Por Amigos do Cachorro Louco
Um fantasma ronda as cidades brasileiras, e esse fantasma anda sobre duas rodas.
Salvador, 20 de dezembro. Centenas de entregadores de aplicativo se encontram no estacionamento do Shopping da Bahia. De lá, saem fechando o trânsito, desfile de motos e bikes, em direção à sede da Uber. Reclamam dos riscos no trânsito e do valor pago por entrega. A empresa promete responder em 30 dias.
Fortaleza, 6 de janeiro. Uma barreira formada por bags da Rappi, iFood e UberEats bloqueia as vias de acesso à Praça Portugal, no coração da zona nobre e empresarial da cidade. Era um protesto em resposta ao atropelamento de um entregador na noite anterior. Às 13h30, liberaram a rua e seguiram até o hospital onde o colega se encontrava.
Brasília, 20 de janeiro. Um motoboy que completava uma entrega num condomínio é agredido e preso por um policial à paisana ao estacionar em local proibido. O vídeo do enquadro circula na internet e inflama os ânimos. Imagens de conversas de WhatsApp mostram PMs combinando de abordar “todos os motoboys de Brasília”. Entregadores relatam que ficou impossível trabalhar e chamam uma paralisação. Para “pacificar a situação”, o Sindicato dos Motofretistas realiza uma manifestação.
Londrina, 4 de fevereiro. Um grupo de entregadores empilha suas bags na Avenida Higienópolis, montando uma pequena barricada no trânsito, como ocorreu em Fortaleza, em janeiro. No lugar dos logos das empresas, lê-se: GREVE.
Problema 1 – Virar CLT é a solução?
Greve: aparece essa palavra, já começa a polêmica nos grupos. Muitos dizem: “Não sabe a diferença de autônomo e CLT?”, “quem trabalha por conta não faz greve”, “vira carteira assinada para ver se é melhor”, e por aí vai. Por incrível que pareça, muitos entregadores blindam a empresa sem perceber. Ninguém acha que o trabalho no app é moleza, mas o medo é não ter nem isso. Afinal, todo mundo entende que o app só existe porque não assina carteira. Se uma greve fizer o trabalho ser formalizado ou proibido (ou as próprias empresas desistirem…), pode ser até má ideia.
Em 2016, quando os aplicativos de entrega estavam começando no Brasil, a Loggi reduziu o valor das corridas e os motoboys de São Paulo decidiram paralisar. Procuraram o sindicato, que entrou com uma denúncia no Ministério Público do Trabalho para que os entregadores fossem reconhecidos como CLT. Só que, para surpresa dos sindicalistas – interessados em aumentar o número de filiados, certamente –, boa parte dos motoboys se opôs à ideia. Comparando os ganhos imediatos e a rotina de trabalho, muita gente prefere continuar autônomo.
É nesse ponto que as greves de motoboys acabam travando. Há revolta com as condições de trabalho, mas recorrer ao Estado não parece a solução. Até porque, na correria do trânsito, o Estado em geral vem para reprimir e atrapalhar: multa, blitz, IPVA, preço da gasolina, enquadros… Às vezes essa polêmica parece “discussão política”, dividindo os motoboys “de esquerda” (que querem sindicato e Estado) e “de direita” (que se veem como empreendedores).
Mas talvez não seja uma polêmica real. Se a gente olhar para os movimentos que vêm acontecendo, vemos que ninguém está reivindicando a CLT. As barricadas de bags que se repetem país afora reclamam do valor das corridas, acidentes, bloqueios no aplicativo… Como forçar um aumento do valor das entregas? Ou do tempo de corridas?
Enquanto não existir uma “solução”, ir para cima das empresas e conseguir aumentar os ganhos dos trabalhadores talvez seja o caminho que faça mais sentido.
Problema 2 – Como fazer greve?
Por outro lado, os entregadores que tentam fazer greve encontram um problema. Se uns desligam o aplicativo, outros aproveitam para pegar mais corridas. O próprio sistema parece feito para impedir a organização de um movimento.
Mas, nos últimos protestos, novas táticas vêm surgindo. Ao invés de desligar o app, por que não deixar ligado com os pedidos tocando sem aceitar? Se nem todos os entregadores aderem ao movimento, por que aqueles que aderem não paralisam a cidade? Fechar avenidas com as bags no meio da rua, como os motoboys de Fortaleza. Ou como os caminhoneiros, que não ficavam parados em um lugar, sempre circulando, travando avenidas estratégicas. Se parece difícil atingir diretamente a empresa (que tem, no máximo, um escritório físico), por que não atingir toda a cadeia que depende do serviço, paralisando a circulação da cidade?
Olhando de fora, o trabalho diário dos motoboys parece uma luta solitária. Mas a verdade é que tem muita coletividade, que a maioria dos clientes de aplicativo não enxerga. Em grupos de mensagens, no trânsito, nas filas dos restaurantes, os entregadores se ajudam – isso facilita o trabalho, e também pode facilitar na luta. As bags unidas podem erguer muros para bloquear ruas e avenidas, pressionando as empresas por um pagamento mais digno.
O próximo teste pode ser a segunda-feira, dia 23/03: em várias cidades, está correndo o chamado para uma paralisação nacional de motoboys.
Com o isolamento social que estamos vivendo, parece que se alguma atividade cresceu foi o serviço de entrega. Estabelecimentos de diversos ramos oferecendo delivery. Dos habituais restaurantes até loja de roupas e sapatos. Isso pode soar normal para quem vive nos grandes centros ou próximo, mas nos confins do Brasil isso é novidade.
E como ficarão estes trabalhadores? Será que alguém está preocupado com a segurança e saúde deles? Que esta segunda-feira venha com toda força!