aquilo que aconteceu [remoção violenta]). [Mas não tem muito crime, violência, que chega e diz que é dele?] Ah não, o crime não é assim não. O crime tem todo um debate, todo um “vamo ver, com quem eu falo?”… [Então tem um acordo de vocês com quem controla aqui para não deixar?] É, tem um acordo nosso, porque a população não deixa. E cada comunidade tem o seu comandante. Você manda na sua área, na minha área você não manda. Se você é um comandante e você é do crime, você respeita.

Depois, o secretário de habitação daquele momento me disse em entrevista que estava negociando com as lideranças esse controle das áreas de risco. O que demonstra que o “desejo” da comunidade não é tão autônomo assim. Embora essas relações (entre lideranças, poder público e mercados ilegais) já existissem desde a formação das periferias da década de 1970, sua articulação era outra: não havia uma organização tão extensa como o PCC (Primeiro Comando da Capital), nem políticas habitacionais do formato das que temos hoje, além de haver terras em abundância e uma população muito menor, recém-migrada e com hábitos e coesão comunitária de outra ordem. “João” me parece uma figura diferente: é a nova face da organização comunitária popular empreendedora. Seu papel é de gestão das relações privadas no território mercantilizado. O Estado, aqui, é bem diferente daquele defendido na redemocratização. A “participação”, que criaria cidadania, se transformou em negociações privadas. O direito social à moradia se transforma em direito individual, privatizado e securitizado pela política pública.

Como estas relações alteram o lugar social e político dos tradicionais movimentos populares? O significado de defender políticas públicas da mesma maneira que antes se altera neste contexto? Parece-nos que sim, pois a forma histórica dos direitos sociais se alterou num mundo de relações privatizadas. Não se trata aqui de homogeneizar as atuações de todos os movimentos, nem de descartá-los em bloco pelo discurso achatado da “cooptação”. Mas de entender que seu lugar social mudou e, portanto, suas práticas, discursos e sentidos políticos também se alteraram – com outras consequências na sociedade. Isso já se nota no discurso de algumas lideranças de movimentos de moradia em São Paulo. Elas passam daquela defesa da ação coletiva ligada à produção da moradia para uma fala centrada na gestão de indivíduos abstratos. Indivíduos de direito privatizado, que competem entre si para o acesso às políticas públicas, mediadas por lideranças empreendedoras. Dardot e Laval, no seu livro “A Nova Razão do Mundo”, falam na figura de um cidadão-consumidor. Esta nova face da cidadania tem transformado a organização popular. Uma ação menos ligada à ação coletiva e geradora de arena pública, e mais ligada ao acesso privado à moradia. Esta fala de uma liderança de movimento de moradia de São Paulo, em uma entrevista pública gravada, revela parte desses desafios:

Eu tenho uma compreensão – assim como todos os movimentos organizados – de que é realmente isso que a gente faz: gestão. E não só gestão de unidades habitacionais, como também gestão das pessoas.

Antigamente, a criminalização dos movimentos de moradia era judicializada por conta da invasão de propriedade privada – considerada uma afronta às bases do sistema social. As acusações recentes, no entanto, são outras: relação com o crime organizado e extorsão de moradores na cobrança de taxas de aluguel em ocupações. Ou seja, de atuarem como gestores, não como militantes de ações diretas. Não se trata aqui de discutir a veracidade das acusações (evidentemente imersas em simplificações instrumentais de criminalização política), mas a historicidade de sua forma. Trata-se de olhar para o achatamento da perspectiva política e redução de horizonte de expectativas quando o maior “crime” cometido pelos movimentos é de exercerem um papel de gestores sociais – papel que existe na nossa sociedade, porém não lhes é legitimado (ainda) pela lei, ainda que o Estado (principalmente o poder executivo) se apoie nessa atuação dos diversos gestores sociais “paralelos” na sua própria ação de negociação cotidiana (uma enorme ampliação de sua atuação, em realidade). Essas questões nos levam a pensar sobre as dificuldades de organização política popular coletiva e autônoma numa fase de capitalismo autoritário e de privatização e atomização de todas as esferas da vida. Pois qualquer atuação política nos territórios passará pela relação com este contexto, não em algum outro idealizado ou passado.

Notas

[1] SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). São Paulo: Paz e Terra, 1988.
[2] Dados do Dieese (SADER, 1988).
[3] Dados da Fundação João Pinheiro, órgão oficial brasileiro de análise do déficit habitacional.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here