movimento em luta

Por Maiara Santos Neris

Na noite do dia 20 de março de 2020, os músicos Luciano Costa e Ricardo Rodrigues foram abordados por seguranças do metrô e impedidos de embarcar na Estação Bresser–Mooca, linha 3 vermelha, da cidade de São Paulo. Luciano e Ricardo foram agredidos, imobilizados e levados em meio aos pedidos de soltura feitos pelas testemunhas que passavam no momento do ocorrido. Com vídeo e relato dos músicos sobre a agressão sofrida, a ação dos agentes reflete a violência que artistas de rua sofrem diariamente, não só nos transportes públicos ferroviários, como do próprio sistema socioeconômica e cultural do nosso país.

Na noite do ocorrido, Luciano e Ricardo se apresentavam no interior de um vagão para arrecadar alguma renda quando foram expulsos. Diante dos alertas, que já surgiam sobre as paralisações e ações de isolamento social por conta dos novos casos de Covid-19, o novo Coronavírus que deixou a cidade e o mundo em alerta, os músicos já encontravam grandes dificuldades em conseguir contribuições.

Em depoimento, os seguranças alegaram que solicitaram para que Luciano e Ricardo saíssem da estação porque os dois estariam fazendo “bagunça” no interior do vagão e que por conta da “pandemia do Coronavírus estão evitando aglomerações e bagunças no interior das estações”. De acordo com os funcionários, assim que saíram, “os dois resolveram comprar novos bilhetes e voltar, momento em que foram impedidos de entrar e iniciou-se uma discussão”. Após agredir os músicos e levá-los, os seguranças abriram um boletim de ocorrência contra os artistas, onde se declaravam como vítimas. A justificativa dada por eles para a agressão, foi pelos músicos reagirem ao serem impedidos de entrar no metrô após ambos comprarem bilhetes para ir embora.

“Mesmo pagando e entrando como qualquer cidadão, fomos agredidos e impedidos de embarcar.”, disse Ricardo que conta que, após comprarem os bilhetes e irem em direção as catracas, os seguranças começaram as agressões com o argumento de que estavam se exaltando contra eles, mas que não era verdade, já que ambos estavam ocupados em segurar instrumentos e cases.

Vale destacar que um dos funcionários foi filmado por testemunhas durante a agressão com o objetivo de denunciar a ação, que claramente configura abuso de poder segundo a Lei Nº13.869, de 5 de setembro de 2019, e caberia não só aos agentes de segurança pública como a concessionária do metrô responder por isso. Os seguranças usaram de seu cargo e conhecimentos para imobilizar os músicos, conduzi-los e abrir o boletim de ocorrência primeiro na presença de ambos, enquanto os artistas não tiveram como se defender e nem tempo para isso.

De acordo com a Política Nacional de Mobilidade Urbana e o Decreto Nº 58.200, de 19 de abril de 2018 do município de São Paulo, os artistas teriam direito de embarcar e seguir viagem, a abordagem seria válida se eles tivessem cometido algum crime ou ação que violassem os códigos e leis existentes.

No boletim, não há declaração de flagrante ou qualquer coisa que justifique de fato a reação dos agentes. Mesmo que os seguranças alegassem desacato ao funcionário público, não se configura, já que a discussão se deu pela briga ao direito protegido por lei que os músicos tinham em utilizar o transporte público após pagarem a taxa determinada, a atitude dos agentes se configura em abuso de autoridade após terem sido contrariados.

Outro argumento usado pelos seguranças foi a tentativa de evitar aglomerações por conta do Coronavírus. De acordo com eles, os músicos tocando [fazendo bagunça em seu linguajar] no metrô poderiam provocar aglomerações, o que os agentes esqueceram de observar é que os vagões já estavam sem aglomerações e dificilmente os artistas, apesar de talentosos, conseguiriam uma aglomeração para autógrafos e selfies.

Até o nosso último encontro, poucos dias após o ocorrido, Luciano Costa, que aparece no registro do vídeo, relatou que sentia muitas dores e que devido a gravatada dada pelo agente, não estava conseguindo alcançar as notas. “Estou aqui há muito tempo e nunca passei por isso. Estou cansado, sem dinheiro e tudo dói. Essa cidade me engoliu. A gente luta diariamente contra o barulho dos vagões ou o balanço do transporte público, e ainda temos que nos preocupar em sobreviver ao sistema só para tentar fazer o que amamos e no final é isso que recebemos.”, disse ele.

Já Ricardo Rodrigues expressou que é evidente o abuso de poder cometido pelos agentes e a tentativa de usar argumentos inverídicos para tentar justificar a ação. “Eu nunca causei confusão no metrô e a atitude dos seguranças foi desnecessária e desrespeitosa.”, comentou.

Os músicos queriam ter conseguido lutar pelos seus direitos, abrir uma queixa, realizar o corpo de delito e ir até o fim em busca de justiça. Chegaram a entrar em contato com uma advogada, porém os artistas não conseguiram registrar o boletim de ocorrência contra os agentes e o metrô. Por conta da pandemia de Coronavírus, os registros de boletins e as realizações de corpo de delito ficaram restritos a casos específicos e considerados graves.

Luciano Costa e Ricardo Rodrigues não foram repreendidos, agredidos e imobilizados por causa da pandemia; por violar leis ou se recusarem a pagar a passagem; foi por apontarem o direito de usar o transporte depois de pagar pela passagem. A volta dos músicos a estação do metrô, mesmo tendo direitos e mesmo sendo apenas para ir embora, seria uma afronta ao ego do sistema e daqueles que vestem sua farda, assim, os agentes optaram pela agressão e imobilização ao serem confrontados e usaram de seus privilégios para saírem ilesos.

Agressões cometidas por Seguranças do Metrô já é algo comum

Luciano Costa e Ricardo Rodrigues não são os primeiros músicos a serem agredidos por seguranças do metrô, e em todas as outras situações não haviam epidemias pela cidade paulista para usarem como um dos possíveis argumentos para a agressão. Será que o problema é o vírus Covid-19 ou o sistema infectado que nos cerca?

Em 18 de outubro de 2018, um vídeo divulgado pela Ponte Jornalismo mostra o trio de músicos Cantigas de Nylon, sendo agredidos e ameaçados por seguranças do metrô de São Paulo com frases como “O PT acabou, já era para vocês.” e “Vocês nunca mais vão tocar” [1]. Em 12 de maio de 2019 os portais de notícias R7 e G1, divulgaram um vídeo em que o músico Gael Dinis recebe uma gravata de um segurança do metrô, “Sinto-me violado, fui tratado como bandido, sofri injúria racial e agressão”, relatou o artista [2].

Além disso, músicos não são as únicas vítimas de atitudes como estas de agentes de segurança do metrô de São Paulo: 09 de abril de 2019, o portal R7 divulga vídeo onde agentes de segurança do metrô agridem um usuário alegando tentativa de burlar do sistema [3]. 14 de outubro de 2019, o portal R7 divulga um vídeo em que um homem desmaia após agressão de segurança do metrô [4]. 09 de dezembro de 2019, o portal Rede Brasil Atual (RBA) denuncia seguranças que agridem jovem negro de 14 anos após abordagem ilegal ao jovem abusando de uma autoridade que não possuem [5].

De agressão física a humilhação e injúrias raciais. Esses são casos que tiveram repercussão por conta de testemunhas que gravaram a ação agressiva – se não dizer inumana e criminosa, feita por seguranças do metrô de São Paulo contra artistas, passageiros e ambulantes –, e divulgaram, mas basta um momento ouvindo o que passam em seu cotidiano para saber que há muitos outros que não são divulgados e que provocam sequelas nas vidas dessas pessoas. Infelizmente, em muitos outros casos, as chances de agentes como esses saírem sem serem punidos por atitudes como estas são grandes.

Ainda assim, muitos artistas continuam pelo amor ao que fazem e pela sobrevivência. Alguns carregam não só cicatrizes como traumas, autoestima baixa e até mesmo depressão.

Sobre a expulsão

Em relação a expulsão dos músicos da estação, foi atribuída às tentativas de evitar aglomerações e bagunças por conta da pandemia de Covid-19. Não teria sido mais plausível ter relacionado a expulsão dos artistas por algo que os proibissem de estar dentro do vagão produzindo arte através da música?

Existe uma lei municipal em São Paulo que proíbe o uso de aparelhos sonoros ou musicais no interior de veículos de transporte coletivo, Lei nº 15.937 de 23/12/2013. De acordo com a lei, ela se aplica aos aparelhos musicais ou sonoros com ênfase nos celulares, caso seja descumprido o usuário é convidado a se retirar e caso recuse é permitido a intervenção e apreensão do aparelho.

Art. 1º Fica proibido, para fins de preservação do conforto acústico dos usuários e combate à poluição sonora, o uso de aparelhos musicais ou sonoros, salvo mediante o uso de fone de ouvido, no interior de veículos de transporte coletivo, públicos e privados, independentemente do órgão ou ente responsável por sua administração, que circulam dentro do Município.
§ 1º A proibição constante do “caput” abrange os ônibus, micro-ônibus, vans, peruas, lotações e todos os tipos de veículos sobre trilhos.
§ 2º Aplica-se a proibição contida no “caput” aos aparelhos celulares, quando utilizados como aparelhos musicais.
Art. 2º Quando constatada inobservância do preceituado no art. 1°, serão adotadas, na ordem elencada, as seguintes medidas:
I – o infrator será convidado a desligar o aparelho; II – em caso de recusa de desligar o aparelho, o infrator será convidado a se retirar do veículo; III – caso frustradas as medidas previstas nos itens I e II, será solicitada a intervenção policial [6].

De acordo com o Advogado Rodolpho Andrade, em artigo no site 32xSP, “tocar não configura crime, contudo a lei prevê algumas sanções para quem a descumpre. Os instrumentos só podem ser aprendidos, e de forma momentânea, com intervenção policial e quando o indivíduo resistir às ordens dos agentes de segurança” (2019). Mesmo que o segurança tivesse se referido a esta lei, os músicos respeitaram ao pedido de pararem, portanto, cumprindo com aquilo que prevê a lei, e até se retiraram voltando apenas para tentar ir embora.

Outro ponto que vale destacar é que o argumento usado pelo segurança para expulsar Luciano Costa e Ricardo Rodrigues, o qual afirma que os músicos estariam fazendo “bagunça”, o protege de ter abordado os artistas que apenas estavam exercendo seu direito a produção cultural. A produção artística e a liberdade de expressão são protegidas pela nossa Constituição Federal de 1988 e devem ser garantidas e protegidas pelo Estado:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional [7].

Portanto, repreender ou censurar artistas, produtores culturais e agentes de comunicação vai contra a nossa constituição e é crime. Ironicamente, também, o Código de Conduta e Inteligência da Companhia do Metrô de São Paulo tem como princípios éticos o respeito aos Direitos Humanos, onde em seu código universal defende que:

Artigo I: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo XIII: 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. […]
Artigo XIX: Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XXIII: 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. […]
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
Artigo XXVII: 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor [8].

Diante disso é comum ouvir autoridades como este segurança se referir a arte como “bagunça”, “baderna” ou “confusão”, ou se referir a artistas ou qualquer pessoa que representem as classes de comunicação e arte protegidas por lei como “desocupados”, “baderneiros” e “marginais”, para tentar justificar a represália que cometem. Para artistas que não estão dentro das Universidades ou das Belas Artes, isso se torna ainda mais frequente e contribui para a visão elitista e marginal que a sociedade vem carregando ao longo dos anos em relação a arte de rua ou independente, o que claramente podemos ver como um reflexo nas ações agressivas de agentes de segurança contra os músicos que tocam no metrô. Infelizmente uma visão estrutural que nos levaria a uma análise profunda de sistema, comunicação, cultura e arte.

Sobre Luciano Costa

Luciano Costa, de 22 anos, é músico há 10 anos; há 5 apresenta-se nas ruas e há 2 anos faz dos vagões seu palco. Em 2016 saiu de Brasília para tentar a carreira de músico em São Paulo. Foram dois anos de batalha neste cenário, com muito trabalho e dedicação, o artista conquistou espaço na cena dos vagões da maior metrópole do país. Luciano ficou conhecido pelo sorriso cativante, a energia que transmite em suas apresentações, com seu jeito descontraído e até o samba no pé enquanto equilibra o violão nas viradas e paradas do trem. Comentários, como “Meu dia não estava legal até ouvir você no metrô” se tornaram comuns em marcações de stories e posts do artista, que anuncia ao final das apresentação as mídias sociais para contato (@lucianoeviolao). Há cerca de um ano o músico teve que voltar a sua cidade.

Cerca de uma semana antes da pandemia de Covid-19 estourar no mundo e o primeiro caso surgir na capital paulista, Luciano decidiu vir à São Paulo para trabalhar, já que a cidade paulista traz boas oportunidades pelo grande tráfego de pessoas. Mas essa realidade mudou quando os primeiros casos surgiram na capital e foi decretado estado de emergência no dia 17 de março pelo atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), que juntamente com o atual governador, João Doria (PSDB), começaram a realizar medidas de restrição. Apesar de garantirem o funcionamento do transporte público, o músico já sentia o receio e o medo das pessoas nos vagões, que já apresentavam um público menor.

Quando a noite da agressão ocorreu, Luciano já se encontrava em uma situação difícil sem saber por mais quanto tempo teria como pagar a pensão onde estava hospedado. Além disso, contava com as mensagens da mãe para lembrá-lo de se cuidar, sendo asmático o músico faz parte do grupo de risco da Covid-19. Ainda assim, determinado a cumprir com a meta que traçou ao vir para São Paulo, saiu para encarar mais um dia de trabalho, só não esperava terminá-lo com a agressão que sofreu.

Luciano Costa voltou para Brasília poucos dias depois do ocorrido com o apoio de amigos, sem conseguir alcançar a meta que estipulou e sem dinheiro. Hoje, há quase um mês depois, a lesão provocada em seu pescoço pela agressão do segurança o impede de alcançar as notas. “Minha voz não voltou, não pude trabalhar nem pela internet fazendo lives”, disse o músico expressando sua tristeza e desejando que a agressão sofrida não tenha afetado suas cordas vocais, seu instrumento de trabalho, definitivamente.

Após o que vivenciou nessas últimas semanas, conversamos sobre metas para o futuro. O músico disse que usaria esse momento para se reestruturar, revelando o sonho de voltar a estudar música, fazer mestrado, dar aulas e quem sabe se tornar maestro. Voltar para casa agora, segundo ele, era uma oportunidade de se reconectar com suas origens depois de tudo o que passou, para poder voltar com mais força. “Não vou desistir de lutar”, disse ele.

Sobre Ricardo Rodrigues

Ricardo Rodrigues, de 22 anos, apresenta-se nos vagões há cerca de 2 anos. Clarinetista autodidata, saxofonista, e músico de rua, tem em sua trajetória musical passagem pela EMESP Tom Jobim, atualmente estuda no Instituto Baccarelli e integra a Orquestra Juvenil de Heliópolis.

Ricardo, como músico de rua, defende o direito da produção artística nos espaços públicos como o metrô, já que esta devia ser garantida e defendida, diante da nossa Constituição Federal, pelo Estado. Por conta disso vê, não só como uma atitude desnecessária a agressão sofrida, como abusiva e desrespeitosa. O músico, atualmente ocupando espaços considerados acadêmicos e eruditos como a faculdade e a Orquestra, é apenas um dos tantos outros casos existentes entre os artistas de rua, que com talento, trabalho e dedicação, buscam por um espaço e oportunidade para trabalhar e viver por aquilo que amam.

Foi nos vagões da maior metrópole do país, São Paulo, onde mora, que encontrou um espaço de oportunidades e reconhecimento de seu trabalho. Atribui àquilo que conquistou até hoje na música à experiência adquirida nas ruas, tendo os passageiros do metrô como um dos grandes incentivadores do seu trabalho, reconhecido não só com os trocados como também com as palavras de apoio. “Vocês me tornaram alguém melhor, tornaram minha vida melhor e isso eu vou levar para sempre comigo. A todos, imensa gratidão”, declarou o músico em um post nas suas mídias sociais (@rodriguesmelodia) onde refletia sobre as surpresas e felicidades trazidas pelo ano de 2019.

Ricardo usa uma frase de Beethoven em sua descrição do Facebook, que descreve bem aquilo que artistas como ele, em espaços tão cinzas como os vagões de uma cidade que nunca dorme como São Paulo, conseguem proporcionar aos passageiros: “A música é capaz de reproduzir, em sua forma real, a dor que dilacera a alma e o sorriso que inebria” (BEETHOVEN, Ludwig Van). Os incentivos e reações positivas de seu público, os passageiros do metrô, é em resposta ao que consegue lhes proporcionar, naquele curto espaço de tempo entre uma estação e outra, e foi o que o motivou a continuar.

Sonhador, como se autointitula, Ricardo Rodrigues carrega o desejo de estudar fora do país e se tornar músico erudito, e luta por isso. “Você é o único representante do seu sonho na face da terra, se você não lutar por ele, quem irá?”, expressou o artista em um post.

O incentivo à cultura e arte e seus benefícios para a economia

A promoção de arte e cultura livre contribui para a formação de uma sociedade mais crítica e ativa, portanto, dentro de sistemas econômicos e políticos, é comum a tentativa de manipulação ou execução da arte.

O que afronta a cultura e a arte, e, por conseguinte, a civilização, é a reiterada prática de atos e pequenos gestos de desprezo a seu papel fundamental no desenvolvimento de uma nação. Cultura independe de formato ou status administrativo. Cultura e arte representam a sagrada expressão da voz de um povo, que nenhuma restrição de natureza artificial poderá fazer calar ou retroceder. Cultura é o modo de uma nação caminhar para seu pleno desenvolvimento. (AMARAL, 2019)

Oferecer acesso à cultura e arte é oferecer oportunidade para que a sociedade construa uma visão ampla e crítica sobre o mundo em que vive. As artes dentro de Universidades passam por processos de elitização e estatização, se moldando aos padrões que o sistema exige e se enquadram em áreas aceitas como comunicação, design e na academia. As artes de rua incomodam o sistema porque elas cutucam aquilo que mais lhe atinge, a visão crítica do meio em que vivemos. Mas se investir em cultura e arte é importante para um melhor desenvolvimento enquanto nação, não é ignorância tentar marginaliza-la? Sim, é. Grandes nações como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha possuem um investimento considerável dentro destas áreas.

Felipe Prikladnicki (2016) afirma que “as empresas associadas ao setor cultural tiveram R$ 374,8 bilhões de receita líquida em 2010, correspondendo a 8,3% do total de indústria, comércio e serviços.” De acordo com o Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil, em 2017 a indústria criativa foi responsável por gerar R$171 bilhões na economia do país, cerca de 2,6% do PIB do país no ano, assim como áreas de audiovisual, patrimônio e artes, música, artes cênicas e expressões culturais chegaram a empregar 106 mil neste mesmo ano.

Para Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, no evento Economia da Arte em 2019, “os dados que existem sobre a economia criativa são frágeis e desencontros. O país nunca teve uma estratégia para desenvolver a cultura. Precisamos que sociedade entenda a importância da arte para a economia”. Já Odilon Wagner, diretor e ator disse que “o desafio maior é parar de tratar a cultura como política de governo e transformá-la em política de Estado”. O advogado especialista em economia criativa Cláudio Lins de Vasconcelos diz que se o setor da cultura e da arte fossem um país, seria a 7º maior economia do planeta.

E se houvessem políticas para regularizar a atuação de músicos no metrô

De acordo com a lei que regulamenta a Política Nacional de Mobilidade Urbana, ela tem o objetivo de contribuir com o acesso universal, o desenvolvimento sustentável das cidades, assim como reduzir as desigualdades e promover inclusão social. Já o Código de Conduta e Integridade da Companhia do Metrô de São Paulo se diz ter como missão: “Oferecer transporte público com qualidade e cordialidade, através de uma rede que está cada vez mais perto para levar as pessoas cada vez mais longe”, tendo como visão:

Permanecer como a opção preferencial de transporte na região metropolitana de São Paulo, oferecendo serviços de qualidade e cada vez mais atentos às necessidades do cidadão. É com presteza, cordialidade, respeito que vamos tornar a viagem das pessoas uma experiência ainda mais agradável. (Companhia do Metropolitano de São Paulo)

Carrega ainda em seus princípios éticos a equidade (“promover a igualdade de oportunidades e desenvolvimento profissional”); responsabilidade (“integrar de forma equilibrada aspectos econômicos, urbanos, ambientais e sociais na operação e expansão da rede de transporte metropolitano”; além de respeito aos Direitos Humanos (“respeitar o direito à vida e à liberdade, a livre expressão e opinião, o direito ao trabalho, à educação, a diversidade e tratar igualmente as pessoas, sem preconceitos de origem, religião, raça, gênero, orientação sexual, cor, idade, ou quaisquer outras formas de discriminação.”).

O fato é que os artistas vão continuar atuando no transporte e se arriscando, não porque querem, mas sim porque é o meio que mais lhes garantem algum retorno e exibição de seu trabalho. Muitos tem a arte como sua única fonte de renda.

Levando isso em consideração, encontrar formas de regularizar as ações dos artistas no metrô seria colocar em prática tanto a Política Nacional de Mobilidade Urbana quanto o Código de Conduta e Integridade da Companhia do Metrô de São Paulo e mostrar respeito a nossa Constituição Federal de 1988, ao invés de agir contra os códigos estabelecidos, usando de força e agressão para tentar repreender a produção artística dentro de um espaço público, que deveria ser usado em prol de um melhor desenvolvimento social e estimular o sentimento de pertencimento na população da maior metrópole do país.

Fomentando o trabalho dos artistas conseguimos: proporcionar cultura, arte e momentos de prazer para os usuários do transporte público; trabalhar para promover a equidade social; e contribuir para que esses possam ter um espaço seguro e protegido para trabalhar, além de gerar retornos econômicos significativas para a concessionária e o Estado de São Paulo. Isso seria possível porque o metrô de São Paulo deixaria de ser apenas um transporte público, de passagem, e passaria a ser um espaço de cultura, arte e mobilidade, tornando-se um ponto turístico.

De acordo com um edital publicado pela São Paulo Turismo (São Paulo: Cidade do Mundo, 2017), São Paulo é considerada a capital de eventos

O mundo das artes e espetáculos ferve em São Paulo. Na cidade brasileira onde tudo acontece, o turista encontra mostras, espetáculos e diversas formas de arte espalhadas pela capital paulista. Há também roteiros para quem quer curtir outras opções de lazer da metrópole. (SPTuris – São Paulo Turismo, 2017, p. 19)

Um fato que vale destacar é a recente importância de dar atenção ao turismo regional. “Um turismo regional sólido, com foco na experiência, transforma turistas eventuais em constantes consumidores do destino São Paulo” (Viagem, turismo e eventos na cidade de São Paulo em 2016 e tendências para 2017, 2016, p. 8). Para a OTE (2016) esse é o momento de organizações que atuam nos setores de turismo, viagens e eventos juntarem-se com propostas criativas para a geração de novas oportunidades de negócios. Ela aponta como algumas tendências:

1. Busca por viagens a lugares próximos, assim como a valorização do regional;
2. Compartilhamento: promove a vivência no destino e o turista experimenta a cultura local com mais facilidade;
3. Experiência: a procura por viver o destino e não só visitá-lo;
4. Investimento na promoção e marketing de destinos; (OTE – Observatório de Turismo e Eventos da Cidade de São Paulo, 2016, p. 7).

Estamos falando sobre pensar no metrô não apenas como um canal de mobilidade urbana, mas também de cultura e turismo. Permitir músicos no metrô reforçaria o compromisso do Estado e da concessionária com a cultura e sociedade do seu país. Estamos passando por um processo em que cada vez mais essas características são valorizadas pelo consumidor do transporte, que busca em uma cidade como São Paulo, momentos em que possa sorrir e se surpreender após um dia cansativo de trabalho. Estamos falando de Marketing Cultural e Marketing de Experiência. Quando um artista aparece no vagão de surpresa expectativas são criadas, ao longo da apresentação, sorrisos e identificação são facilmente percebidos.

Os benefícios seriam não só intangíveis para o metrô e o Estado, como tangíveis. Se tem mais pessoas sentindo prazer em circular pelo metrô, mais dinheiro. Além disso, o metrô vive fazendo campanhas para que os usuários troquem suas moedas, em parceria com os músicos, que costumam receber muitas contribuições em moedas, esses esforços com as campanhas diminuiria. Sem esquecer que agora o transporte público tem como concorrente os aplicativos de transporte.

Ao invés de tentativas frustradas para encontrar formas de inserir projetos como Música+Metrô, que custou mais de R$39 mil por mês ao Governo do Estado e deixou os usuários insatisfeitos, o metrô estaria aproveitando a forte produção cultural que os próprios artistas possuem, de forma orgânica, acordado e quase sem custos.

Para os artistas os benefícios seriam ter um espaço seguro para trabalhar e expor seu trabalho, em troca, garantiriam a boa relação com os passageiros, que também é seu público, e proporcionar bons momentos, já que seguros e com liberdade para atuar, o fariam sem o medo e receio de serem percebidos ou agredidos por agentes de segurança.

É claro que um projeto mais detalhado e trabalhado, baseando-se nas possibilidades de Marketing Cultural, Marketing de Experiência e nas expectativas dos artistas e concessionária seria necessário para desenvolver essa ideia, mas esse esboço serve para vermos que ações são possíveis e amplas, basta que o Estado e concessionária estejam dispostas a incentivar projetos como este e oferecer espaços e oportunidades a artistas, para tirá-los da posição de “marginais” ou “baderneiros” que os colocaram.

Estamos caminhando para um modelo de economia colaborativa, onde ambas as partes atuam para um bem maior e as duas se beneficiam disso. Além disso, o consumidor, seja de transportes ou marcas, está cada vez mais aberto em contribuir para que isso seja possível, pois é uma forma de se sentir importante agindo e contribuindo para um bem maior. Ouvi certa vez de um usuário do metrô: “Eu não gosto de dar dinheiro sem ter um motivo, mas quando é um músico sei que ele está me oferecendo algo.”

Notas

[1] https://ponte.org/trio-de-musicos-e-agredido-e-algemado-por-segurancas-do-metro-de-sp/
[2] R7: https://noticias.r7.com/sao-paulo/videos/seguranca-do-metro-de-sao-paulo-da-gravata-em-musico-12052019 G1: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/05/11/video-mostra-seguranca-do-metro-dando-gravata-em-musico-na-estacao-se.ghtml
[3] https://noticias.r7.com/sao-paulo/video-flagra-agressao-a-usuario-do-metro-por-seguranca-em-sao-paulo-09042019
[4] https://noticias.r7.com/sao-paulo/video-homem-desmaia-apos-agressao-de-seguranca-do-metro-14102019
[5] https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2019/12/segurancas-do-metro-de-sao-paulo-abusam-de-violencia-contra-jovem-negro-de-14-anos-apos-abordagem-irregular/
[6] http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-15937-de-23-de-dezembro-de-2013
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[8] https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2017/05/dudh.pdf

Referências

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BATISTA, E. L. (27 de maio de 2019). Cultura precisa de dados e incentivos para ampliar impacto na economia. Fonte: Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/05/cultura-precisa-de-dados-e-incentivos-para-ampliar-impacto-na-economia.shtml
Câmera dos Deputados. (2012). LEI Nº 12.587, DE 3 DE JANEIRO DE 2012. Fonte: https://www.mobilize.org.br/midias/pesquisas/lei-de-mobilidade-urbana-lei-federal-1258712.pdf
Companhia do Metropolitano de São Paulo. (s.d.). Código de Conduta e Integridade da Companhia do Metrô. São Paulo, São Paulo, Brasil. Fonte: http://www.metro.sp.gov.br/metro/institucional/pdf/codigo_conduta_integridade.pdf
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DECRETO Nº 58.200, DE 19 DE ABRIL DE 2018. (2018). São Paulo, São Paulo, Brasil. Fonte: https://leismunicipais.com.br/a/sp/s/sao-paulo/decreto/2018/5820/58200/decreto-n-58200-2018-confere-nova-regulamentacao-a-lei-n-13241-de-12-de-dezembro-de-2001-que-dispoe-sobre-a-organizacao-dos-servicos-do-sistema-de-transporte-coletivo-urbano-de-passage
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