Por Manolo

Nestes dias de isolamento social, aproveitei um fôlego em meio à torrente de teletrabalho para reler uma biografia de Errico Malatesta, aquele velho anarquista italiano cuja vida é para muitos, e também para mim, um exemplo de coerência e compromisso. Cheguei a chamá-lo em certa oportunidade, jocosamente, de ”santo“. Malatesta foi um dos membros fundadores da Internacional na Itália nos anos 1870, foi um verdadeiro elo entre gerações de revolucionários. A biografia foi escrita por Luigi Fabbri, outro famoso anarquista italiano e amigo pessoal de Malatesta. Eis que reli nesta biografia um fato curioso, de que me lembrava vagamente, mas que na pandemia ganhou outro significado.

Malatesta era um revolucionário extremamente ativo, apesar de muito doente dos pulmões. Entre 1873 e 1874 participara de tentativas de insurreição em Castel del Monte, pelas quais foi preso e libertado. Em 1875 foi à Espanha fazer propaganda revolucionária em Barcelona, Cádiz, Madrid e outras cidades, além de consolidar a organização da Internacional e ajudar a libertar um companheiro preso. Voltou em menos de dois meses à Itália, de onde partiu ainda em 1875 para tomar parte na Rebelião Herzegovina contra os conselhos de seu mentor Mikhail Bakúnin. Preso, torturado, forçado a marchar até a fronteira com fome e frio, foi enviado de volta à Itália, onde até 1876 ajudou a organizar um congresso de internacionalistas que, realizado nos bosques ao redor de Pontassieve por causa da perseguição policial, definiu a vertente italiana do comunismo anarquista e da propaganda pela ação. Em seguida, Malatesta dedicou todo o seu tempo a organizar e a conseguir os recursos necessários para outra insurreição; diferentemente daquela de 1874, que pretendia sublevar a Itália inteira, esta teria como única função a propaganda pelo fato, na esperança de que seu exemplo inspirasse o campesinato italiano a sublevar-se. Partiram Malatesta e seus companheiros em meados de 1877 rumo ao monte Matese, na província de Benevento, para promover o levante, mas a polícia encontrou por completo acaso o depósito de armas na cidade de Cerreto, houve um tiroteio no qual a maior parte conseguiu fugir e esconder-se nos bosques, quando decidiram começar a insurreição assim mesmo. Percorreram vila após vila em fuga, até que entraram no povoado de Lentino com a bandeira vermelha e negra desfraldada, queimaram o cartório (inutilizando títulos de propriedade e contratos de dívida), destruíram o medidor da tassa sul macinato (um imposto sobre moagem de cereais), discursaram para a população sobre o socialismo, e partiram para outra aldeia — tudo quanto diz o velho manual revolucionário, porque foram eles, também, a escrever tal manual com sua prática. Assim seguiram, até serem cercados por 12 mil homens do exército italiano e presos. O levante do “bando de Matese” inspirou parte do filme San Michele aveva un gallo (1972), de Paolo e Vittorio Taviani. (Tem no Youtube, em italiano e sem legendas.) Tamanha atividade insurrecional, e a igualmente grande permissividade governamental, podem ser parcialmente explicadas pela proximidade com a brigantaggio, versão italiana do banditismo social — do qual, no Brasil, o mais conhecido é o cangaço nordestino — e, claro, pela memória dos feitos de Giuseppe Garibaldi nas guerras do Risorgimento, Garibaldi para quem “a Internacional é o sol do porvir”, que mantinha contato frequente com os internacionalistas italianos (e com Bakúnin) e que havia prometido participar do levante de 1874 se resultasse em algum nível sério de sublevação das massas.

Em seguida à anistia geral de presos políticos decretada após a morte do rei Vitório Emanuel II em 1878, Malatesta iniciou uma curiosa vida de exilado. “Curiosa” porque não agia como normalmente fazem os exilados, tentando influenciar desde o exterior a política de seus países de origem: Malatesta fazia isso, e também integrava-se às lutas locais, e ainda a outras lutas de que apenas ouvira falar. Esteve no Egito, na Síria, na Romênia e em Genebra, fundando associações de trabalhadores e sindicatos por onde passou, até que em 1879 estabeleceu-se na Suíça, de onde teve de fugir porque as autoridades locais estavam à sua caça por haver conseguido escrever e introduzir na Itália um panfleto atacando o rei Humberto I, que havia acabado de sofrer uma tentativa de assassinato. Malatesta fugiu então para a Bélgica e, pouco tempo depois, estabeleceu-se na Inglaterra — por pouco tempo, pois em 1882 retornou ao Egito para tentar fazer do levante nacionalista de Ahmed Orabi uma revolução social. Preso pelos ingleses, fugiu ainda outra vez, e retornou à Itália, onde, além de iniciar ainda outra vez sua participação na imprensa revolucionária, foi ao encontro de Carlo Cafiero, seu velho amigo dos tempos do “bando de Matese”, que a esta altura enlouquecera e encontrava-se internado no asilo onde viria a morrer poucos anos depois – momento retratado com estranha beleza no filme Malatesta (1970), dirigido por Peter Lilienthal e estrelado por Eddie Constantine. (Tem no Youtube, em alemão com legendas em italiano.) Com este currículo, Malatesta tinha apenas 29 anos — e o homem morreu aos 79, sob prisão domiciliar ordenada por Mussolini, verdadeiro atestado de seu peso político ainda nesta idade. É neste momento de fins da juventude que tem início o evento a que me refiro.

Malatesta encontrava-se em 1884 em Florença, respondendo em liberdade a um entre os tantos processos que sofreu em sua vida, quando, no verão daquele ano, irrompeu em Nápoles uma epidemia de cólera. Não foram poucos os revolucionários e os socialistas a apresentar-se como voluntários para ajudar os enfermos. Malatesta, que a esta altura da vida já trabalhava como mecânico e eletricista, por acaso estudara medicina na Universidade de Nápoles quando jovem, curso que abandonou no quarto ano para dedicar-se integralmente à causa revolucionária. Tinha, portanto, treinamento médico. Lançou-se à empreitada com tal dedicação que, segundo sua biografia escrita pelo velho amigo Luigi Fabbri, “confiou-se-lhe uma seção de enfermos, que deu a mais alta porcentagem de curados, porque [ele, Malatesta,] soube forçar a comuna de Nápoles a dar em abundância os alimentos e os remédios, que logo Malatesta distribuía sem economizar”. Tão grande foi a eficiência de Malatesta à frente do cuidado com os doentes que o governo italiano propôs condecorar Malatesta com uma medalha. Sua resposta? Recusou a medalha, reuniu os companheiros, escreveram juntos um manifesto demonstrando que “a verdadeira causa da cólera é a miséria, e o verdadeiro remédio para evitar seu retorno não há de ser outro senão a revolução social”. Malatesta retornou a Florença, o processo a que respondia resultou em sua condenação poucos meses depois, a policia cercou a casa onde vivia, ele escondeu-se na caixa de uma máquina de costura e fugiu rumo à Argentina — mas isto já é outra história, e o assunto que me interessa termina aqui.

Esta situação chamou minha atenção porque a atitude de Malatesta, nesta vez como em tantas outras, é exemplar. Nem Fabbri, que reli agora, nem outros biógrafos de Malatesta que li em outras oportunidades — Max Nettlau, Armando Borghi — entraram em qualquer outro detalhe sobre a participação de Malatesta no enfrentamento à epidemia de cólera em Nápoles. A partir do que disponho, a imaginação começou a agir para ligar os pontos, com base em outras informações.

No caso da epidemia de cólera em Nápoles, sob ameaça de prisão, em meio a intensa atividade de agitação revolucionária, Malatesta parou tudo para cuidar daquilo que, numa pandemia, é mais importante — a saúde coletiva. Abandonou o estudo universitário em medicina, mas seus biógrafos atestam como Malatesta permaneceu atualizando-se sobre o assunto de forma autodidata pelo resto da vida, assim como sobre história, filosofia e, como entusiasta do papel que novas tecnologias poderiam ter sobre a luta pela emancipação dos trabalhadores, física e química aplicadas, mecânica, aviação etc. Difícil, senão impossível, saber se o conhecimento autodidata de Malatesta em medicina era, para a época, avançado ao ponto de levá-lo a abandonar a teoria miasmática da disseminação de doenças — a contaminação pelos “maus ares” — em favor da teoria microbiana que vinha sendo paulatinamente construída desde a década de 1850; teria sido esta a causa da enorme eficácia de Malatesta no tratamento de seus pacientes? Não sei. Como disse, exceto talvez se sua enteada Gemma Melli ou seus sobrinhos Edoardo e Tristano soubessem de algo, trasmitido como uma espécie de folclore da família de geração em geração, os detalhes estão perdidos para sempre.

Outro aspecto interessante foi a atitude de Malatesta quanto à prefeitura de Nápoles. Teria sido Fabbri eufemístico ao dizer que Malatesta “soube forçar a comuna de Nápoles a dar em abundância os alimentos e os remédios”? Teria conseguido os alimentos e os remédios por, digamos, “meios revolucionários”? Ou teria sido por meio de alguma persuasão vigorosa? Os biógrafos de Malatesta apresentam muitos momentos em que ele soube impor sua vontade quando necessário, e outros em que soube perfeitamente bem tomar o tipo de atitude enérgica que certamente deixaria alguns “anarquistas” de hoje de cabelos em pé. Um sujeito com tamanha vitalidade e energia, que dois anos depois do episódio em Nápoles lançou-se à Patagônia em busca de ouro para a revolução, decerto não se deixaria abater por um prefeitinho de merda. Especulações à parte, a atitude fala por si: frente à luta pela saúde dos trabalhadores, pautado pelo conhecimento médico, confrontar as autoridades se necessário, mesmo em situação de epidemia. Importa a saúde, importa que os trabalhadores estejam bem, ainda que pela simples solidariedade com outros seres humanos diante de uma calamidade. Um revolucionário é antes de tudo um humanista, ou não é.

Um último aspecto é duplo: a recusa à medalha e o manifesto publicado por Malatesta e seus companheiros ao saírem de Nápoles. É possível que alguém encontre cópia deste manifesto em algum arquivo napolitano, ou mesmo no Instituto Internacional de História Social de Amsterdã, quem sabe entre os papéis de Max Nettlau (o “Heródoto da anarquia”) que por lá estão custodiados. Possível, não certo. Mesmo uma versão online do jornal Le Révolté de dezembro de 1884 que noticia a ação dos internacionalistas em Nápoles apenas menciona o manifesto por meio de paráfrases. Certa, apenas, a frase recortada por Max Nettlau e citada por Luigi Fabbri: “a verdadeira causa da cólera é a miséria, e o verdadeiro remédio para evitar seu retorno não há de ser outro senão a revolução social”. Que teria Malatesta querido dizer com isto, além do óbvio? Seriam as habitações proletárias napolitanas — bem piores que as favelas de hoje — focos de miasma? Sabe-se hoje, graças à teoria microbiana do contágio, como a falta de saneamento básico influi na proliferação do cólera — mas seria Malatesta, já àquela altura, defensor da teoria microbiana? Mais uma vez, impossível saber. Importa saber que Malatesta e seus companheiros radicaram no social a causa de uma epidemia. Mais importante ainda: deixou para depois da epidemia qualquer reflexão sobre o assunto. Melhor dizendo: sua reflexão sobre o assunto foi apresentada ao público depois, e somente depois, de Malatesta e seus companheiros — dos quais morreram Rocco Lombardo e Antonio Valdre — terem se engajado como voluntários para cuidar da saúde dos trabalhadores. Prática primeiro, teoria depois. É certo que a crítica publicada foi precisamente o que, antes de qualquer coisa, animou os anarquistas que se voluntariaram para cuidar dos contaminados pelo cólera, mas tudo indica que optaram por cuidar primeiro das medidas práticas para garantir a saúde dos napolitanos, e depois, com a reputação, com o prestígio, com o “capital social” auferido pela ação, transformar sua crítica prática em documento público.

Não se diga que Malatesta colocou seu conhecimento médico à disposição para cuidar dos trabalhadores napolitanos por abstrair-se, neste momento, da luta de classes. Não, Malatesta não era um “inocente”. Estamos falando do mesmo homem de espírito prático que, em 1914, disse o seguinte a seu amigo Piotr Kropotkin, que resolvera apoiar a França contra a Alemanha logo no início da Primeira Guerra Mundial: “parace ter esquecido o antagonismo das classes, a necessidade da emancipação econômica e todos os ensinamentos anarquistas, e diz que um antimilitarista deve estar sempre disposto, em caso de guerra, a pegar em armas para defender ‘o país que seja invadido’; isto, considerando a impossibilidade, ao menos para o trabalhador comum, de verificar a tempo quem é o verdadeiro agressor, significa praticamente que o ‘antimilitarismo’ de Kropotkin deve sempre obedecer às ordens de seu governo. Depois disto, que resta do antimilitarismo e, também, do anarquismo?” Malatesta não era um inocente, repito. Na minha leitura, com base nos poucos fragmentos de evidência de que disponho sobre sua atuação frente à epidemia napolitana de cólera em 1884, Malatesta agiu para que a classe trabalhadora não fosse fisicamente dizimada pela doença, porque a saúde dos trabalhadores era — e é — condição sine qua non para sua ação política.

Isto é ser político, é ser revolucionário, num nível muito profundo, muito além da conversa mole.

Ilustram este artigo pinturas de Flavio Costantini

6 COMENTÁRIOS

  1. VADE RETRO, BOLSONAVÍRUS!
    Oxente: nosso camarada soteropolitano quebrou a gabiroba & basculou a caosmose!!!

  2. mais um texto muito lúcido. Obrigado por compartilhá-lo Manolo!
    A concretude de tantas biografias anarquistas são um remédio ao esquematismo de certas “praxis” marxistas. Tudo em nome da linha correta.
    Na vida não existe nada muito correto.

  3. Muito interessante:
    Malatesta teria sido um caso raríssimo de alguém de formação médica que teria superado a teoria do miasma, então aceita, de que as doenças eram transmitidas pelo ar? Ou, temas não colocados pelo Manolo, mas que possuem então repercussão, de que as doenças teriam origem exclusivamente no equilíbrio entre as recém descobertas células (um reducionismo violento com a teoria de Virchow).
    Ou ainda, menos provável teve contato com o trabalho de Ignaz Semmelweis, o médico destroçado publicamente por Virchow que descobriu que lavar as mãos diminuem as mortes ou ainda, menos provável ainda, teira malatesta tido contato com a teoria microbiana e desenvolvido a partir daí inferências sociais, ligadas às condições concretas de vida?
    Mas há ainda outra hipótese, que não me alongarei, mas que se trata do modo como o eugenismo e o higienismo eram vistos e entendidos na época, na medida em que as teorias tinham um fundamento neolamarckista e por isso fundamentado em uma relação com o ambiente e não por mutação ou exclusivamente por seleção, isso significava que ao modificar as condições sociais, modificavam-se as condições físicas das pessoas. Não raro, muitos socialistas, liberais e progressistas da época acreditavam nesta teoria sem toda a carga que teira posteriormente com a modificação do mecanismo da transmissão de variação biológica na espécie, como no início do século XX em que a palavra praticamente muda de sentido.
    Mas como o autor comenta, precisaríamos de mais elementos do pensamento de Malatesta sobre o tema para compreendê-lo.

  4. “Um revolucionário é antes de tudo um humanista, ou não é”.
    Bela frase. Me lembra de Andrea Costa, amigo de Malatesta, que nos anos da Primeira Internacional defendia, em sentido revolucionario, a “humanizaçao do homem”.
    Obrigado por compartilhar esse texto.

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