Por Gil Felix

Se realmente há algo memorável no 1º de maio deste ano é o consenso. Mas isso não tem muito de novo, daí o legado da greve e da denúncia desde 1886. De novo mesmo é que ele é um consenso praticamente unívoco, com instrumentos de dominação hegemonista distintos daqueles dos últimos 30 anos. E radical; do radicalismo a sério, que advém das condições, mais do que das contingências. Não é só discurso, blefe ou efemeridade. Não se trata só de matar os chamados “líderes”, os mártires — é para matar todos.

A ordem de Bolsonaro é clara e explícita. Não avança no sentido de uma ruptura e autogolpe por conta das atuais limitações de seus seguidores que, até o momento, se limitaram a um apelo sem eco no generalato, e da sua própria ojeriza aos trabalhadores e aos pobres em geral. Mas esse é o único isolamento político que ele enfrenta, de fato, em termos de ação política, quando defende o discurso da ditadura da exploração do trabalho em tempos de risco de infecção e morte dos trabalhadores pelo novo coronavirus. Na verdade, a agenda política que o sustenta é morbidamente consensual. E, na prática, avança a passos largos, por exemplo, com as reformas, que, como todos sabem, não são novidade, como é o caso das principais, na regulação de Estado da previdência social e do trabalho formal. Também não é novidade que são mundiais, demonstram a totalidade da nossa atual sociedade de classes e, em especial, encurtando o assunto, o sentido da acumulação de capital hoje. Mas sobre isso cabe uma ressalva sociológica, em dois tempos — em circunstâncias da política do novo coronavirus, diríamos até, mais propriamente, científica, para não deixar de provocar uma boa parcela dos colegas de profissão formados dos anos 90 para cá.

O conteúdo das reformas da previdência social foi e é logicamente contrário ao avanço da produtividade do trabalho. Ao contrário de diminuir o tempo de trabalho para todos que trabalham, no sentido de jornadas menores ou menos intensas, por exemplo, ou, ao menos, ainda dentro da miserável jaula de ferro do mundo do trabalho atual; ao invés de aumentar o tempo de aposentadoria, as reformas se sustentaram no discurso de que o tempo de vida aumentou e, logo — pasmem! — também deve aumentar o tempo de trabalho. Na prática, pesquisas sérias, como as de colegas que acompanham o tema há décadas já demonstraram, essas mudanças não apenas retardaram, mas chegaram até mesmo a retirar o acesso à aposentadoria de uma enorme fração dos trabalhadores superexplorados brasileiros.

O conteúdo das reformas trabalhistas, idem. Ao invés de garantir que todos trabalhem, fez com que aqueles que trabalham tenham de ficar mais tempo procurando trabalho e, ao mesmo tempo, tenham de trabalhar mais e por mais horas quando estão “empregados”. Essas reformas fizeram com que se substituíssem os empregos com alguma estabilidade laboral e direitos trabalhistas como férias ou limite de jornada de trabalho pelos trabalhos uberizados. Ou seja, logicamente, também o oposto, mais horas de trabalho para aqueles que trabalham e mais tempo sem trabalho, já que a essência dessas reformas foi, justamente, dar liberdade total para o agente patronal recrutar quando e onde ele preferir e, obviamente, demitir.

Essas chamadas reformas, como eu destaquei, são políticas antigas, vide as terceirizações que há décadas abarcam a fração mais numerosa ou, às vezes, quase total das maiores empresas no Brasil, em todos os setores. E ainda não acabaram, uma vez que sequer a última reforma foi considerada suficiente. Prepara-se uma mais radical, em meio a mais 2,5 milhões de desempregados por um patrão que foi denominado, morbidaconsensualmente, Novo Coronavirus. Esse sim, reificado, bem mais poderoso.

Temos utilizado o termo “uberização” no Brasil, com a explosão exponencial dos trabalhadores que foram submetidos à empresa de aplicativos Uber e a trabalhos análogos à Uber, por exemplo, em São Paulo. Mas, com a crise do novo coronavírus, mundializada, talvez tenhamos de acrescentar à lista de exemplos do que chamamos, conceitualmente, de uma super-circulação, também um termo que nos apetece singularmente: a amazonização do trabalho.

A empresa Amazon, com as greves e lutas dos trabalhadores em vários países, por um lado, e com o aumento da fortuna do seu proprietário, por outro, é o exemplo mais citado do que significa a exploração brutal do trabalho e a exposição dos trabalhadores à doença e à morte. Com o advento do novo coronavirus, associado aos sistemas eletrônicos já antes aprimorados para controle de corpos, medição e demissão dos seus trabalhadores, a Amazon é mais uma das expressões desse novo velho mundo do trabalho. Para nós, a amazonização ganha também uma associação oportuna com as expectativas de superação do que seria um aspecto designado como atrasado do trabalho amazônico, da superexploração do trabalho dos trabalhadores das empresas agropecuárias, do peão-de-trecho, dos grandes projetos, das mineradoras e das suas centenas de terceirizados, assim como das periferias, favelas e palafitas miseráveis de Belém e de Manaus, que somarão às causas já ultra-violentas das mortes por subnutrição, assassinatos, leptospirose etc., também as causadas pelo novo vírus.

Mas, voltando ao argumento, fato é que a ampla aliança contra Bolsonaro é bem sucedida naquilo que se propõe: hegemonizar, tutelar e criar um campo político-institucional frente à convocação bolsonarista de autogolpe, isolando as alternativas políticas da esquerda revolucionária, contra-institucional ou até mesmo aquela minimamente anti-sistêmica, nesse momento em que o consenso burguês pressupõe essa agenda mórbida contra os trabalhadores.

Porém, uma vez que essa agenda já retirou as condições sociais de possibilidade de apoio político desse campo por parte dos trabalhadores, a tutela chega apenas até o limite do arco das próprias organizações que têm pouca ou quase nenhuma potência para a ação política em condições de luta proletária favelizada, amazonizada. E o radicalismo político que advém da condição burguesa contemporânea, por outro lado, não admite quaisquer concessões, não apresenta um espaço social para mediadores e conciliadores na Europa e nos EUA e, obviamente, muito menos, na América Latina. Até mesmo no Brasil, em que historicamente se arruma a casa por cima, amadurecem as condições para entrar em jogo a política da esquerda revolucionária.

Outros 1º de maio virão.

Gil Felix é cientista social e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

As ilustrações representam obras de Jane Alexander (nascida em 1959).

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