Por 01010001

Todo e qualquer militante da área da segurança digital que não leve em conta as formas pelas quais as ameaças no mundo digital afetam desigualmente classes sociais antagônicas é, no mínimo, ingênuo. Não há tecnologia sem luta de classes, e não há luta de classes sem tecnologia. Vamos tratar do assunto primeiro em alguns artigos de fundo, depois em alguns artigos técnicos de tamanho médio, para a partir de então comentar questões palpitantes acerca dos cuidados digitais. Neste artigo, vamos focar na privacidade, segurança e anonimato.

Vamos fazer algumas pequenas reflexões sobre nossas vidas para entender melhor o que é privacidade, o que é segurança e o que é anonimato. Não precisamos, por enquanto, usar leis ou palavras difíceis; basta raciocinar um pouco, pois tudo isto é simples de entender.

Privacidade

Para entender o que é privacidade, basta responder à pergunta: que informações a seu respeito você deixa que outras pessoas conheçam? Sua privacidade é aquilo que você permite apenas que um grupo pequeno de pessoas conheça. Há coisas que são tão privadas, tão íntimas, que ficam como segredo, e vão conosco para o túmulo.

Qual a ideia por trás disso? É simples: você é “dono” de você. Seu corpo, suas ideias, seus pensamentos, seus sentimentos, essas são as únicas coisas que são suas do primeiro ao último dia. Você decide quem te toca, quem te faz carinho, quem aperta sua mão, quem te beija, quem te abraça. Se você tem acesso regular a alimentação, é você quem decide o que você come, quanto come, o que come e com quem come. Você decide quem vai saber o que você pensa. Seus segredos são seus; ninguém tem que saber deles, e ninguém pode te forçar a contá-los. Você decide quem são suas amizades, com quem namora, se algum dia vai ter filhos, e com quem vai ter filhos se os quiser. Tudo isso que diz respeito a você, à sua vida pessoal, à sua intimidade, tudo isto está sob seu controle, e de mais ninguém.

Dessa ideia simples de privacidade aparecem outras. A pessoa que é “dona” do próprio corpo, das próprias ideias, dos próprios pensamentos e dos próprios sentimentos, decide também quem pode conhecer seu corpo, suas ideias, seus pensamentos e seus sentimentos. Um exemplo simples: todo mundo vai ao sanitário, mas quase ninguém vai lá de porta aberta. É você quem decide quem vai ver seu corpo nu, quem vai te ver com aquela roupa velha de ficar em casa, quem vai te ver com ou sem maquiagem. Outro exemplo: ninguém é obrigado a dizer em quem votou; diz se quiser, quando quiser e para quem quiser. Ainda outro exemplo: se alguém abre a janela de casa, nem por isso tem de aturar vizinhos xeretando, tentando ver o que você está fazendo, quem está na sua casa, o que você tem dentro de casa, nada disso. Já pensou se, de repente, aparece uma plateia para te ouvir cantar no chuveiro? Ou vai dizer que você é obrigado a contar a seus vizinhos o que você comprou toda vez que um caminhão das Casas Bahia aparece na sua porta? Como você se sentiria se uma professora contasse para a turma inteira os problemas de seu filho?

Tudo isto parece ser individual, mas também é coletivo. Não fosse haver um respeito por estas questões, seria muito fácil invadir a privacidade. Aquilo que é privado depende, sempre, de uma tensão entre esta noção simples e elementar de privacidade e aquilo que a sociedade entende que precisa estar aberto para todos. Daí, por exemplo, que candidatos nas eleições tenham sido obrigados a apresentar uma declaração de bens: é preciso saber o quanto enriqueceram depois de serem vereadores, prefeitos, deputados, governadores, senadores, presidentes, porque isto é um indício muito sério de coisa errada.

Podemos então definir o que é privacidade:

  1. Privacidade é o direito de manter a vida privada fora do alcance de outras pessoas;
  2. Privacidade é também a vontade de controlar quais informações pessoais serão expostas ao público ou estarão disponíveis ao público;
  3. Privacidade é, além disso, o controle que cada pessoa tem sobre o que diz aos outros e o que guarda para si;
  4. Privacidade é, adicionalmente, o controle que uma pessoa tem sobre o contato que outras pessoas mantêm com ela;
  5. Privacidade é, por último, aquelas partes e momentos da vida pessoal que a sociedade permite que continuem sob o controle de cada indivíduo.

Uma última observação: privacidade não é igual à clandestinidade. Uma coisa é fazer de tudo para que um crime não seja descoberto; outra bem diferente é fechar a cortina da janela para trocar de roupa. Não fazemos nada ilegal em nossos ambientes privados; só não queremos que todo mundo veja. Não é simples?

Segurança

Segurança é a capacidade de se sentir protegido contra riscos, perigos e perdas. Alguns exemplos ajudarão a refletir sobre o assunto.

  1. A segurança alimentar só é garantida quando existe alimentação suficiente e adequada para uma vida digna. A habitação adequada, em outro exemplo, é aquela onde, entre outras coisas, quem mora não tem medo de que ela caia, pois foi construída com alicerces firmes e com a técnica mais adequada ao terreno.
  2. Quem já ouviu falar em quebra do sigilo bancário deve lembrar que um banco tem informações detalhadas sobre o quanto ganhamos e o quanto gastamos, com o que gastamos, a quem damos dinheiro, de quem recebemos dinheiro, e que tudo isto tem a ver com nossa privacidade. O sigilo, então, pode ser uma forma de construir segurança.
  3. Ainda outro exemplo de segurança são as medidas protetivas criadas pela Lei Maria da Penha: aqueles que tentem machucar uma mulher são obrigados a ficar longe dela, ou podem ser presos. Estas medidas são uma forma de contenção, ou seja, de conter, de segurar, de impedir que aconteça a violência contra a mulher.

Tudo isto, junto, cria a sensação de que não há riscos à nossa vida, à nossa integridade física, à nossa saúde, ao nosso futuro etc., e que também nossas pessoas mais queridas estão protegidas.

A segurança, então, se relaciona com:

  1. Ausência ou redução drástica de riscos;
  2. Presença de algum bem ou direito essencial;
  3. Capacidade de resistir a danos ou perigos em potencial;
  4. Sigilosidade;
  5. Contenção;
  6. Estado mental.

Não se pode restringir a segurança somente à segurança pública ou à segurança patrimonial. A segurança é algo bem mais amplo, e mesmo na segurança pública e patrimonial, dois assuntos quase sempre ligados à violência urbana, existem muitos outros aspectos capazes de gerar segurança antes de se chegar a este problema, todos eles envolvendo algum tipo de serviço público ou política pública: educação, saúde e emprego dignos para a população, bairros com infraestrutura digna para todos, ambiente urbano adequado, habitação e transporte público de qualidade, iluminação pública adequada etc.

Anonimato

É fácil de entender o que é o anonimato: é a qualidade ou condição do que é anônimo, ou seja, do que não tem nome ou assinatura. Uma notícia é anônima quando não tem assinatura. Um vídeo é anônimo quando não se consegue identificar quem o publicou.

Mas veja bem: uma coisa é uma notícia anônima, outra coisa é uma notícia apócrifa, ou seja, aquela que tem assinatura falsa, que não foi escrita por quem está lá como autor. O material pode até ser verdadeiro, mas a pessoa cujo nome aparece na assinatura diz que não escreveu, que não disse o que está ali, que a voz gravada é de outra pessoa etc.

Com toda a discussão recente sobre fake news, já é bem divulgado que o anonimato no Brasil é proibido. Sim, é verdade, mas existem exceções:

  1. Segredo de confissão: um padre não é obrigado a contar o que lhe disseram no confessionário, mas pode muito bem agir de acordo com o que lhe contaram, sem dizer como recebeu a informação. E se agir assim, não é obrigado a contar quem disse.
  2. Segredo profissional: nenhum profissional é obrigado a contar segredos que seus clientes contaram por causa do serviço que contrataram – mas podem, também, agir de acordo com o que sabem, sem dizer como conseguiram as informações. Um psicólogo, por exemplo, não é obrigado a contar nada sobre seus pacientes, assim como um médico; se o obrigarem, podem dizer que está tudo protegido pelo segredo profissional garantido por lei. Um tradutor de diálogos não é obrigado a mostrar suas notas de tradução a ninguém, e inclusive pode (na verdade, deve) destruí-las assim que terminar seu trabalho. As conversas entre advogados e clientes são invioláveis etc..
  3. Sigilo de fonte: jornalistas têm o direito e o dever, garantidos pela Constituição Federal, de proteger a identidade de suas fontes de informação sempre que elas pedirem anonimato. Deste modo, estes profissionais podem divulgar informações conseguidas de pessoas que, se fossem obrigadas a se apresentar em público, nunca diriam nada.

Num próximo artigo, trataremos das ameaças à nossa privacidade, segurança e anonimato na internet.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here