Por Raquel Azevedo
Desde o início de março, as projeções de recessão e as estimativas de desemprego nas principais economias do mundo registram os efeitos das medidas de isolamento social aplicadas em toda parte – fundamentais para conter o ritmo de transmissão do novo coronavírus e o colapso do sistema de saúde. É interessante notar, antes de mais nada, a diferença entre a crise econômica de agora e aquela de 2008. Não se trata, como antes, de uma crise de excesso de crédito, mas dos efeitos de uma desmobilização completa da economia para desacelerar o contágio e impedir uma ida simultânea aos hospitais. A diferença entre as duas crises econômicas significa que a velocidade de transmissão da insolvência entre os agentes econômicos é muito maior agora do que antes e a busca por liquidez, muito mais urgente. O Federal Reserve (Fed) tem se sedimentado como principal órgão de governança global justamente porque é aquele que garante essa liquidez aos mercados com maior rapidez (a década de política monetária frouxa que se seguiu à crise de 2008 foi um longo período de aprendizado de como fazê-lo). Os jornalistas americanos que cobrem as atividades do Fed sequer consideram que a metáfora utilizada pelos economistas para se referir a essa injeção extraordinária de liquidez, o helicopter money, seja suficiente para dar conta da movimentação das últimas semanas.
Também é preciso garantir a liquidez para as famílias e pequenos empresários, mas o estímulo fiscal dos governos chega num ritmo mais lento. Donald Trump enviou para o Congresso uma proposta que já é o maior pacote de estímulo da história americana. Dos US$ 2 trilhões (equivalentes a 10% do PIB dos EUA), US$ 500 bilhões devem ser utilizados para a transferência direta de renda. Os pagamentos podem chegar a US$ 3 mil por família. Aqui se desfaz a falsa oposição entre as medidas de isolamento e a economia. Como defende o economista e sociólogo Marcelo Medeiros, a ampliação da rede de proteção social é um modo de mitigar tanto a recessão quanto a pandemia. Um amplo programa de transferência direta de renda permitiria que se mantivesse o isolamento social pelo período que as autoridades científicas considerassem necessário. O resultado seria uma dupla proteção: macroeconômica e epidemiológica. A curva da recessão pode ser achatada através de um dispositivo que não é contraditório com as medidas sanitárias emergenciais, pelo contrário, é o que permitiria sua sustentação.
No Brasil, porém, há uma curva de transmissão do vírus, uma curva da recessão e ainda outra do tempo que a equipe do Paulo Guedes precisa para aceitar cada parte do problema. O dog whistle do Trump é uma das poucas instituições funcionando no país – o governo Bolsonaro reproduziu o discurso americano ao divulgar precipitadamente um medicamento que está sendo testado no tratamento da Covid-19, ao comprar briga com a China com associações xenófobas, ao estabelecer uma falsa oposição entre as medidas de isolamento e a economia (quando há convergência possível no enfrentamento da pandemia e da queda da renda). Bolsonaro só não imitou o pacote sem precedentes de estímulo fiscal. Repetiu a mobilização da militância, mas não a mobilização de guerra a que está sendo submetida a economia americana para lidar com as projeções de 30% de desemprego, segundo o presidente do Fed de St. Louis, James Bullard. Estamos diante do descompasso que caracteriza o governo brasileiro, segundo o argumento da Laura Carvalho no artigo publicado na Folha em dezembro de 2019: ser um governo de extrema direta ultraliberal na economia. Todos os demais governos em que Bolsonaro se inspira adotam medidas muito mais protecionistas (especialmente em relação aos efeitos do crescimento chinês). A aposta da Laura à época era que o teto de gastos iria estrangular as pretensões de reeleição de Bolsonaro, exigindo algum afrouxamento. O vírus chegou antes de 2022, mas a curva de tempo que Guedes precisa para assimilar a gravidade da situação é bem achatada, semelhante àquela que a Organização Mundial da Saúde recomenda que os países persigam para diminuir a velocidade de contágio.
De qualquer modo, a crise tem envolvido em um estatuto de normalidade certas medidas que até ontem pareciam distantes de qualquer aplicação. É o caso da renda básica emergencial, mas também da universalização do sistema de saúde e do jubileu de dívidas. Como disse o historiador Quinn Slobodian, se a crise de 2008 evidenciou o endividamento das famílias, a crise atual colocará no centro do debate os trabalhadores da reprodução social. É a quantidade de informais, trabalhadores de aplicativo, precarizados e sem renda – todos amplamente desprotegidos diante de uma desmobilização completa da economia – que torna a renda básica emergencial quase um consenso. É como se estivéssemos diante de um problema de medida: a variação quantitativa é tal que parece indicar uma variação qualitativa. A precarização é tão grande que a renda básica emergencial se impõe como uma necessidade. Não uma necessidade absoluta, pois nenhum fenômeno social tem esse estatuto, mas uma necessidade relativa, resultante de um conjunto de condições que se encadeiam e se determinam reciprocamente. O consenso dos economistas a respeito da renda básica é histórico. É um cavalo selado que pode não passar outra vez. Pois quando a economia voltar a crescer, os agentes da reprodução e o endividamento das famílias ficarão invisíveis novamente.