Por Manolo

Disse na parte anterior deste ensaio que o “fascismo acuado” esconde o que há de verdade: a disputa por postos estratégicos dentro do Estado. Disse, também, que o “fascismo acuado” é excelente ferramenta retórica para um vasto campo conservador a quem falta qualquer expressão orgânica. Disse, por último, que o presidente e seu núcleo mais próximo pretendem usar o Estado como sucedâneo para um movimento político mais coeso, que nunca tiveram à sua disposição. É sobre este “movimento”, ou sua falta, que pretendo dizer algumas coisas nesta parte.

Bolsonaro realmente esteve em campanha constante desde 2015 ou mesmo antes, e sua estratégia de manter-se na mídia por meio de polêmicas e ofensas gratuitas pagou-se bem ao garantir a reiteração de um discurso conservador agressivo. Disparos de WhatsApp sozinhos seriam incapazes de tamanho resultado, embora tenham certamente ajudado na campanha.

Ocorre que uma campanha eleitoral mobiliza para uma finalidade de curto prazo, mas nunca foi capaz, em momento algum da História, de construir uma organização política sólida, permanente e estruturada. Veja-se a questão, ainda outra vez de modo comparativo, tendo como base uma vista rápida sobre as relações entre os governos pós-redemocratização e sua base de sustentação social.

O governo Collor, de modo semelhante ao de Bolsonaro, foi um arranjo temporário das classes dominantes, naquele momento para conter a onda de movimentos sociais que crescia desde os anos 1970; sua organicidade era nula, tanto assim que se esfacelou muito rapidamente. Os dois governos do PSDB não dispunham de qualquer partido de massas em sua base de apoio, à exceção do PMDB se alargarmos bastante a concepção clássica de “partidos de massa” e “partido de quadros”; sua sustentação era dada pela relativa coesão interna do próprio PSDB e pela ampla capacidade de diálogo com o velho Centrão e com a direita. Os quatro governos do PT basearam-se, primeiro, na tentativa de pressionar o Estado desde fora (a velha “estratégia da pinça”) e nos acordos de cúpula com setores do empresariado brasileiro; em seguida, sua sustentação dependeu disso e também da compra de votos de partidos “nanicos”, para evitar ter de apoiar-se numa aliança com o PMDB, maior partido no Congresso; com a crise do “mensalão”, o acordo com o PMDB foi inevitável, e deu a tônica da “governabilidade” daí por diante. Em todos os casos, no que diz respeito aos governos que capitaneou, o PT foi — e continua sendo — o maior partido de massas da história política brasileira recente, sua força em qualquer cenário foi — e é — decisiva, malgrado sua recente deriva sebastianista.

Que tem o bolsonarismo que seja próximo disso? Nada. Arranjos de cúpula extremamente frágeis, extrema dependência dos militares para fornecer — em algumas situações, quase a contragosto — quadros para o governo… e só. A “democracia por agressão”, marca deste governo, já não surte o mesmo efeito, pois parlamentares parecem ter adotado a estratégia de deixar o presidente falando sozinho. As “milícias virtuais”, o “gabinete do ódio” e a claque de seguidores do bolsonarismo são capazes de fazer agitação em redes sociais e WhatsApp, mas com alguma técnica podem ser contra-arrestadas e minimizadas, e mesmo elas não substituem o tipo de militância orgânica de outros modelos políticos — por sinal, mesmo as “milícias virtuais” não implicam em sucesso permanente, pois sua eficácia é sazonal e depende da receptividade do público quanto a certos temas.

Daí a necessidade de “construir o movimento”. De construir algo que dê alguma forma institucional às tendências sociais difusas que alimentam o bolsonarismo.

Na verdade, quem buscar o “movimento” sentir-se-á como alguém realizando o célebre experimento conceitual da caixa de Schroedinger — porque “movimento”, aqui, só existe naquele sentido muito amplo empregue por sociólogos para falar das grandes tendências da sociedade. Quem olhar por este ou aquele lado certamente encontrará “movimentos”, mas nenhum deles é, digamos, “o” movimento, capaz de dar ampla sustentação ao governo em situações de crise ou de pressionar decisivamente adversários institucionais. Daí a comparação com o célebre experimento de Schroedinger: um “movimento” bolsonarista, estranhamente, existe e não existe ao mesmo tempo. Melhor dizendo: só se terá certeza sobre sua existência quando devidamente agitado.

Por que o “movimento” existe?

Em primeiro lugar, claro, porque o núcleo duro bolsonarista está aí, firme e atuante, dentro e fora do Estado. Quem duvida deveria olhar para o gabinete ministerial com olhos estratégicos. Um olavista no ministério da Educação, responsável por coordenar a formação intelectual de milhões. Outro olavista no ministério das Relações Exteriores, articulando-se com todos os governos de extrema-direita existentes por aí afora. Uma arquiconservadora neopentecostal puro-sangue no ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para transformar o conservadorismo moral em política de Estado. Um gestor de extrema-direita no ministério do Meio Ambiente, fazendo o que pode para inviabilizar a atuação do próprio ministério e disseminar a pauta bolsonarista no campo ambiental. O resto dos cargos ministeriais pode tranquilamente ser “loteado” com os economistas liberais, com os militares e com quem mais for necessário. O presidente negocia tudo, menos este núcleo. Estas pastas são política e ideologicamente mais sensíveis — são do núcleo duro, e pronto. Duas pastas dependem de ministros superstars, que juram permanecer no governo mesmo quando há abalos na relação tanto com Sérgio Moro, na Justiça, quanto com Paulo Guedes, na Economia; o primeiro vem sendo tratado (pelo próprio núcleo duro bolsonarista) como a única ameaça real a Bolsonaro, e o segundo é o que se chama, na política, de “pato manco”, seja porque não tem pretensões políticas, seja porque o ministério da Economia, em tempos de crise como agora, costuma ser um destruidor de popularidade.

Enquanto detiver o poder de Estado, o bolsonarismo tentará ao máximo aproveitar as oportunidades para fazer do próprio Estado um substituto da organicidade que lhe falta. Sim, é verdade que o bolsonarismo cooptou lideranças de movimentos que canalizaram a insatisfação política pós-2013. A deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), por exemplo, veio das entranhas do movimento Revoltados ON LINE; outra deputada bolsonarista de destaque, Carla Zambelli (PSL-SP), é ninguém menos que a fundadora do movimento Nas Ruas; entre outros. O bolsonarismo vive de fagocitar aliados porque, a julgar pelas nomeações para cargos próximos ao presidente e pelo enorme peso político dos filhos do presidente, que de outro modo teriam pouca expressão própria, o perfil paranoide do presidente não abre margens para qualquer aliança, apenas para a submissão; sendo assim, quem saia um pouco da linha está condenado a desculpar-se de imediato ou ser expulso das hostes bolsonaristas.

(Neste aspecto de fagocitose política o bolsonarismo não anda só. Como a criação de partidos políticos no Brasil tem regras bastante rígidas e a vida interna dos partidos políticos brasileiros gira, basicamente, em torno de chefes políticos de alguma expressão, a canalização da insatisfação política expressa em 2013 resultou, entre outras coisas, na proliferação de “grupos de renovação e formação política” como RenovaBR, Livres, RAPS – Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, Movimento Brasil Livre – MBL, Acredito, Agora!, Vote Nelas, Ocupa Política e outros. Alguns já contam com parlamentares eleitos, como Kim Kataguiri (MBL/DEM), Fernando Holiday (MBL/Patriota), Tabata Amaral (Acredito/RenovaBR/PDT), Felipe Rigoni (Acredito/RenovaBR/PSB) e Joênia Wapichana (RenovaBR/Rede). Há quem diga que tais movimentos, já de olho nas eleições municipais de 2020 para se capilarizar, assemelham-se ao que um dia foram as “tendências” internas do PT, ou mesmo a “partidos clandestinos”; trata-se, na verdade, de movimentos suprapartidários que em momento eleitoral lançam candidatos por meio de diversos partidos. É o novo maturando-se dentro da casca do velho, e este fenômeno poderá ser determinante para os rumos futuros da política brasileira.)

O bolsonarismo sobrevive, portanto, de fagocitar as bases sociais alheias porque fora do Estado (ou, mais precisamente, fora do Poder Executivo), além das “milícias virtuais” e do “núcleo duro”, pouco lhe resta que se salve. Apesar de o bolsonarismo ter conseguido a proeza de eleger a maior bancada parlamentar em 2018, as sucessivas crises internas já lhe diminuíram as fileiras, e a disputa com o presidente do PSL, Luciano Bivar, ameaça inclusive que parlamentares bolsonaristas desejosos de seguir o líder e abandonar o partido terminem perdendo seus mandatos. Mesmo a gigantesca bancada bolsonarista puro-sangue do PSL representou, logo ao final das apurações em 2018, apenas 10,13% dos 513 deputados, e o número recorde de partidos com representação no Congresso apresentou enorme desafio à “governabilidade” (voltarei a este assunto mais adiante, num contexto mais adequado). Há, sim, organizações como o Movimento Direita Conservadora, que “adotaram” o “mito” como seu ícone; mas os canais entre o bolsonarismo e tais organizações-satélite são indiretos, mediados por convocatórias em redes sociais, sem qualquer organicidade.

A Aliança pelo Brasil, a mais ousada tentativa de prover o bolsonarismo com alguma organização mais sólida, parece estar enfraquecendo, pois encontra severos obstáculos para a coleta das assinaturas necessárias a seu registro eleitoral; foi frustrada a tentativa de fundar um partido usando “assinaturas eletrônicas” (não a certificação digital, cara, mas um simples nome num abaixo-assinado eletrônico), assim como a tentativa de usar os registros biométricos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a mesma finalidade. Empurrado de volta à coleta de assinaturas do modo mais tradicional por meio de voluntários, o bolsonarismo militante deve aproveitar todos os atos, manifestações e eventos públicos que organizar — como as manifestações realizadas no dia 15 de março — para coletar assinaturas. Conta também com apoios no mínimo heterodoxos, como o do Colégio Notarial do Brasil (CNB), entidade que representa 9 mil notários em 24 estados do país (cerca de 90% da classe) e prometeu — desviando-se de sua finalidade estatutária — colocar a estrutura dos cartórios brasileiros em favor da coleta de assinaturas para a Aliança. Já no começo de março de 2020 o TSE analisara cerca de 22 mil assinaturas, encontrando 7.298 apoiadores aptos e 15.032 inaptos –– 78% destes porque o eleitor que preencheu a ficha de apoiamento já era filiado a outro partido; o TSE encontrou ainda entre os inaptos 1.632 pessoas cadastradas em unidades federativas diferentes da informada no cadastro eleitoral, 720 fichas de apoiamento duplicadas e até sete documentos preenchidos por eleitores que já morreram. A Aliança, já se sabe, não participará das eleições municipais de 2020 por não ter sido registrada a tempo, sendo mais provável, num plano estritamente eleitoral, que os candidatos bolsonaristas abriguem-se no Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), ao qual o vice-presidente general Hamilton Mourão é filiado, e ao Republicanos, ex-PRB, partido da Igreja Universal do Reino de Deus.

Ou seja: há, sim, um movimento por parte do bolsonarismo para a construção de alguma organicidade própria. Por que, então, dizer que o “movimento” não existe?

Para entender a questão, é preciso partir de uma crítica à “teoria dos três terços” construída pelo filósofo Marcos Nobre como síntese dos problemas da oposição eleitoral ao bolsonarismo:

“A lógica dos três terços é: um terço apoia, um terço rejeita e um terço não apoia nem rejeita. A posição de cada um dos três terços reforça a dos outros. Nesse processo, todos se sentem confortáveis, porque, do lado eleitoral, todo mundo que vai se apresentar para as eleições de 2020 diz: eu serei a pessoa que, ao chegar no segundo turno com o Bolsonaro, vai conseguir reunir os dois terços contra ele. Essa é a pior ilusão que existe, porque essa pessoa está dizendo: preciso chegar ao segundo turno e, para isso, preciso atacar quem? Não o Bolsonaro, não acho que ele seja atacável, já está no segundo turno em 2022. Então vou atacar outras candidaturas do campo democrático com as quais terei que concorrer. Ou seja, você tem uma guerra destrutiva dentro do campo democrático, que é maioria nesse país, para chegar ao segundo turno com um presidente de extrema direita. O resultado disso vai ser que as outras candidaturas não vão migrar para esse candidato — depois que você destruiu os outros adversários no campo democrático e convenceu todo mundo, você quer que eu, que não votei em você antes, agora vote?”

O thought experiment do filósofo apresenta, na verdade, um dilema: ou o “campo democrático” (o que quer que seja este ente metafísico) apresenta candidatura unificada nas eleições presidenciais de 2022, ou perderá estas eleições. O dilema, entretanto, simplifica enormemente um jogo de forças complexo: além de ignorar as eleições municipais, cujo resultado costuma influenciar as eleições governamentais e presidenciais subsequentes ao estabelecer com que prefeitos e vereadores se poderá contar para subir nos palanques pelo Brasil afora, o dilema ignora também os atores extraparlamentares e as mesmas forças sociais “inorgânicas” que deram origem aos eventos de 2013, eventos que o mesmo filósofo já caracterizou em outras oportunidades como um ponto de virada na política brasileira. É este o lugar onde o “movimento”, por assim dizer, “não existe” — ou, continuando com a brincadeira física, existe em “superposição quântica”. Por quê?

Em primeiro lugar, porque o bolsonarismo depende do constante apelo às massas para funcionar. De um apelo pessoal, para ser mais preciso: o presidente costuma desautorizar e atropelar a comunicação institucional do Palácio do Planalto para dirigir-se diretamente ao público — seu público. Incapaz de contornar os protocolos da segurança presidencial, e decerto com receio de novos atentados contra sua vida, Bolsonaro parece ter adequado sua “comunicação de guerrilha” às rotinas presidenciais. O apelo do bolsonarismo às massas tem uma particularidade: enquanto no fascismo clássico o “apelo às massas” por meio de discursos públicos ou de rituais de simbologia bastante elaborada tinha enorme preponderância, o apelo às massas do bolsonarismo, depois da eleição presidencial, faz-se quase exclusivamente por meios eletrônicos, indiretos, com o presidente usando e abusando das poucas palavras, impropérios e piadas chulas com que constrói sua retórica agressiva para ressoar os temas com maior receptividade entre seu eleitorado mais fiel. Se há ritualização, é a da tosqueira: cenários improvisados, ambientação cuidadosamente preparada para passar a imagem de um homem simples, equipamento low tech e uso de meios técnicos acessíveis a qualquer simples cidadão. É mais um caso em que a forma tenta passar por conteúdo — lorota em que só cai quem não repara no fato óbvio de que é o presidente, que tem à sua disposição toda a máquina de comunicação social do Estado brasileiro.

Além das folclóricas lives, o instrumento mais marcante da “comunicação de guerrilha” do bolsonarismo de Estado, realmente único na história presidencial brasileira, é o “talkey show”. Neologismo derivado da interjeição “tá ok?” com que o presidente costuma encerrar suas frases, o “talkey show” nada mais é que o espetáculo público com que o presidente brinda uma pequena e fiel claque, formada por todo tipo de gente (de seguidores fanáticos e solicitantes a turistas em passeio por Brasília): ao sair do Palácio da Alvorada, o presidente demora-se propositalmente na portaria para ser entrevistado diante da pequena plateia, como num misto de coletiva de imprensa ad hoc e talk show improvisado. É aí onde seguidores fiéis — a referência às redes sociais, implícita na palavra “seguidor”, não foi casual — gravam as reações agressivas do presidente às perguntas da imprensa que o desagradam para fazer circular em grupos de WhatsApp, onde, na falta de escrutínio público, anything goes.

Existe longa tradição nas ciências sociais, principalmente na psicologia, que enquadra o comportamento das massas como um tipo de “comportamento de manada” capaz de reduzir a racionalidade a um mínimo. A perspectiva com que vejo o assunto, entretanto, é a mesma do ensaísta austro-búlgaro Elias Canetti: as massas são um amontoado de indivíduos, aglutinados a partir de seus próprios medos, em busca de uma direção (no sentido mais mecanicista do termo, o rumo vetorial de um movimento, não no sentido político — embora a leitura figurada também seja possível). Os integrantes das massas igualam-se e nivelam-se a partir de seus temores, razão de sua união. Quando as massas persistem em existir por tempo mais longo, seus integrantes tendem a querer “aglutinar” mais integrantes nelas, porque quanto mais pessoas se misturam às massas, mais fortes seus integrantes se sentem frente ao temor que justificou estarem juntos como iguais. Interessa particularmente na forma como Elias Canetti entende a formação e desenvolvimento das massas o fato de que elas se agrupam por si próprias, independentemente de líderes; são portanto perigosas para quem queira dominá-las porque, no igualitarismo construído pelos indivíduos que as integram, qualquer elemento externo poderá ser entendido como ameaça. Resta aos que pretendem liderá-las recorrer a forma de controle como a “hipnose”, os “investimentos libidinais” ou as “ameaças de morte” (termos do próprio Canetti). Pelo ponto de vista canettiano as massas, portanto, não seriam passivas, e o controle sobre sua direção dependeria de conflitos e negaças entre seus integrantes e aqueles que pretendem liderá-las. De uma necessidade permanente de agitação e mobilização, como um verdadeiro pastoreio, para que as massas obedeçam à direção desejada pela liderança. Sem isto, as massas seguirão seus próprios rumos, não os que a liderança quer lhes imprimir.

Daí dizer: o “movimento” bolsonarista, além do “núcleo duro”, existe e não existe simultaneamente, vive em estado de “superposição quântica”, e só mostrará a que veio quando agitado. O que os “progressistas” como Marcos Nobre não entendem é exatamente isto: a aposta na existência dos 30% do eleitorado fidelizado pelo bolsonarismo — cifra que tem por base uma extrapolação indevida do número de votos dados a Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 e as periódicas sondagens de opinião — diz pouco quanto ao que os restantes 70%, que Marcos Nobre entende automaticamente como integrante das “forças progressistas”. A depender do tema e da forma, haverá “eleitores” — inclusive bolsonaristas — que se sentirão mais próximos de pautas “progressistas”, e vice-versa. (Basta olhar ao redor e ver quantos “progressistas” defendem ação “mais dura” contra a “bandidagem”.)

Canetti e sua teoria das massas ajudam a entender uma linha de continuidade entre o cenário atual e aquela enorme insatisfação política expressa por setores amplos da classe trabalhadora em 2013 por meio de greves e protestos de rua. Os desejos daquelas massas são, ainda hoje, a força motriz da política brasileira desde que estes novíssimos personagens entraram em cena. Capturou-a, deu-lhe direção, quem soube manter um equilíbrio entre plasticidade e organicidade, ou quem soube atuar em meio a esta insatisfação como uma espécie de franco-atirador. A vitória coube à direita, por meio de organizações como o Movimento Brasil Livre (MBL), Movimento Endireita Brasil (MEB), Vem Pra Rua etc., e também por figuras icônicas como Janaína Paschoal e o próprio Bolsonaro, que superou a “concorrência” e tornou-se hegemônico.

A direita inteira, bolsonarismo incluso, foi, neste aspecto, e mais uma vez, “leninista”. Aliando rigidez paranoide de princípios a uma flexibilidade tática sem vergonha, este campo aproveitou cada oportunidade apresentada por novas crises internas ao Estado para agitar, chamar as “massas” às ruas, medir sua própria capacidade de mobilização, testar a correlação de forças e fazer avançar suas pautas em meio a um público mais amplo. Como respondem a isso a esquerda e o “campo progressista”? Parte significativa responde dizendo que o povo não se manifesta. Outra parte, talvez ainda maior, responde fazendo memes. Minoria segue puxando atos por meio de siglas que hoje pouco representam, que resultam muito aquém das expectativas dos organizadores, mas são comemorados como “vitórias”. Minoria ainda mais ínfima segue participando daquela miríade de pequenos atos políticos, noticiados todos os dias nos jornais locais ditos “populistas”, na tentativa de participar das lutas cotidianas dos trabalhadores, de somar-se a elas, de saber “por dentro” as necessidades da própria classe a que pertencem.

E assim, de tanto “tomar o pulso do estado de espírito das massas e influir nele” (Lênin, mais uma vez), o bolsonarismo assumiu a iniciativa da conjuntura política; isto, e a incrível capacidade de gerar uma nova polêmica a cada semana, facilita-lhe travar a dupla guerra em que se consideram inseridos — uma, segundo a lógica do “fascismo acuado”, contra o “aparelhamento do Estado por esquerdistas” (em favor do aparelhamento por eles mesmos); a outra usa o próprio Estado como máquina de guerra contra seus inimigos reais ou imaginários. Sem um movimento próprio, fagocitando organizações que se lhe aproximam, fomentando o presidente como liderança carismática (no sentido mais fortemente weberiano do termo), o bolsonarismo militante, em primeiro lugar, usa o Estado para construir o movimento fascista orgânico que lhe falta. Em segundo lugar, usa o Estado também para atacar a esquerda como se a Guerra Fria ainda estivesse em vigor nos mesmos termos em que foi travada historicamente. Em terceiro lugar, apela às massas sempre que se encontra em alguma situação em que, pelas “regras do jogo”, deveria transigir e negociar — mas a um preço muito alto, porque enfrenta, então, a “velha política”, os “adultos na sala”, aqueles que querem manter uma aparência de normalidade para que a inserção brasileira no capitalismo global não saia prejudicada pelo próprio bolsonarismo.

Mas, veja bem — “adultos”? Não é um governo de crianças. Não há ninguém “inocente” no atual governo. Quem são estes “adultos”? Por que são “adultos”?

acesse a primeira e a TERCEIRA parte do artigo.

As ilustrações representam obras de Ernest Barlach (1870-1938)

4 COMENTÁRIOS

  1. «(…) o “movimento” bolsonarista, além do “núcleo duro”, existe e não existe simultaneamente, vive em estado de “superposição quântica”, e só mostrará a que veio quando agitado.»

    Antes do sucesso das manifestações de 2013, o MPL era com frequência tratado com desdém por boa parte dos grupos da esquerda organizada. Não é de se espantar: apesar do M no começo de sua sigla, o MPL nunca teve a estatura dos outros “Movimentos” sociais. MST, MAB, MTST, MTL, etc: esses movimentos tinham bases organizadas, eles “existiam”. Se estivessem numa reunião e dissessem que o movimento iria compor um ato, já se poderia esperar mais do que umas bandeiras, afinal “eles vão levar a base”. Já o MPL podia no máximo ajudar a divulgar o ato e assim, quem sabe, atrair pessoas que talvez se interessassem pela causa a partir da sua rede de comunicação (em geral virtual, redes sociais ou, antes, o CMI). Se comparado aos outros movimentos, o MPL “não existia”. E, de fato, ao longo do ano, o que existia era a “galera da reunião”: um núcleo duro pouco regular de meia dúzia de moleques em cada cidade, fazendo atividades de agitação em terminais e formação em escolas. Quando a tarifa aumentava, o MPL (devidamente agitado) passava a existir. Para muitos militantes da política mais tradicional, esse processo era meio incompreensível, e é desse aparente mistério que se originam boa parte das mistificações sobre junho de 2013 (ao menos em São Paulo, onde o MPL cumpriu um papel preponderante). Muito se discutiu sobre o MPL ser um movimento social “sem base” — ou, talvez seria mais preciso dizer: sem base organizada. Houve quem defendesse, em mais de um momento da história do movimento, que seria preciso construir uma base para o MPL, mirando de certa forma se tornar um “movimento que existisse” tal qual o MST. Por outro lado, estava ali também a intuição de que o movimento talvez fosse aquilo mesmo (um “movimento social de espectro amplo”, tentava definir um militante). Talvez essa discussão tenha sido pouco registrada justamente porque não se chegava a uma definição. Como o transporte coletivo que está sempre em fluxo, a forma organizativa realmente existente do MPL parecia meio incapturável. Numa discussão quântica sobre um outro movimento, em muito oposto àquele, talvez Manolo tenha conseguido sintetizar esse velho debate inconcluído.

    E, se o espelho funcionar nas duas direções, talvez tenhamos um parâmetro para medir a ameaça real de um bolsonarismo que existe e não existe.

  2. Caio,
    Me parece que existe uma diferença fulcral nos debates. Quando eu falava em “movimento social de espectro amplo” pensava em uma ausência de base definida, mas também em um movimento que era transversal aos diferentes estratos da classe trabalhadora. Ao se retirar de cena esse elemento central, inverte-se o que pretendíamos fazer e abre-se espaço para que isso se torne uma nação em cólera.

  3. LL,
    É tão evidente que existem diferenças fulcrais entre o movimento bolsonarista e o Movimento Passe Livre — a começar pelo caráter de classe — que entendi ser desnecessário fazer tal ressalva antes de avançar para uma comparação, ainda mais num espaço tão familiarizado com o MPL como é o Passa Palavra. Entendo que a possibilidade de reconhecer paralelos possa ser perturbadora, mas repeli-los não parece o melhor caminho para uma análise crítica, nem do que foram os eventos de 2013 nem do que é essa nova direita que enfrentamos hoje.

  4. esse “ser e não ser” não teria uma amplitude ainda maior que junho de 2013 e movimentos/capturas subsequentes? não se encontra sobretudo na vida cotidiana das grandes metrópoles e seus indivíduos que “existem e não existem” (daí também o vazio da busca do sujeito da revolução perdido…)? nesses termos, penso que “a questão”, junto com a necessária análise do fenômeno “superestrutural” instalado em brasília, poderia ser dialetizada com o debate proposto em texto recente do agamben:

    “Toda a subjectivação é hoje uma dessubjectivação. […] a metrópole pode ser vista como um imenso lugar onde um grande processo de criação de subjectividade está em marcha, do qual creio que não sabemos o bastante. […importaria identificar] o que nos processos em que o sujeito se liga a uma identidade subjectiva leva a uma modificação, a um aumento ou a uma diminuição da sua capacidade de agir. Parece-me que essa consciência está hoje muito carente e que talvez seja isso que torne os conflitos metropolitanos aos quais assistimos hoje tão opacos.” [íntegra do artigo: https://www.revistapunkto.com/2017/12/metropolis-giorgio-agamben.html%5D

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