Por Maiara de Proença Bernardino

A concentração de poder e de riqueza nas mãos de uns poucos escolhidos, como mostram os dados do Relatório Social Mundial da ONU em 21 de fevereiro deste ano, apontam que mesmo em tempos ditos modernos (ou pós-modernos) a pobreza continua aumentando no mundo globalizado. Em uma sociedade de desenvolvimentos desiguais, é notável a relação entre o aumento do número de ricos e o aumento da população pobre. A ideia de “aldeia global” apresentada por alguns setores liberais tanto da esquerda como da direita, desaba no concreto em lugares onde o maior contingente da população vive a globalização da perversidade.

No dia 18 de março de 2020, a geógrafa e professora titular da USP Maria Adélia de Souza lançou uma série no Youtube intitulada de “Geografia e Pandemia”, lançando-nos ao debate da penetração do coronavírus em territórios desiguais. Suas reflexões nos vídeos foram alicerçadas nas teorias do professor e geógrafo Milton Santos, uma das autoridades de maior influência na América Latina quando o assunto é desigualdade socioespacial. Ela nos explica que em um mundo onde os territórios operam de maneiras desiguais entre os “espaços opacos” (territórios da pobreza) e os “espaços luminosos” (territórios a riqueza), o avanço da pandemia se dará desigualmente entre ambos e afetando demais esses primeiros.

Os “espaços opacos” são os espaços da escassez. Representam as porções do território onde há baixo investimento público, gerando uma extrema falta de equipamentos voltados para as populações. Há privação de unidades de saúde, hospitais, abastecimento de água e luz, saneamento básico, escolas, universidades, etc. E para além dessa diferenciação em relação aos “espaços luminosos”, a dinâmica social que se realiza nos territórios da abundância é totalmente mais veloz e funcional (do ponto de vista do capital) que a que se realiza nos territórios onde há uma falta de estruturas públicas e condições de vida de qualidade.

Nos pedaços do território brasileiro onde há uma concentração maior de renda, as instâncias espaço-tempo são muito mais fluídas, devido à modernidade ter instaurando essa aceleração temporal e espacial em nossas sociedades hoje urbanas. Isso não significa que esses espaços da riqueza possuem uma melhor realização da vida em relação aos outros, pois há resistências e existências insurgentes por parte da classe trabalhadora, dos homens e das mulheres que edificam e realizam o espaço urbano. Porém neste contexto que estamos presenciando de uma pandemia global, os espaços da escassez podem ser subjugados e colocados em um lugar secundário no tocante às políticas públicas adotadas pelos governos e prefeituras do país.

Nos países ou até mesmo nos espaços de uma cidade onde há uma aceleração seletiva do tempo e do espaço, as formas urbanas construídas para atender as populações abastadas apresentam-nos um panorama da contenção desigual da doença. Mesmo com uma mobilidade mais veloz representada pelos meios de transportes e comunicação, está havendo uma demora na contenção dos fluxos desses territórios. O que não significa um retardo na contenção nessas parcelas do espaço. Mas, devido a esses países, principalmente europeus, contarem com um espaço geográfico abundante em técnica, ciência e informação, e de não haver uma população tão empobrecida, a pandemia se alastrou entre as classes médias, mas sua contenção foi rapidamente projetada pelas instituições nos espaços.

Os cientistas das mais importantes universidades do Brasil, como a USP, Unesp, Unicamp, UnB e UFABC, em parceria com as universidades internacionais de Berkley (EUA) e Oldenburg (Alemanha), realizaram um estudo para acompanharmos a evolução do vírus. O estudo realizado pelos cientistas dessas universidades no Observatório COVID-19 BR neste mês evidenciou que a pandemia no território brasileiro está se tornando parecida ao caso italiano. Neste estudo, os integrantes da Universidade Estadual Paulista, mostraram que segundo suas projeções, no dia 24 de março o Brasil registraria aproximadamente cerca de 3,4 mil casos, em média, o vírus estaria dobrando a cada 54 horas e 43 minutos, mostram os dados. Os dados se aproximaram das informações transmitidas pelo Ministério da Saúde, onde neste dia mais de 2.400 casos haviam sido identificados. Mas, temos isso para os casos testados e não omitidos pelo governo, pois se considerarmos os que não foram alvo dos testes a conta se torna bem maior.

O grande problema em nosso caso brasileiro é que há uma demora para dar início às políticas e programas de contenção do coronavírus no Brasil, fazendo com que os casos aumentem. O que não poderia ser diferente em um governo de extrema-direita e neoliberal que está visando as questões econômicas do país em detrimento da saúde da população, em especial a mais empobrecida, onde está a maior parte do povo trabalhador. O atual presidente está aparecendo para as populações dos territórios da escassez como um problema maior que o vírus SARS-Cov-2. Devido às suas recorrentes banalizações e discursos incitando movimentos contra a contenção da fluidez nos territórios.

É necessário que entendamos que o território brasileiro é composto em sua maioria por “espaços opacos”, ou seja, lugares onde imperam a pobreza e a escassez de recursos básicos à saúde. Essa doença penetrará de uma forma grave nas cidades e espaços mais pobres do país, contribuindo para a morte das populações mais necessitadas de amparo médico, de alimentação e saneamento básico. Tanto a extrema-direita como a esquerda liberal fecham os olhos para essa realidade do povo pobre brasileiro. A pobreza no Brasil não foi superada, tanto é que voltamos a ocupar um lugar no Mapa da Fome ou nunca saímos dele. A mídia tradicional lucra com a pobreza alheia, mas se mostra chocada diante grandes cidades tendo seus fluxos contidos. Ocupam as telas dos telespectadores vendendo essas imagens dos espaços vazios, mas assim como o Messias, naturalizam e relativizam a pobreza que é produzida diariamente nessas grandes cidades do capital.

Há uma necessidade que fica evidente nos espaços da pobreza, a mobilidade possibilitada pelo meio técnico-científico e informacional não opera como nos espaços da acumulação do capital. Há uma exorbitante desigualdade socioespacial representada por esses dois espaços. Essa situação é intencional, pois o Estado aberto para as empresas privadas abre espaço e reserva a elas as melhores e vantajosas partes dos territórios. Os “espaços opacos” e os “espaços luminosos”, ambos convivem lado a lado, pois para haver riqueza é necessário a existência da pobreza, da escassez, da expropriação da vida de milhares de pessoas. Mas, nos “espaços luminosos” da fluidez e da acumulação do capital, os acessos são privilegiados, a saúde que resulta em qualidade de vida e possibilidade de existência são mais presentes.

Por isso, estamos em um mundo onde opera o desenvolvimento desigual, e em que segundo relatório recente da ONU, 70% da população vive excluída dos avanços técnicos, científicos e informacionais de uma sociedade dita desenvolvida e pós-moderna, mas que padece em frente a um vírus tão minúsculo e imperceptível aos nossos olhos.

A geografia brasileira evidencia os diferentes usos do território pelas diferentes classes sociais, onde uma minoria se engrandece e se enriquece com a pobreza e adoecimento da grande maioria, e inclusive lucra com a falta de recursos oferecidos nos “espaços opacos”, pois passa a oferecê-los nos grandes centros como estratégia de acumulação. É comum que a classe trabalhadora tenha de se deslocar de suas casas nas periferias para as centralidades do capital, a fim de usufruir de serviços e recursos somente existentes nesses espaços. Que fique claro que não é uma escolha livre dessas populações, mas são condicionadas a isso, pois a elite compra e edifica espaços raros onde reside a classe popular.

Nos territórios onde operam os espaços destinados às camadas abastadas, a COVID-19 pode ser facilmente expelida e combatida, devido ao fluido aparato “técnico-científico-informacional” (conceito de nosso querido Milton Santos). Esse aparato foi feito para funcionar plenamente nesses lugares da acumulação, pois muitas das vezes foram instituídos para servirem ao grande capital. Por isso criam possibilidades para maior contenção de doenças como a COVID-19, pois os “espaços luminosos” são os lugares onde opera o dito desenvolvimento econômico. Nessas partes do território, os espaços operam com a sua máxima funcionalidade e atendem as elites. Mas às custas de quem? Das populações mais carentes, onde há má distribuição de renda e de espaço, que residem em lugares onde há esgoto a céu aberto e falta de água, esta última sendo o principal recurso contra o coronavírus, e onde não há acesso às unidades de saúde pois essas estão fechadas. Desta forma, o desenvolvimento desigual interessante aos neoliberais como o presidente do Brasil e o seu ministro econômico, irá fazer com que o povo pobre seja o mais atingido pela pandemia do coronavírus.

Maiara de Proença Bernardino reside no interior de São Paulo, mais precisamente na periferia. É graduanda em Geografia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Atualmente é bolsista de iniciação científica no Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). É pesquisadora de temas da área de Geografia Humana e Geografia Urbana.

As ilustrações representam obras de Candido Portinari.

1 COMENTÁRIO

  1. Deveríamos dar mais importância para a Geografia. Geralmente, na escola aprendemos a só analisar mapas. Mas a Geografia vai além, estuda o espaço.

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