Por Isadora de Andrade Guerreiro
Há um debate no campo da biologia sobre se os vírus são ou não seres vivos, pois eles não têm metabolismo próprio e precisam de outros seres, esses sim vivos, para existirem e se reproduzirem – fora dos seus hospedeiros, tornam-se inertes. Dentro desta perspectiva eles são estruturas não-vivas, apenas “agentes infecciosos” cujo sucesso depende do equilíbrio entre tempo de reprodução e capacidade de disseminação. Ou seja, se provocarem a morte rápida de seu hospedeiro antes de serem expelidos e apanhados por outro ser vivo, deixam de existir. Se forem muito fracos, dão espaço para a criação de anticorpos que impedem a disseminação. Além disso, os vírus são muito pequenos, bem menores do que as bactérias, invisíveis ao ser humano – que apenas os deduziram – até a invenção do microscópio eletrônico na década de 1930. O fato dos vírus terem essa condição submicroscópica e este estatuto de vida estranho levou (e ainda leva) movimentos negacionistas à dúvida sobre sua existência – que demorou a ser constatada na história da ciência. Gostaria de usar a imagem do vírus – nosso atual inimigo invisível, flertando com Orwell[1] – como metáfora. É sempre bom conhecer o inimigo.
A cidade e a invisibilidade
A dinâmica urbana no Brasil subsidia parte relevante da ação estatal e também do mercado e, portanto, conhecê-la é fundamental, embora seja tarefa bastante complexa na medida em que se compõe de relações híbridas, nas quais a formalidade é apenas um dos tantos elementos presentes. Socialmente, a visibilidade seletiva e, no limite, a invisibilidade de certas relações e ocorrências no mundo popular urbano fazem parte da sua rica e potente existência. Como no caso dos vírus, tais relações são percebidas socialmente não pela sua visibilidade, mas pelas suas consequências. De qualquer maneira, sabe-se que elas existem, embora não se tenha total controle sobre elas. Age-se sobre elas, embora não se conheça exatamente sua natureza que, reforço, tem na regulação da visibilidade social um dos elementos da sua existência, um dos instrumentos de sua estratégia de manutenção e reprodução.
No Brasil em quarentena é bastante nítido que o negacionismo tem diversos graus de aparecimento – dos mais patológicos e perigosos aos mais moderados e cotidianos, atravessando aqueles inoculados à força da necessidade, da circunstância ou da ordem superior. Pode-se ler esta afirmação pensando no Coronavírus, mas também no paralelo urbano e social: o negacionismo de certas relações e ocorrências que possuem diversos graus de invisibilidade social, muitas vezes, pode levar à negligência de suas consequências, por um lado, mas também é revelador de qual é a legitimidade e potência do seu aparecimento. Nesse sentido, é importante entender de qual maneira se tornam visíveis, ou visibilizadas, pois este é um momento fundamental da política.
Cabe reflexão, portanto, sobre a surpresa do governo federal com o súbito aparecimento de pelo menos 46 milhões de pessoas (22% da população brasileira), podendo chegar a 50 milhões em breve, que se apresentaram para inscrição no Cadastro Único para receber o Auxílio Emergencial de R$600 por três meses. Chamados pelo presidente da Caixa Econômica Federal de “invisíveis”, grande parte dessas pessoas não tinha um ou mais meios para acessar a específica visibilidade social determinada pelo Estado: CPF ativo, celular (com internet) e conta bancária. Essas pessoas não são aquelas já cadastradas no Bolsa Família e outros programas, que chegou aos rincões do país tornando visíveis ao governo cerca de 30 milhões de pessoas. Dessas já se sabia da existência. Invisível, por incrível que pareça, estava parcela significativa da população cujo metabolismo social estava estruturalmente ligado ao metabolismo urbano. É a tal parcela que sobrevive da “viração”, não dos benefícios públicos, cuja existência não é visível para o Estado do ponto de vista dos rendimentos, mas do ponto de vista urbano, sim – demandam transporte, habitação, infraestrutura etc. São pressupostos na sua consequência, mas invisíveis na sua existência. Quando a cidade para, essa parcela reivindica visibilidade estatal por meio da inscrição no Cadastro Único. A pandemia a revela, mas também a submete, pois define as regras para a sua visibilidade.
O depoimento angustiado de um morador em situação de rua na região da chamada “Cracolândia” em São Paulo durante a pandemia ilustra bem essas aproximações metafóricas: “As pessoas me olham de um jeito que parece que sou o vírus”. Há nessa frase uma enorme revelação, para ele mesmo, sobre o seu estatuto social. Mas também para as pessoas que o olham com medo: a visibilidade de um modo de vida que se sabia existir, mas se negava, gera um medo que é um questionamento sobre o seu próprio modo de vida, ameaçado pelo súbito aparecimento do “agente infeccioso” que vem explicitar a fragilidade da existência social daqueles que o olham e se dão conta do seu negacionismo cotidiano. Demonstra-se toda a hipocrisia do negacionismo também do Estado, que sabia da sua existência através da assistência social, da veiculação como espetáculo do “fluxo” na região, das ações policiais violentíssimas, das ações de habitação por meio de PPP para retirá-lo dali – porém o considera “invisível” na lista de contas bancárias da Caixa, na Receita Federal e no monitoramento remoto (nunca apareceu um monitoramento do fluxo pelos celulares, como está se fazendo no controle de quarentena… por que será?). Isso revela o caráter higienista da ação estatal nesta região, que é a própria panaceia contra o “agente infeccioso” social: a visibilidade do medo da disseminação da sua existência é a revelação da fragilidade desta sociedade. A visibilidade do urbano que a pandemia gera é política.
A submissão dos vivos ao não-vivo
“O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa”[2].
Em situação de emergência permanente, nossa sociedade está vivendo sob submissão – parece ser ao vírus, mas é importante conseguir olhar através dele, aproveitando as revelações da sua eminente visibilidade. Dentre as muitas mudanças que vamos viver nesse período, a pandemia parece estar marcando uma nova fase de decantação de latências sociais que aprofundam tendências de longa duração: dentre elas, uma forma de existência social dominada por elementos não-vivos. Pois CPF e conta bancária são marcadores da submissão jurídica e econômica do sujeito – algo que já estava em andamento, mas que não tinha ainda alcançado boa parte da população brasileira considerada, também por isso, “invisível”. Celular com internet, por sua vez, é um dispositivo poderoso e relativamente novo de sujeição social. A própria existência da pandemia é colocada em dúvida pelos dispositivos que ela mesma revelou, na medida em que é por meio dos celulares conectados que se aufere parte importante dos dados urbanos disponíveis sobre ela mesma. Auferem-se dados apenas – deixemos claro – sobre os visíveis socialmente, ou seja, aqueles com celular, que a própria pandemia revelou não serem todos os existentes de fato, como visto acima. Afinal, um ser humano vivo não é necessariamente um celular e, vive-versa, um celular não é um ser vivo – e está muito mais próximo de um não-vivo nos termos mesmo do vírus: ele depende do ser vivo para existir, e não o contrário! Enfim, é uma força reveladora essa tal de pandemia – mas também é uma força de submissão ela mesma.
Pois também os viventes-conectados – e, por isso, existentes, porque visíveis – nunca trabalharam tanto: seja em trabalho online seja em trabalho na rua (largamente possibilitados atualmente pelos apps e pela informática), a própria condição social a qual nos submetemos para continuar existindo nos retirou em massa tempo de vida (aquela de verdade, que não precisava ser visível para existir, lembra-se?). Ao ter menos vida, nos aproximamos da condição de máquina, do não-vivo. É muito assustador o que tem ocorrido na educação durante a pandemia, por exemplo, onde se aprofundaram muito rapidamente as relações já colocadas anteriormente em andamento de educação à distância – com o ápice dos professores-robôs que os alunos nem sabiam do estatuto. Qual é o limite – ou o que nos separa – da condição de professores-robôs em-vida? A submissão ao combo não-vivo CPF-banco-celular-internet, os meios desta produção, tem deixado poucas frestas.
“A mera transformação do dinheiro em fatores objetivos do processo de produção, em meios de produção, torna os últimos títulos jurídicos e títulos coercitivos ao trabalho e mais-trabalho alheios. (…) Essa inversão, particular e característica da produção capitalista, essa distorção da relação entre trabalho morto e vivo, entre valor e força criadora do valor, se reflete na consciência das cabeças capitalistas (…)”[3].
Para existirmos para esta sociedade, parece que precisamos nos “libertar” de todo traço realmente vital, ou seja, da possibilidade de controle sobre nossas próprias ações – abandonarmos nosso metabolismo. É a visão da barbárie em absoluto: na entrada de Auschwitz, havia a inscrição “Arbeit macht frei”, ou “O trabalho liberta”. No depoimento de uma russa que viveu os horrores do stalinismo, sobre a vida sob o capitalismo: “Antes eu entendia a nossa vida… entendia como nós vivíamos… Agora não entendo… não…”[4]. Criamos campos de concentração muito mais potentes, pois nem mais entendemos a diferença entre a vida e a não-vida: deixou de ser uma questão. Segundo a lenda, a vida sugada por um vampiro não acaba: se transforma em um não-vivo, à imagem de seu algoz, condenado a viver para sempre nesta condição. O sentimento do presente-infinito que vivemos na internet – ou seja, no trabalho, subsumido ao capital mais profundamente nesta pandemia – me parece condizer com esta imagem. Parece que, neste tempo estranho de emergência, estamos vivendo numa para-cidade, uma cidade dos não-vivos.
A cidade dos não-vivos
Em meio a esta barbárie, não é à toa que a discussão política da vez tem oposto de maneira dual trabalho e cidade: ou fica em casa ou sai para trabalhar. Quando a organização social em que nos encontramos faz com que a consequência para as duas opções possa ser a morte para estas milhões de pessoas, fica claro que trabalho e cidade não são contrapostos, mas parte de um mesmo processo e se complementam (como eu dizia umas colunas atrás). A dualidade é ilusória porque mais uma vez a pandemia é reveladora na sua força de conformação social: a verdadeira dualidade (que precisa ser escondida) é entre trabalho e não-trabalho, vida e não-vida. É a primeira vez que uso aqui a palavra morte, o que marca uma mudança significativa: só morre quem está vivo. O não-vivo apenas leva os vivos à morte, mas ele mesmo não “morre”, apenas se torna inerte. Deixar-se consumir pelo não-vivo em nome de uma existência morta-viva, como os vampiros, é que me parece ser o que está em jogo. A forma de governo realizada pela milícia que se encontra na gestão do Estado no Brasil atualmente é baseada nesses elementos, que são a nova mutação da barbárie: a extinção que está proposta não é de uma raça específica, como no nazi-fascismo. É a extinção da própria vida como a conhecemos, que é contraposta à morte. Para eles, pretende-se implantar uma sociedade de não-vivos, como os robôs que determinam opinião pública e para quem eles governam. Nos quais eles querem continuar nos transformando – e o que nos separa da condição de não-vivos-em-vida?
Para resistir a isso precisamos lembrar-nos da metáfora que propus no início do texto: não é interessante para o vírus, o não-vivo, matar rapidamente seu hospedeiro. Precisamos rapidamente articular nossas vacinas, nossas armas, nossas defesas do que ainda resta de vida. Para criar vacinas, precisamos trabalhar a partir do próprio vírus, ou seja, com o que ele trouxe de revelador sobre a organização social em que nos encontramos historicamente. O distanciamento social também pode ser usado aqui como metáfora política: o combate ao não-vivo também pode se dar na sua não disseminação (que para ele é o equivalente à morte), ou seja, precisamos criar resistência às formas de submissão que proliferam se aproveitando da pandemia, principalmente sob a justificativa do auxílio humanitário. Para tanto, se torna fundamental discernir as solidariedades de classe, de gênero, étnicas, raciais, territoriais ou outras que se baseiem da vida, daquelas que são apenas meios para a contínua disseminação viral da dominação – que mata.
Notas:
[1] Em “1984”, romance lançado em 1949, George Orwell descreve um futuro distópico no qual há uma guerra permanente, cujo inimigo, porém, nunca se vê e, também, a sociedade não se recorda mais quem é. O autor deixa no ar se ele existe de fato ou não, sempre fazendo aparecerem manifestações concretas que performam sua existência, porém apenas nas consequências da guerra, como partes destruídas que aparecem na cidade. Essa situação promove uma sociabilidade baseada na urgência do presente perpétuo, onde tudo é vigiado pelo Grande Irmão, que adentra de maneira virtual dentro de todos os espaços.
[2]MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Volume 1, Tomo 1. São Paulo: Editora Nova Cultural (Abril), 1996, p.347.
[3] Idem, p.424.
[4] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. O fim do homem soviético. São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p.548.