Por uma filha de dois trabalhadores da saúde

I) Um raio-x da saúde

O cotidiano de quem trabalha nos hospitais nunca foi fácil. Em função dos baixos salários, muitos trabalhadores têm dois empregos ou realizam bicos de home care e, entre um plantão e outro, nem sempre é possível voltar para casa. Por conta disso, quando o hospital não oferece uma sala de descanso, uma prática comum é improvisar camas com papelão ou lençol em almoxarifados escondidos, salas desativadas ou até mesmo nos vestiários.

Sou filha de dois trabalhadores da saúde, uma técnica de enfermagem e um técnico de radiologia, graduado em enfermagem. Minha mãe e meu pai têm dois empregos, ambos trabalham tanto em um hospital público como em um privado. Em minha casa, nunca houve feriados e as viagens familiares foram poucas. Raramente é possível coincidir as férias dos dois trabalhos, e todo ano é preciso escolher comemorar o Natal ou o Ano Novo. Às vezes, não se comemora nenhum. Para que não se torne uma batalha onde apenas os preferidos da coordenação vençam, é comum em muitos hospitais a criação de um esquema de rotatividade dentro das equipes. Assim, cada funcionário consegue, vez ou outra, coincidir suas férias com as do restante da família.

As longas jornadas e a pressão psicológica das responsabilidades cotidianas geram um alto nível de estresse que resulta, por sua vez, na altíssima taxa de acidentes de trabalho, o que faz da área da saúde a campeã neste quesito no Brasil. De acordo com os dados mais recentes publicados pela Secretaria de Previdência este ano, houve um aumento de 7% no número de acidentes no setor em comparação com o estudo anterior, feito em 2017, passando de 70.537 para 75.520 casos. A maior parte deles acontece em atividades de atendimento de internação de pacientes e atinge, principalmente, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem.

São esses trabalhadores da saúde que acolhem e convivem mais diretamente com os pacientes, desde o momento em que eles pisam no hospital. Eles representam ainda 70% dos 3,5 milhões de trabalhadores do setor. As mulheres são a esmagadora maioria; existe apenas um homem para cada seis enfermeiras, auxiliares e técnicas de enfermagem. Isso explica o fato da iconografia empregada nas comunicações produzidas pelos sindicatos da saúde dialogar com uma estética “feminina”, que no geral reforça a ideia do “trabalho por amor” e uma identificação com o trabalho que, na prática, é um entrave nos processos de luta que questionam as condições de exploração.

II) Tretas na saúde: nada disso começou hoje

Esta foto parece ser um registro de luta durante a pandemia. Mas não é. Ela foi feita em setembro de 2019, em Manaus, durante um protesto de enfermeiros terceirizados do Estado do Amazonas. Cerca de 11 prestadoras de serviço estavam em débito com aproximadamente 6 mil trabalhadores, que na época estavam há quatro meses sem receber.

O caso não é o único. Rio de Janeiro, Pernambuco, Amapá, Rio Grande do Sul, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Ceará e Bahia viveram processos muito parecidos. O ano passado foi marcado por manifestações, paralisações e greves em vários estados do país com uma forte presença dos sindicatos. Este é o cenário que antecede a chegada do coronavírus ao Brasil: falta de funcionários, salários atrasados, insumos hospitalares insuficientes para as demandas, congelamento de contratações e péssimas condições de trabalho.

Muitos ainda seguem sem receber seus salários. No dia 28 de março de 2020, os enfermeiros terceirizados de Manaus protestaram novamente em frente ao sindicato, reivindicando, desta vez, não quatro, mas oito meses de salários atrasados. E o estado do Amazonas, apesar de possuir uma baixa densidade demográfica, é uma das regiões mais afetadas pela Covid-19 no Brasil.

As mobilizações passam quase desapercebidas pela mídia e seguem isoladas, à mercê das decisões das diretorias sindicais. Um caso marcante é o dos médicos residentes. Eles cumprem a precária função, dentro do SUS, de substituir a contratação efetiva de médicos. No começo do ano, o governo federal anunciou o desconto de R$ 100,00 para a previdência social em seus salários. Sem receberem reajuste na bolsa salário desde 2016, os estudantes da pós-graduação de medicina, articulados ao redor da Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), marcaram o início de uma greve nacional para o dia 20 de março.

A adesão ao chamado era grande e a greve era uma certeza. Mas, com a chegada do coronavírus ao Brasil, a direção da ANMR, sem conversar com ninguém, disse em um comunicado:

A ANMR entende que como médicos temos o compromisso de ajudar nosso país na contenção do vírus e continuar realizando nosso imprescindível trabalho à sociedade, cuidando das pessoas.

Declaram no texto que a greve está adiada para sabe-se quando. A decisão dividiu os estudantes, mas, ao que parece, desagradou à maioria. Um dos comentários à nota diz: “Lamentável 👎👎👎 Nunca mais vão conseguir mobilizar tantos residentes assim.”

Natal — cerca de 80 residentes realizaram um ato com cartazes denunciando a alta carga horária de trabalho a que são submetidos.

Quando, enfim, chega o dia marcado para o início da greve, os médicos residentes recebem o aviso de que suas férias seriam suspensas e seus estágios eletivos cancelados. Na data, também estavam marcados aplausos para todos os profissionais da área da saúde. Estes aconteceram. Uma médica residente na ocasião questiona:

Hoje, 20/03/2020, vocês nos aplaudiram pela janela (nós e todos os profissionais da área da saúde). Amanhã, quando for a hora de cobrar a valorização do médico residente (e de todos os profissionais da área), vocês vão continuar do nosso lado?

A irônica coincidência dos dois eventos chega a ser sufocante. A convocação dos aplausos nas janelas coloca os trabalhadores da saúde em um patamar de heroísmo, já comentado aqui, que reforça a ideia de que eles trabalham por caridade, por amor, pela coragem. A capacidade deste gesto de neutralizar as pautas concretas dos trabalhadores é tamanha que, enquanto estes lutam por melhores condições e aumentos de salários, até os políticos e empresários saem às janelas para participar do movimento de aplausos.

III) O coronavírus chega ao Brasil

Enquanto muitos trabalhadores da saúde são afastados pela Covid-19 e dezenas de mortes começam a ser registradas, a demanda de trabalho só aumenta. Meu pai, por exemplo, que costumava fazer plantões com quatro pessoas, agora trabalha sozinho alguns dias, em dupla em outros. Isto porque sete de seus doze colegas do setor de radiologia estão internados. Há algumas semanas ele não dorme direito, tem pesadelos. Em um deles, sua função no hospital era colocar cabeças humanas para tomar sol. Com o sangue estancado, as cabeças conversavam com ele os típicos diálogos de uma rotina na UTI.

A cada dia que passa, a área de pacientes contaminados está cada vez maior. E os trabalhadores estão com medo, exaustos. Há inúmeros relatos de quem não consegue descansar em casa, de pesadelos como os que tem o meu pai. As rotinas foram absolutamente transformadas para não infectar os familiares e, se antes o problema era não participar de uma reunião escolar, hoje o peito aperta porque muitos escolhem não chegar perto dos filhos.

Os setores que não lidam diretamente com o tratamento do coronavírus aguardam receosos o possível remanejamento do pessoal para os PS e UTIs. Mas o que mais preocupa é não ter os equipamentos de proteção adequados e saber que o que existe não vai dar para todo mundo. Para não desperdiçar material, uma vez que as enfermeiras se vestem, devem ficar por seis horas sem comer, beber água e usando fraldas geriátricas porque não podem se desparamentar para ir ao banheiro.

A todo momento chega uma orientação de fluxos, condutas e protocolos diferentes sobre o coronavírus. Todas elas miram o racionamento de uso de EPIs e rebaixam o nível de proteção individual, sustentando-se em argumentos que não dizem respeito à contenção do coronavírus que, na verdade, reforçam a precarização do trabalho. Por conta disso, funcionários de inúmeros hospitais, de norte a sul do Brasil, denunciam nas redes sociais, levam relatos aos seus sindicatos e procuram as mídias todos os dias para falar da falta de estrutura para atendimento de casos de Covid-19.

Mobilizados antes mesmo da chegada do coronavírus, os enfermeiros de Pernambuco ameaçaram entrar em greve no dia 23 de março caso máscaras, luvas, aventais e óculos de proteção não chegassem aos hospitais da rede pública. No dia seguinte ao anúncio de estado de greve pelo Sindicato dos Enfermeiros do Estado de Pernambuco, o desembargador do Tribunal de Justiça determinou uma multa ao SEEPE de R$ 100 mil por dia de paralisação. A greve não aconteceu, o que não significa que não tenha forçado alguns efeitos: logo depois disso, o governo anunciou a distribuição de 1,2 milhão de itens de proteção individual em hospitais estaduais e também aos municípios.

É difícil saber ao certo quantos trabalhadores da saúde já estão afastados, quantos estão internados, quantos morreram. A escolha de inúmeras instituições de saúde é de ocultar o número de casos, o que gera indignação entre aqueles que seguem trabalhando no hospital. Um levantamento realizado pela UFRJ mostrou que a taxa de contaminação dos trabalhadores da saúde no Rio é de 25%, muito superior às vistas em países da Europa, como França e Itália.

Assumindo o alto risco de contaminação a que os trabalhadores da saúde estão sujeitos, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, lançou o programa “O Brasil Conta Comigo”. O projeto funciona em duas frentes. A primeira delas, direcionada aos conselhos de classe e entidades trabalhistas, estipula o cadastro de profissionais da área da saúde para que esta mão de obra seja redistribuída pelo território brasileiro em caso de necessidade.

O segundo gancho é voltado aos estudantes de diversas áreas da saúde, para que trabalhem diretamente com pacientes que contraíram coronavírus. Em contrapartida, o governo oferece o irrisório salário mínimo, de R$ 1.045, para a jornada de 40h e a metade, R$ 522,00, para jornadas de 20h semanais. Em menos de 20 dias, cerca de 3 mil estudantes haviam se cadastrado. E a reação nas redes sociais foi de empolgação: os estudantes, em sua esmagadora maioria, ficaram contentes com a possibilidade de ajudar no tratamento dos doentes e na contenção do vírus.

A comemoração dos estudantes, ao contrário do que dizem os aplausos pelas janelas, não se deu por um estalar de coragem e heroísmo. A real situação de grande parte dos jovens que se formam no ensino superior no Brasil é o desemprego. De acordo com os dados mais recentes do Censo da Educação Superior, só em 2018, mais de um milhão e duzentos mil estudantes concluíram cursos de graduação no Brasil. Mas o mercado de trabalho não é capaz de absorver essa mão de obra que se forma. E a situação não é diferente com os estudantes das áreas da saúde. Assim, formar-se na faculdade tendo no currículo uma experiência de trabalho envolvendo pacientes de coronavírus pode significar para esses jovens uma vantagem em processos seletivos no futuro.

O desemprego não afeta apenas os recém-formados. A última pesquisa sobre a situação na área da saúde foi realizada em 2015 pelo Cofen e pela Fiocruz. De acordo com o levantamento, 65,9% dos profissionais de enfermagem já apresentavam na época dificuldade de encontrar empregos. A pandemia, no entanto, bateu à porta e obrigou as instituições hospitalares, públicas e privadas, a aumentarem seu contingente de trabalhadores. Para se ter uma ideia, apenas a Catho, uma plataforma de ofertas de vagas, divulgou que no mês de março a procura por profissionais da saúde aumentou 281%. Para quem tem contas para pagar e não pode mais se virar com trabalhos autônomos, o coronavírus foi, nas palavras de uma técnica de enfermagem, uma “luz em meio a todo esse caos“, mas também sinônimo de uma nova preocupação: o medo de contaminação pelo novo vírus dadas as precárias condições de trabalho.

É certo que as tretas na área da saúde crescem em ritmo proporcional ao número de casos e mortes de coronavírus. Se por um lado o isolamento e a solidão do trabalho dentro de uma UTI significam a extrema degradação da subjetividade do trabalhador, pode ser também aquilo que o impulsiona a dialogar e se aproximar dos demais. Além disso, ainda não entendemos a profundidade e as consequência da dor ao ver a morte de um colega de trabalho. O cenário indica que ela será recorrente entre os trabalhadores brasileiros da saúde, o difícil é saber se ela trará ainda mais medo ou provocará revolta ao expor os limites do suportável na experiência no capitalismo.

IV) Eu cuido de você, você cuida de mim

Esta é uma pose que incontáveis equipes de saúde replicaram. Certamente a movimentação mais unificada que estes trabalhadores fizeram. Os cartazes que dizem “eu cuido de você, você cuida de mim”, mais do que reforçar a campanha da quarentena, são um pedido de solidariedade. Não à toa, sua forma se tornou um símbolo que pôde ser apropriado também para denunciar a falta de EPIs e as condições de trabalho dentro dos hospitais. Este texto, de uma certa forma, tenta se encaixar aí. Ao lado de equipes como a de minha mãe, que chamam atenção para as necessidades dos trabalhadores da saúde.

Enquanto pesquisava para escrever este texto, diante da quantidade assombrosa de reportagens que denunciavam a tragédia da falta de EPIs, me perguntei o que era necessário contar de diferente. Ao contrário da tragédia narrada pelos jornais, uma astuta e rica fonte de audiência, quis evidenciar o seguinte: nenhum dos problemas, menos ainda as lutas que emergem em resposta, são questões novas para os trabalhadores da saúde. Apesar de acrescentar elementos novos, a pandemia não fez nada a não ser escancarar as condições precárias de trabalho e de saúde que já estavam aí.

No entanto, o futuro se apresenta como uma incógnita. Não é possível saber o que acontecerá a partir deste ponto. Afinal, por aqui ainda não chegamos no ponto onde os trabalhadores da saúde se veem obrigados a escolher quem atender entre o diabético e o asmático, entre o jovem e o “velho”.

Há uns dias atrás, refletia com ela sobre a estranha, e às vezes imobilizante sensação de viver em um estado de catástrofe anunciada. Uma das definições para catástrofe que Benjamin utiliza na obra das Passagens, em vez de “virada abrupta” como diz a etimologia da palavra, é “ter perdido a oportunidade”, deixar o tempo oportuno passar. Em um diálogo mudo com ele, minha mãe escreveu alguns versos com a esperança de que a gente aprenda alguma coisa até lá:

São tempos de aprendizagem na época da pandemia
Fomos tocados por algo invisível para o berço da consciência
Aqueles que param para ver onde estão, percebem:
Nós fomos parados.
A hora é o aqui. O lugar, agora.

Hora de alvoroçar nossas vontades
De chegar até à vida
Em que olhar o outro bem nos olhos
Seja o nosso comum

2 COMENTÁRIOS

  1. Entendi o artigo como uma análise das condições de trabalho na área da saúde, a autora demonstrou um exacerbamento de uma precariedade anterior. Sem dúvida a pandemia colocou essas pessoas sob riscos muito maiores.
    Entretanto, acho que o texto deixa aberto espaço para certo corporativismo ao lamentar a inexistência de greves no setor. Em um hospital, ao se fazer uma greve qual produto deixa de ser entregue? A saúde de outro trabalhador. A paralisação dessa atividade me parece demais danosa ao conjunto da classe, na atual situação então seria algo incalculável. A mobilização em um setor como esse – em todos na verdade – precisa atacar as estruturas de controle que existem sobre os trabalhadores, sejam elas do Estado ou das empresas privadas. Li, um tempo atrás, sobre uma greve de médicos durante o salazarismo que consistiu em não registrar no sistema o número de atendimentos, o que prejudicava diretamente a burocracia salazarista. Não sei o quanto isso é aplicável hoje, mas o que se faz necessário é usar a criatividade na reivindicação de condições de trabalho.
    Uma mobilização desse tipo pode conseguir a solidariedade do restante da classe, enquanto uma mobilização que a classe trabalhadora será a maior prejudicada não conseguirá (com razão) esse apoio. Esse é um momento em que a solidariedade está voltada para estes trabalhadores da saúde, e isso pode ir além de aplausos.

  2. O comentário de Legume me remeteu a um ensaio que escrevi em 2015. Ele, o ensaio, me ajudou a organizar as minhas dúvidas a respeito do caráter de uma greve promovida pelos trabalhadores da educação (eu sou técnico-administrativo de uma universidade federal) e da saúde. Em especial, queria entender o porquê de ser tão fácil — comparado a outros trabalhadores — fazer uma greve nas universidades ou por que uma greve no setor da saúde atraia tanta hostilidade dos demais trabalhadores caso não fosse resolvida rapidamente. Com todas as contradições da saúde e da educação fornecidas pelo Estado, em uma sociedade capitalista pois atualmente não existe outra, ainda assim esses serviços devolvem aos trabalhadores um pouco do que eles entregam nos seus locais de trabalho. O que nos obriga, nós trabalhadores da educação e da saúde, a ser um pouco mais criativos em nossas reivindicações e nos nossos processos de luta contra a exploração e precarização. Segue o link: https://passapalavra.info/2015/09/105942/

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