Por Passa Palavra

Traduções: Espanhol

Izabel Cristina Firmino é técnica de enfermagem há 26 anos no hospital Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense, já trabalhou em vários setores e é coordenadora sindical do Sintuff, Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal Fluminense (minoria). Nos últimos anos o hospital teve sua capacidade reduzida de 450 para 160 leitos. Na entrevista ela fala sobre os desafios de combater a pandemia em meio à precarização do SUS, da falta de preparo dos gestores que não tinham um plano. As trabalhadoras começaram a discutir por si próprias e a cobrar de segurança para ter insumos e Equipamentos de Proteção Individual. Essa entrevista foi feita no início do mês de abril e sem dúvida a situação no Rio de Janeiro se deteriorou muito de lá para cá, confirmando muitos dos prognósticos traçados na entrevista.

Passa Palavra — Conte para a gente como estava a preparação do Hospital Antônio Pedro para a pandemia.

Izabel Cristina Firmino — A gente começou a perceber que a quantidade de material que tinha até então seguia o fluxo de atendimento normal, não de um hospital que tinha que começar a se preparar para os prováveis pacientes com COVID-19. Então, a gente começou a perceber que não tinha material para todo mundo. Como se fosse colocar o CTI, a UTI neonatal e adulto, que tem de ter esse material regularmente, a emergência e o próprio centro cirúrgico, numa situação normal. Os EPIs estavam sendo suficientes, mas em uma situação com o COVID começou a não dar.

Não acho que seja um problema só do hospital Antônio Pedro, acho que é de todos os HUs [Hospitais Universitários], dos hospitais do Ministério da Saúde e da saúde como um todo. Tenho colegas que trabalham em outros lugares e me dizem a mesma coisa que está acontecendo na rede de hospitais federais. Tem lugares que estão até piores porque não têm nem mesmo a N95 e estão trabalhando com duas máscaras cirúrgicas. A gente tem uma crise muito grande de insumos. Desde que entrou a EBSERH [Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares] deu para perceber um nível de insumos de péssima qualidade. A máscara de péssima qualidade, a luva de péssima qualidade e falta medicação. Estamos em uma situação onde a nossa rotina é não ter grande quantidade de material e sempre faltar alguma coisa.

PP — A pandemia colocou em evidência uma precarização que já existia?

Izabel — Isso mesmo. A pandemia agora vai colocar em evidência o desmonte de saúde como um todo. Agora vão perceber que não tem a quantidade de insumos que deveria ter, muito menos em um hospital para atender uma pandemia. Vão começar a perceber que não existem leitos suficientes, vão começar a perceber que o número de leitos para CTI é insuficiente, já que os casos mais graves vão precisar de CTI para intubar e não vai ter.

PP — Você poderia falar das iniciativas que tem feito entre os trabalhadores para lidar com a pandemia.

Izabel — Nós temos um grupo de WhatsApp da enfermagem onde o pessoal está fazendo vaquinha porque a gente que é do ambulatório. Como não somos considerados de grupo de maior risco, não temos recebido material. Isso é uma imbecilidade, mas, na hora de dar a N95, eles só vão fornecer para os que ficam em setores fechados e para nós vão dizer que precisamos usar a máscara cirúrgica. Só que a máscara cirúrgica que eles colocam à nossa disposição, na nossa opinião e na opinião de quem pesquisou, porque nos demos ao trabalho de pesquisar, não é o tipo que deveria ser utilizada.

As UTIs e o CTI, estava tudo tranquilo, em termos de material eles estavam bem. E aí a gente tem de levar em consideração que parte desses funcionários que estão nesses setores são funcionários também da Ebserh, e esses funcionários não reclamam muito. Porque, há um tempo atrás, tiraram os funcionários RJU [Regime Jurídico Único] dos setores onde pode dar muito problema. Então, por exemplo, no CTI hoje, a gente quase não tem mais RJU de nível médio, a maioria é todo mundo da Ebserh. Tem as chefias que são no RJU. Que é diferente do Centro Cirúrgico, onde a maioria é RJU.

Então, no dia da nova paralisação, quem era da Ebserh estava meio assim, com medo. Mas aí o pessoal RJU falou assim: “ninguém vai entrar na sala! Não vai! Não vai entrar ninguém porque nós não vamos deixar!” Aí o pessoal ficou meio assim, mas, como eles eram maioria, eles ficaram na deles — tipo assim: “vamos ficar na nossa, porque se a gente colocar o pé lá dentro, vai dar merda! Porque a coisa ficou tensa!” Então assim, a gente sabe que tem alguns setores que a gente vai ter de descobrir se está tudo certo, a partir da camaradagem mesmo, a partir do momento que ele [o trabalhador] ver que a vida dele está em perigo. Porque o profissional de saúde que não está tendo os equipamentos, os EPIs disponíveis para se resguardar. Ele sabe muito bem que vai ser porta de entrada de doenças, pode tanto desenvolver doenças quanto ser transmissor.

PP — Então mesmo na área da Saúde os trabalhadores, para conseguir garantir uma segurança para eles e para os pacientes, estão tendo de lutar para isso?

Izabel — A gente não somente está fazendo isso, estamos fazendo além das orientações que recebemos. Estamos exigindo que as chefias passem para as chefias das terceirizadas. Por exemplo, cada setor desse tem gente terceirizada e a gente sabe que a responsabilidade de esclarecimento de EPIs para esses trabalhadores terceirizados é da firma deles. Então, a gente tem de ficar em cima! Porque senão… As duas primeiras pessoas que ficaram doentes, que ficaram internadas — inclusive tem uma no tubo — são terceirizados.

Um está num estado razoável, não está precisando de intubação, está com ventilação, mas só oxigênio. E o outro está intubado. Agravou a situação dele depois do carnaval para cá, e aí mais de quinze dias de internação… Continuam internados. Estão lá no mesmo lugar. Uma que está razoável, sem intubação e só no oxigênio, e outro que está intubado, que agravou a situação dele depois do carnaval e aí mais de 15 dias de internação.

PP — Quais outras ações vocês têm tomado?

Izabel — Nesses quinze primeiros dias, já que agora vamos entrar na terceira semana, a nossa batalha tem sido essa. Tanto dos trabalhadores quanto das duas diretoras de setor. Fazemos o levantamento das demandas de cada setor, entramos com um pedido judicial para que os hospitais providenciem EPIs em número suficiente para a gente poder resguardar a saúde dos trabalhadores. O Sintuff quem entrou, mas quem está na linha de frente somos nós, porque será uma ordem judicial, um papel que vai demorar um tempo na justiça ainda para ter resposta.

PP — E por que teve essa solicitação judicial? Houve alguma negativa do hospital em fornecer materiais?

Izabel — Sim, foram várias denúncias recebidas pelo Sintuff de EPIs insuficientes ou inadequados. Porque, para além do que conseguimos ver, as pessoas que são sindicalizadas começaram a questionar, a perguntar. Ligaram para o diretor que conhece e também outros que questionaram. São pessoas que querem trabalhar, mas querem se resguardar. Eu estou na minha casa e, quando vou para a universidade, eu quero ter luva, eu quero isso e aquilo, porque no momento não tem. Então foi uma ação do Sintuff com relação a vários trabalhadores da universidade, principalmente trabalhadores do hospital.

PP — E o que você acha que explica essa recusa de ir atrás desses EPIs?

Izabel — O que eles disseram para nós é: “a gente tem o dinheiro e não tem EPIs para comprar, então estamos esperando doações”. Isto, segundo eles, é também a situação de outros lugares, que tem o dinheiro, mas não o insumo para comprar. Mas alguns ficam presos no almoxarifado por conta de uma das diretoras e ela não diz para onde vai. Então estamos questionando, fomos três vezes na sala dela e ela não nos atendeu, enviamos um ofício e, quando chegou na última sexta-feira, durante uma reunião, ela foi a uma outra reunião não sei onde e não pode responder ao nosso questionamento, o questionamento dos trabalhadores.

Temos falado para a chefia: nós queremos álcool em gel, luvas, máscara cirúrgica e, quando vamos ao almoxarifado, dizem que só libera sob a ordem da doutora. Então eles estão retendo e distribuindo só para os setores que eles consideram os setores que necessitam mais. Aí, com isso, o que está acontecendo? A própria enfermagem, a partir deste final de semana, começou a pesquisar na internet e conseguiu encomendar e pagar o próprio EPI para não ficar descoberta, porque não começamos nem a imaginar o pico da epidemia.

PP — Mas como foi definido quais seriam os setores mais importantes? É uma coisa técnica? É política interna?

Izabel — Não, é uma decisão técnica. Porque esses são os setores que recebem os pacientes mais graves e com as doenças mais complicadas de se resolver. São os CTIs, a UTI, a UTI neonatal, o CTI de grupo, o DIP, a emergência (que seria o primeiro lugar onde passariam os pacientes antes da sua situação se agravar e irem para o DIP). Então, segundo eles, estão guardando os EPIs porque esses seriam os setores que mais necessitariam. Apesar disso, sabemos de orientação do Ministério da Saúde, da ANVISA [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], de todos os órgãos de saúde e de tudo aquilo que pesquisei. O próprio Albert Einstein, que é um hospital privado, dá a orientação de que os EPIs devem ser distribuídos para todos. Desde o funcionário que recebe o paciente com doenças transmissíveis por aerossóis (e não estou nem falando só da COVID). E o que é o aerossol? Depois que a pessoa espirra, não é aquela gota de cuspe, é aquilo que você não consegue ver e que se espalha em volta da pessoa depois que ela espirra. Você pode não se molhar, mas não é só aquilo que molha e sim aquilo que espalha. Então se entende que existe o risco desses aerossóis contaminarem dentro desses setores.

PP — Mas existe contato entre os profissionais dos setores desprotegidos com os setores protegidos?

Izabel — Claro que tem. O cara do ambulatório, ele recebe o paciente, vai até a emergência para levar o paciente, o próprio maqueiro ou o outro que empurra a cadeira, aqueles que transitam com os pacientes para dentro do hospital. Durante o tempo que ele está transitando a orientação que temos é de colocar a máscara cirúrgica no paciente com qualquer sintoma de gripe. A gente coloca a máscara para poder transitar com ele por dentro do hospital. Então nas normativas do MS [Ministério da Saúde], da OMS [Organização Mundial da Saúde], todas elas dizem que desde a porta de entrada até o lugar final para onde o paciente vai é necessário o uso da N95. É da porta de entrada até o lugar final. A gente sabe que é obrigação da gestão e nós vamos continuar cobrando: cadê a máscara, cadê isso, cadê aquilo? O conjunto completo, os EPIs completos, o álcool em gel que não estão fornecendo, que a gente pede pelo amor de Deus. Eu trabalhei com dez gestantes de alto risco, comecei a trabalhar cedo, 7h30 elas começaram a chegar, eu fui pesar, medir a pressão, não tinha álcool em gel, não tinha máscara, e eu tive de atender as dez pacientes sem proteção. A hora que chegaram, as pacientes já tinham ido embora. Isso colocou minha vida em risco, também colocou as pacientes, porque, a cada uma que entra e sai, a gente não sabe o que tem além da gravidez de alto risco. São essas coisas que a gente discute.

PP —Você pode explicar melhor como está no ambulatório?

Izabel — O ambulatório agora é a porta de entrada do hospital. Somos nós quem está recebendo pacientes que precisam continuar seus tratamentos e também pacientes com algum tipo de sintoma relacionado a gripe, que pode ser H1N1, uma gripe normal, mas também pode ser COVID-19. Nós não estamos trabalhando com o equipamento necessário. Alguns companheiros foram colocados no ambulatório para dar máscaras e luvas, para medir a temperatura de pacientes. Na minha opinião deveriam estar usando a N95.

Outra coisa, é a questão da orientação, porque, se você tem material numa época que não é de desespero e você utiliza uma N95 e chega no final do plantão você joga ela fora. No outro plantão pode ser que você tenha a N95 porque o hospital está trabalhando no seu normal, mas em uma situação dessa não pode ser desse jeito. Aí entra a CCIH [Comissão de Controle de Infecção Hospitalar] que é responsável por todas as orientações com relação a uso de material, as doenças que entram, a quantidade de doenças que [os hospitais] recebem num determinado tempo. Eles são os caras que são pesquisadores dentro do hospital, que deveriam estar preparados para atender numa epidemia, até uma pequena, como por exemplo de dengue. Isso é outro agravante, durante a pandemia: nós vamos ter uma epidemia de H1N1 e nós vamos ter uma epidemia de dengue.

Então a CCIH tem de estar preparada para isso, porque todos os dados que são usados pelos órgãos oficiais, que vão dizer a ela que pode ter casos de zika, casos de dengue, casos de dengue hemorrágica… Eles têm de estar à frente do hospital para fazer com que a gente saiba orientar, seja treinado, em relação inclusive ao uso das máscaras. Porque, a N95 não pode ser usada de qualquer forma, ela tem uma grande vida útil, mas ela só tem uma grande vida útil se você for orientado a utilizar ela de uma forma que ela tenha. Só que a maioria dos funcionários com quem a gente do sindicato conversou – e nós fomos de setor em setor – não sabem utilizar direito. Aprenderam a usar a máscara no dia, acabou o plantão, pega e descarta, e isso não pode ser feito nesse momento que a gente está vivendo.

PP — De que forma você acha que as pessoas que não trabalham no hospital podem apoiar e colaborar com os trabalhadores da saúde para diminuir o número de mortos dessa epidemia?

Izabel — Tem uma coisa sim que eu já vi que a UFRJ está fazendo, um grupo de voluntários da faculdade de engenharia está fazendo as máscaras de acetato que cobrem da testa até mais ou menos o queixo. Parece que a faculdade de engenharia da UFF, eles montaram um grupo de estudantes e estão fazendo essas máscaras. A UFRJ, a faculdades de farmácia e, também, a farmácia da UFF, estão fabricando álcool em gel a 70%, porque não basta ter o álcool em gel, ele tem que estar a 70% para eliminar o coronavírus.


PP — Então, seria para paralisar as atividades e direcionar a prioridade de produção para saúde?

Izabel — É, porque, por exemplo, essa atividade da Faculdade de Engenharia, a Universidade está fechada, mas eles mesmos entraram e estão trabalhando para fazer essa tal máscara. Na UFRJ, como são da farmácia, e é um local de serviço essencial, eles estão produzindo para a própria rede de hospitais, por que a UFRJ tem mais de um hospital. Eles não são EBSERH, eles são gestão da própria universidade, mas [a] situação também está ruim.

PP — Você sente que a postura do governo federal de negacionismo, minimizar, impacta ali no chão do hospital?

Izabel — Impacta, impacta com o seguinte, não digo nem direto no hospital não, mas impacta na sociedade e a gente está com muita preocupação em relação a isso. Por exemplo, a gente está o tempo todo falando, se você for na rede social da galera que é do hospital, está todo mundo colocando “fica em casa! Eu estou saindo para trabalhar para você ficar em casa!” Quando a gente está indo trabalhar, a gente está vendo um monte de gente que não é da área de saúde indo trabalhar. Por exemplo, estou pegando o trem às cinco horas da manhã, porque a UFF colocou um ônibus para transportar a gente lá da Central do Brasil para Niterói. O governo estadual cortou a circulação dos ônibus intermunicipais aqui no Rio de Janeiro, para restringir a circulação das pessoas. Só que a Supervia diminuiu o número de trens e as pessoas continuam saindo, então o trem passa lotado, um encostando no outro, isso de madrugada. Eu estava me perguntando essa semana quem são essas pessoas? Trabalhadores da construção civil e empregadas domésticas, uma população majoritariamente pobre e preta. Como eu escutei essa semana: “A patroa quer que eu vá. Ela se tranca com os filhos no quarto, eu visto uma roupa, vou lá e limpo o banheiro, passo uma vassoura, faço a comida — tenho que pôr máscara para fazer comida. Depois que eu termino tudo, aviso ela que estou indo embora, aí que ela sai do quarto”. É assim, isso é o relato de uma pessoa no trem, são pessoas que, se não forem, vão ficar sem receber.

Por mais que o governo estadual esteja tentando controlar essa situação, a postura do governo federal, como está sendo a postura do Bolsonaro, é completamente irresponsável. Eu saí agora de manhã para tomar a vacina e tinha feira livre aqui perto, que semana passada não teve. Tinha gente com criança, passeando com cachorro, um monte de gente idosa. Abriu farmácia, abriu casa de material de construção. Está abrindo tudo. Acho uma falta de responsabilidade, você vê as declarações do cara completamente sem base. Baseado em quê? Em nada. Por que todo mundo, inclusive no próprio governo dele, o próprio Ministro da Saúde, por mais pano que tenha passado na declaração dele na semana passada, está dizendo: “O isolamento horizontal é o método mais eficaz de evitar a transmissão do vírus”. Então, o cara, ao invés de tomar uma atitude para poder evitar que a doença se instale. Vem o presidente da República e fala um monte de merda na televisão, diz que está preocupado com o cara do churrasquinho que não vai conseguir vender o churrasquinho, mas não pode vender o churrasquinho, não pode! Ao invés de estar tomando medidas, de propor para [a] Câmara [dos Deputados] políticas como o Bolsa Família, algum tipo de política para manter essas pessoas dentro de casa. Ao invés de garantir dinheiro para elas poderem se alimentar, ter os materiais de limpeza, porque você precisa ter uma higiene dentro de casa, quando você saí você entra. O problema é maior nas comunidades, onde as pessoas moram aglomeradas e essa é outra preocupação, que a doença começou a atingir as comunidades e a gente não tem noção… Melhor, a gente tem noção sim, vai pegar muita gente.

PP — Entrando nisso, então, se continuar do jeito que está, você, como trabalhadora do hospital, o que você acha que vai acontecer?

Izabel — A gente vai ter uma Itália, só que uma Itália com a extensão do Brasil. O que aconteceu na Itália é que a população ficou na ruas, mas não foi culpa da população, o governo não tinha uma orientação firme para a população, de isolamento social. Em um país que tem o tamanho, digamos assim, do Maranhão não conseguiu ter o controle sobre a doença, tanto que hoje na Itália são cem mil casos e onze mil mortes, então você imagine isso na proporção do Brasil. PP — Na Itália começou a ter isso de ter de escolher quem vai receber UTI, quem não. Você acha que vai ser assim no Brasil?

Izabel — Isso aqui no Brasil a gente já faz [desde] antes de pandemia. Eu fui intensivista durante 16 anos, já vi ter de escolher, ter de tirar o tubo antes do tempo porque outra pessoa está precisando. Isso não é uma novidade no país, não é uma novidade. Já vi “fulaninho está melhorzinho, vamos tirar ele do tubo bom e botar no pior. Porque o outro precisa do tubo”. Com certeza, eu tenho uma mãe de 76 anos, desde que eu voltei de Brasília eu não fui ver nenhuma vez minha mãe, ela está com meu filho que tem 19 anos. Eu estou orientando e não vou na casa da minha mãe porque eu sei. Minha mãe pegou uma gripe muito forte ano passado, ela já está com a capacidade pulmonar comprometida, ela é hipertensa. Se ela pegar uma doença dessas, vou ter dificuldade para arrumar tratamento para ela, e, se tiver tubo, com certeza não vai ser para ela. Tanto que uma companheira nossa de trabalho com 65 anos, ela trabalhou na primeira semana e a gente falou: “entra de licença agora! Porque, se acontecer alguma coisa com você, sabe muito bem o que eles vão fazer, aliás, o que eles não vão fazer”. Não tenha dúvidas, se começar o pico da doença, as pessoas começarem a adoecer, a COVID-19, dependendo da parte respiratória e da saúde da pessoa, aquelas que tem mais idade, cardíaco, hipertenso, diabético, a tendência dos sintomas é piorar muito rapidamente, a doença evolui muito rápido. Na semana passada, as meninas disseram que entrou um paciente que era funcionário lá do hospital, aposentado, ele era do raio-x. Ele fazia acompanhamento na clínica, estava com uma broncoscopia, ele chegou no hospital, não se sentindo bem. Pegaram uma cadeira de rodas, colocaram ele na cadeira de rodas, mas o pessoal achou que ele estava muito estranho, abatido. A enfermeira veio, colocou uma máscara nele, porque ele estava com o nariz escorrendo. Ele subiu para fazer o exame de broncoscopia: assim que deitaram ele, teve duas paradas cardíacas, não conseguiram reverter e ele morreu. Colheram o sangue, para saber a causa mortis, para saber se ele estava com a COVID, ou não. Mas ele era um paciente que a situação dele de saúde, provavelmente se for COVID-19, proporcionou a morte dele de maneira muito rápida, porque ela desenvolveu muito rapidamente, uma hora e meia, duas horas. Se a pessoa não tiver um bom acompanhamento, ela pode morrer mesmo. A evolução é muito rápida. Você pode até intubar, e ela vai evoluir e pode até morrer. Por conta do restante do corpo.

PP — Você acha que está tendo subnotificação? Dos casos?

Izabel — Tem muita subnotificação. Hoje no Brasil são 4.371 casos, até agora à tarde. Isso com a contraprova, que demora sete dias para ficar pronta. Mortes, são 141 mortes por Covid hoje, mas a gente acha — acha não, tem certeza — que está subnotificado. Pela dificuldade que os lugares têm de ter acesso ao teste, pelo não diagnóstico precoce, por conta do sucateamento da rede. Onde eu moro tem uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] e uma clínica da família, tem mais de 100 bairros aqui do Rio que não têm nem uma coisa, nem outra. No que o cara percorre, com dificuldade, dois, três bairros para encontrar um lugar para poder ter atendimento e ele está com aqueles sintomas, significa a piora dele. A gente não sabe, se ele morrer, como que vai entrar a contagem dele, se vai fazer o teste, se tiver como colher e como essa notificação vai entrar…

Tem a questão dos testes, a gente não tem teste rápido no Brasil ainda, , então toda a testagem que está sendo feita lá no hospital, está sendo feita só para os pacientes que têm os sintomas gripais. Colhe, manda para [a] UFRJ, que é quem está responsável por fazer esses exames, mas o resultado só sai sete dias depois. Então, se o paciente chega hoje e o resultado só sai em sete dias, um monte de coisa acontece no meio do caminho. Inclusive, você não teve como avisar, se o cara era trabalhador de churrasquinho, a família. Por isso que o teste rápido ele é muito importante. Porque chega, faz o teste rápido, já denuncia, já avisa a família, coloca todo mundo de quarentena, entendeu? É muito melhor.

PP — Se uma família que perdeu parente, ou uma pessoa que perdeu alguém querido, a suspeita que é COVID. Você acha que faz sentido ela reivindicar o teste depois?

Izabel — Eu acho que sim. Em outros países, quando tem caso na família, todas as pessoas que estavam naquele mesmo lugar, com a pessoa que foi identificada, entra, de quarentena e é feito o teste em todo mundo. Essa é a orientação da OMS, para o mundo inteiro. Se no Brasil não estão fazendo, é porque não tem teste para todo mundo. É uma segurança da família. Além do teste, você tem de dar uma rede minimamente funcional. Quais foram as ações positivas que o governo aqui do Rio já fez? Tirar dos hospitais, das UPAs, das clínicas da família, tudo que não é fundamental. Porque para além da COVID a gente vai enfrentar outras duas epidemias, a gente já está sabendo: a de H1N1 e vai entrar uma de dengue. Então, isso foi um acerto. A maioria dos hospitais estão livrando leitos, dando alta para os pacientes que é possível, para abrir espaço para receber os pacientes exclusivos da Covid. Agora, o que falta? Equipar os hospitais. Estou ouvindo dizer que eles vão fazer hospitais de campanha. Aqui no Rio parece que vai ser o Maracanã com a capacidade de 200 ou 300 leitos. Na minha opinião, eles estão se mexendo para fazer alguma coisa, mas o principal é meterem a mão no bolso. Não tinha de estar discutindo 600 reais, já era para estar sendo colocado — na rede que eles têm cadastrado do Bolsa Família — a ajuda de custo. Eu acho 600 reais ridículo, mal dá para — dependendo do tamanho da família — fazer uma compra razoável, mas o presidente da república está pensando ainda, me parece que a Câmara e o Senado já aprovaram e disseram que está para assinar isso hoje. Agora, quando que vai ser distribuído isso, eu não sei. A primeira medida para tirar o povo da rua, gente, é dizer para ele que ele tem de ficar em casa, mas que ele tem como se manter em casa. Se o cara não tem como se manter em casa, ele não vai ficar dentro de casa passando necessidades. Isso a gente está vendo nas ruas, aí junta com a irresponsabilidade do presidente dizer que não é assim, que não é assado. O resultado é que hoje eu vi gente que estava ciscando na rua, de bobeira.

PP — Tem algo mais que você gostaria de falar?

Izabel — Só é importante registrar que a realidade que eu estou te retratando é a realidade do HU da UFF, mas é — provavelmente — a realidade de todos os HUs, é a realidade dos hospitais universitários do Ministério da Saúde, e a realidade dos hospitais municipais, a realidade do Sistema de Saúde. Agora a população vai conhecer, vai saber de fato, o que todos esses governos deixaram de fazer com o SUS, agora nós vamos pagar o preço dessa tentativa de acabar com SUS, de todos os governos. Principalmente o governo do PT que entregou os Hospitais Universitários na mão dessa gestão privada, que serviu para desvio de dinheiro. Na UFRJ, que não é EBSERH, e está na mesma situação, então a questão é privatizar, acabar com a saúde pública para beneficiar os tubarões da saúde e agora a gente vai pagar. A população vai ver toda a precariedade do SUS, todo mundo vai sofrer. A gente, como trabalhador de saúde, vai tentando, minimante, fazer com que as pessoas tenham um tratamento digno. Essa é a fala de todos os profissionais, mas também a nossa preocupação de preservar nossa saúde, porque na Itália foram 14% dos profissionais de saúde que adoeceram com COVID-19. Então tem razão de a gente querer colocar máscara? É claro que tem. A gente não tem garantida nossa segurança, nenhum trabalhador da saúde, seja ele dos HUs, do Ministério da Saúde, das prefeituras, do estado. A gente está em uma situação muito complicada e a gente precisa dizer para [a] população, que está… foda. Sei que você não vai colocar isso aí, mas é como está. Não está fácil, a gente está muito preocupado. Muito mesmo.

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