Por Victor Hugo Silva
Um perigo invisível se aproxima dos idosos goianienses e brasileiros nas próximas semanas: uma epidemia de asilos, casas de cuidado e abrigos cheios de velhinhos mortos misteriosamente. O perigo é descobrimos que morreram e por que depois do fato. Qual o mistério?
Como os idosos são especialmente vulneráveis, suas instituições de cuidados estão (quase) fechadas, a quarentena os isola de seus parentes e seus trabalhadores têm dificuldade de se organizar, denúncias demoram a sair desses espaços.
O objetivo desse artigo é mostrar que, se não olharmos para os trabalhadores precários que cuidam dos idosos em suas casas privadas e públicas, os idosos vão morrer. As pessoas que cuidam e trabalham com eles, também. Em Anápolis, já vimos: a primeira vítima foi uma idosa de 75 anos.
É a vida de nossos pais, mães, avós e avôs, idosos vulneráveis que está em jogo e um governo que não esconde que não se importa com eles. É a vida de trabalhadores que dedicaram suas vidas inteiras a cuidar de outras pessoas, com poucos direitos e garantias — e sabem que também estão correndo imenso risco, mas não sabem como se defender dele.
Que risco?
A situação fica urgente na medida em que se anuncia a redução da temperatura e da umidade do ar. Apesar das campanhas de vacinação contra a gripe que foram antecipadas, a mesma condição que torna os idosos mais vulneráveis à “gripe suína” também os faz mais vulneráveis a infecção pela pandemia.
Por exemplo, o sistema respiratório fica mais fragilizado e a imunidade mais baixa demanda cuidados mais intensivos e próximos. Isso coloca em risco não apenas os idosos, mas aumenta a chance de contágio dos seus cuidadores e do pessoal da limpeza.
O frio também tem impacto no comportamento: os espaços de descanso coletivo tendem a virar espaços de aglomeração e a tendência ao aconchego se torna um espaço de morte. O carinho que o cuidador oferece ao idoso, sem as devidas medidas de proteção, se torna mortífero.
Os motivos para o cuidado se tornar mortífero não são culpa dos trabalhadores. São dos responsáveis pelo financiamento, pela gestão e pela regulamentação do trabalho do cuidado. Vamos explicar com exemplos concretos. Vamos descrever os sinais de como está sendo o trabalho de quem cuida dos idosos nos espaços, depois como esse cuidado vai gerar gente morta, trabalhadores traumatizados e focos de infecção na cidade.
Para que o leitor tenha uma noção do efeito dessas coisas “pequenas” em outros países até agora:
- Até 1º de maio pelo menos 12 mil de 30 mil mortes na Inglaterra foram em lares de idosos (40% do total) — entre idosos e cuidadores. Trabalhadores de espaços de cuidado morreram duas vezes mais que trabalhadores da saúde.
- Pouco mais de um terço (35%) do total de mortos nos Estados Unidos reportados até então aconteceram em lares de idosos — pelo menos 28.100 mortos até 11 de maio; no país eram idosos ou cuidadores, faxineiros e seguranças de casas de idosos.
- Mais de 90% dos mortos na Suécia, modelo usado pelo governo Bolsonaro, foram idosos de mais de 70 anos — metade deles em asilos e casas de cuidado.
- Até 6 de maio, 82% dos mortos de covid-19 no Canadá morreram em casas de cuidado de idosos. 3.436 residentes e seis trabalhadores. A situação ficou tão ruim que trabalhadores começaram a desertar dos asilos e deixar os idosos morrerem sozinhos por não conseguirem lidar com o choque, a precariedade e a falta de pagamento.
Nossos idosos e seus cuidadores estão sob ataque também no Brasil. Não podemos “esperar a pandemia passar” para lidar com isso.
Para entendermos como isso acontece e como organizar para evitar essas mortes, é importante lembrar que o Brasil está no mundo e observamos como outros países viveram a situação dos idosos durante a pandemia até agora. Mas vamos começar pelo chão. Quais os perigos que os idosos brasileiros enfrentam? Como eles aparecem aqui em Goiânia?
Perigo invisível, negligências visíveis
1) Casa de Cuidado particular Aconchego e Lar doce Lar
A visita proibida
Apesar de as visitas estarem proibidas há dois meses, foi apenas questão de a pessoa falar que queria alugar uma vaga para a mãe para conseguir entrar. Lá, pediram para lavar as mãos antes de entrar. Trabalhadores com luvas, sem botas, fizeram uma visita guiada. Idosos sem máscara tentaram se aproximar, mas a gente manteve distância e o cuidador afastou a idosa confusa. Espaços de cuidado coletivo não parecem ter sido interditados e os idosos estavam circulando livremente até quando visitas (proibidas) estavam dentro do prédio. Todos os trabalhadores estavam com máscaras, os espaços pareciam organizados. Espaços fechados com ar condicionado. Nenhum sinal de desinfecção diária. O cuidador que afastou o idoso com a luva foi o mesmo que cumprimentou a visita, que (dizia) ter lavado as mãos no banheiro. No Lar doce Lar a ventilação era um pouco melhor que no Aconchego.
Quem vê o lixo vê tudo
Se a visita guiada publicitária dava alguma aparência de segurança para o parente ansioso, o lixo contava outra história. Soro, remédios, fraldas, dejetos orgânicos e luva descartados a céu aberto, sem serem adequadamente isolados em saco de lixo. Quase nenhuma máscara descartada, um indício de que elas são reutilizadas. Fraldas com dejetos, curativos usados descartados.
Tudo sinal de que os trabalhadores são obrigados a lidar com uma realidade de economia de gastos com saco de lixo, luva descartável, são obrigados a descartar o lixo apressadamente e sem cuidado. Esse tipo de coisa normalmente já é perigo para a saúde pública e dos trabalhadores.
Durante a pandemia, pior ainda: existem evidências que a covid-19 pode ser transmitida por via fecal-oral e via gastrointestinal, quer dizer, pelas fraldas e por quem as manuseia. Ou seja, estamos lidando com material com alta probabilidade de transmitir o vírus e causar (de cara) sintomas graves em que for infectado dessa forma.
Tem mais: o vírus da covid-19 fica mais tempo ativo dependendo da superfície. Em resíduos orgânicos, ele sobrevive por tempo indeterminado. Como ele é transmitido pelas gotículas, se o descarte for apressado — digamos, uma pessoa jogando de longe e rápido uma fralda — o vírus “voa” para todo lado e pode infectar todas as pessoas próximas. Os trabalhadores da limpeza urbana, pessoas que andam na rua, também são colocados em perigo por essas práticas de descarte.
De quem é a responsabilidade por essa orientação e compra dos materiais adequados de descarte? Dos donos e gestores das casas de abrigo. Não dos cuidadores que apenas estão se adaptando a uma situação precária. Estamos falando aqui de casas de cuidado de luxo, que cada hóspede paga alguns milhares de reais de mensalidade. Certamente o dono e o gestor conseguem pagar por sacos de lixo, luvas descartáveis, número adequado de cuidadores, desinfecção, orientação adequada e equipamentos de proteção individual (EPI). Não o faz por descuido. Esse descuido pode ter consequências invisíveis sobre quem vive lá.
2) Casas de abrigo públicas e assistenciais: OVG e “outros”
Os abrigos públicos de idosos estão respeitando melhor a regra da proibição de visitas. Um bom sinal, no geral. Mas isso tem impacto diferente a depender do abrigo.
No Centro de Idosos Sagrada Família, gerido pela Organização das Voluntárias de Goiás, as entradas estavam de fato interditadas. Seguranças tirando temperatura na entrada e na saída. Os idosos que conseguimos ver pelas grades estavam com máscaras. O pessoal de jardinagem estava com máscaras, botas e luvas. Seguranças com máscaras, também. “Me sinto mais seguro aqui do que em casa!”, brincou um segurança com quem conversamos na troca de turno. E o lixo?
Ao contrário dos lares privados em que estava tudo errado, nesse caso está tudo adequadamente selado. As lixeiras com dejetos orgânicos também estava trancadas a cadeado, o que é mais higiênico e sanitário. Mas uma coisa salta aos olhos: a luva descartada de forma errada. Parece coisa pequena.
Mas se a pessoa descartou a luva errado, jogada no meio da rua, podendo infectar qualquer um, qual o motivo mais provável? Ela não se importa com os doentes? Ela não foi orientada sobre os perigos da luva descartada? Estava apressada porque tinha de trabalhar muito — note que não pudemos ver como estão os trabalhadores da limpeza — e como a utilização de luvas por quem mexe com lixo não dá muita publicidade, não é algo que teve muita atenção? Será que a pessoa talvez descartou a luva chacoalhando-a — com os perigos conhecidos de poder ter se infectado — e depois manejou o lixo? Será a pessoa que maneja o lixo depois tem contato com a louça, tem contato com o segurança, tem contato com os cuidadores, com as máscaras, com o resto? Porque havendo — pode desabar aí todo o resto da prevenção quando a pessoa volta do descarte do lixo para casa carregando o agente infeccioso, achando que está tudo bem.
Esse detalhe revela que sem um olhar apurado das relações de trabalho nos espaços de cuidado dos idosos, pode desabar toda uma série de medidas e eles se infectarem mesmo assim. Se a preocupação for apenas a de uma gestão de imagem, será ainda pior: as mortes serão escondidas, atribuídas a outras causas, até que seja impossível esconder e o pior já seja inevitável.
Os outros espaços públicos e privados de idosos contam com outro problema: trabalhadores voluntários, semi-voluntários ou semi-escravos que recebem pouco, precários, têm pouca orientação e muita sobrecarga de trabalho. Para receberem alimentação, equipamentos e comida, dependem das doações de familiares e da sociedade, coisa que a quarentena inviabiliza. Sem uma atenção a esses espaços de precariedade por parte da sociedade e dos familiares independente do hábito da visita, os idosos e trabalhadores vão morrer por descuido.
O que é possível fazer, então? Cuidar dos nosso vulneráveis e colocar as pessoas mais capacitadas, mais preocupadas e mais interessadas nisso no centro do debate. São os trabalhadores do cuidado — e os mais precários entre eles: os da limpeza e as cuidadoras e cuidadores.
De invisíveis a essenciais
Um exemplo essencial é o da trabalhadora portuguesa Catarina Salgueiro Maia. Ela conta como começou a organizar a luta em um lar de idosos: “No outro dia aconteceu no meu lar. Estávamos a lavar a louça do almoço de mãos, pratos, talheres, restos de comida e tudo. Depois reparei num prato que era de um idoso do lar que estava infetado com covid e que acabou por morrer na passada quarta-feira. Então não selaram nem nos indicaram nada?”
Depois que percebeu essa negligência, Catarina tirou a seguinte lição: “As pessoas habituaram-se durante anos a não nos ver, a não olhar sequer para nós. Somos uma classe invisível que agora as pessoas perceberam que se tornou essencial”. Foi a partir do olhar da trabalhadora que foi possível lutar, reorganizar o trabalho e salvar as vidas dos trabalhadores e idosos de Luxemburgo.
“Mas Catarina é portuguesa, europeia. No Brasil não é assim. Muito menos Goiânia.” Maria, cuidadora brasileira e doméstica há mais de trinta anos, discorda. Ela conta como o cotidiano de cuidar de uma idosa com Alzheimer avançado vem ficando cada vez mais pesado com a covid-19 e o abandono dos parentes.
“Acumulo função de motorista e cuidadora, sei de tudo que a senhorinha precisa, mas está difícil”. Ela admite que às vezes perde a paciência quando perguntada se acha que a sobrecarga de trabalho atrapalhava às vezes: “Às vezes não, sempre. A gente gosta muito, tem carinho e apreço, mas fica cada vez mais difícil manter a paciência, ficar tranquilo, lembrar de cada coisa para fazer. Então pode acabar esquecendo de algo importante, distraindo. É muito ruim”. Ela conta triste que os parentes, seus patrões só pegam no pé, gritam com ela “não gostam de tratar a pessoa idosa de jeito nenhum”.
Estranha luta pela redução dos direitos alheios
Maria trabalha há um ano sem carteira assinada. Não tem registro porque falaram que ela precisava de curso. Na verdade, a regulamentação da profissão de cuidador e seus direitos foi vetada por Bolsonaro em 2019. O veto foi fruto do lobby do Conselho Federal de Enfermagem que afirmava que regularizar esses trabalhadores iria “desvalorizar” a sua corporação. Situação particular, pequena? Pelo contrário: desde 2018, a profissão de cuidador de idoso é a que mais cresce no Brasil e hoje assume mais importância ainda. Note que em 2018, ano de plena ascensão bolsonarista e crescimento da profissão do cuidador, também proibiram enfermeiros de ensinar técnicas adequadas de cuidado para esses outros profissionais.
Estranho lobby que busca precarizar e dificultar a vida de outros trabalhadores para fortalecer sua profissão. Mais estranho ainda se considerarmos que foi um lobby feito a um governo que abertamente concorda com “abater os idosos” para reduzir custos, que assume uma retórica de extermínio dos vulneráveis e que vem disfarçando, sem protesto dessa entidade corporativa, mortes evitáveis por negligência chamando-as de mortes por comorbidade, como nesse comunicado (sinistro) da Secretaria de Saúde de Alagoas sobre cuidados “especiais” para os idosos do estado, que tiveram zero mortos por covid até então… de outras coisas não se sabe. Mais estranho ainda se considerarmos que “eugenia” era um termo em discussão acadêmica na Revista Brasileira de Enfermagem até 2002. Mas voltemos a Maria, que só quer saber de como cuidar melhor da sua idosa.
Maria conta que “fosse melhorzinho um pouquinho”, tanto ela como a menina que trabalha antes com a idosa “continuariam lá tranquilas”. Mas uma delas já não aguentou. Tem mais de sessenta anos. Não tem férias. “Teve um ano que foi diretão”, isto é, ficou um ano ‘morando’ na casa dos patrões cuidando da idosa. Durante a pandemia ela ficou 90 dias direto “sem poder sair da casa”. Ela também está cansada de só poder tirar folga de 15 em 15 dias — situação que não está prevista em nenhum contrato de trabalho. Maria teve de assumir o trabalho da pessoa que se demitiu por não aguentar mais e não querer comprometer a segurança dos demais.
Não foi a única “doméstica” (na verdade profissional poli-funcional) e cuidadora obrigada a ficar na casa do patrão sem saber o que podia acontecer. A primeira vítima de covid-19 no Rio de Janeiro foi uma delas: Cleonice Gonçalves, 63 anos. Era de grupo de risco e não foi informada dos riscos que corria.
Essa situação não foi incomum e resultou na definição do serviço doméstico como essencial a nível local — de forma parecida com os call centers, que foram definidos como essenciais logo após uma onda de paralisações (do ponto de vista dos patrões aqui e dos trabalhadores aqui).
Catarina Salgueiro Maia tem outra definição do trabalho essencial: “Limpamos os hospitais, os lares, expomo-nos ao perigo para ganhar meia dúzia de tostões. Então, caramba, já basta de sermos tratadas como ralé”. Também tem outra avaliação do seu trabalho a cuidadora Maria, goianiense e mulher comum, mas que não quer deixar que matem a idosa que cuida:
Eu acho que o cuidador tem de ser uma pessoa mais valorizada, né? A gente tem de procurar melhoras e ter mais cuidado. Essa é uma fase da vida das pessoas que elas precisam muito, muito de atenção e carinho, pois na maioria das famílias, elas largam os idosos. Poucas pessoas vêm perguntar: Você está bem? Você está mal? Ninguém vem. Nem liga. Você precisa de ver, é uma coisa assim interessante. Então a gente precisa ser valorizado.
Botes salva vidas: idosos primeiro!
Já começaram a acontecer picos de infecção (como aqui) em várias casas de repouso da região sul e sudeste do Brasil. As mortes são muito rápidas e as medidas são publicitárias, ineficazes e posteriores aos fatos. Quando existe algo, é empurra-empurra de responsabilidade. Enquanto isso, morrem idosos e cuidadores.
Precisamos de EPIs, desinfecção diária, protocolos de cuidado, interdição imediata dos descansos coletivos, deslocamento dos idosos de espaços fechados para outros mais ventilados, medidas específicas de proteção de idosos e trabalhadores para cada instituição e espaço. Precisamos lutar para que os trabalhadores do cuidado tenham voz, valorização, protagonismo e condições de se cuidar e cuidar adequadamente das pessoas que estão sob sua proteção.
Para que isso seja possível, é necessário um compromisso das famílias dos idosos com seus parentes, uma aliança dessas famílias com os trabalhadores e um compromisso por boas condições desses lares. Também é necessário que todos nós, trabalhadores que um dia seremos idosos, tomemos o compromisso de defender ativamente esses trabalhadores, ajudá-los a obter orientações e a se organizarem onde eles têm dificuldade de fazê-lo.
Ainda é possível evitar a maioria das mortes. Não precisamos submeter a nossa classe ao trauma de ter gente morrendo sob seus cuidados, depois morrer e infectar suas famílias. Não precisamos nos submeter à culpa de ter deixado nossos idosos morrerem por negligência. Quem quer exterminar os idosos não somos nós, são o governo Bolsonaro e seus cúmplices. Mas apenas nós, em ação solidária ativa e coletiva, podemos ajudar os trabalhadores do cuidado a defendê-los.
Não fazê-lo agora é aceitar tornar-nos cúmplices desse imenso crime que pretendem cometer contra nossos parentes, pessoas que amamos, pessoas que cuidamos e contra nós mesmos. Podemos evitar esse massacre. Vamos agir enquanto é tempo.
Esse texto é o primeiro de uma série de textos chamada Botes Salva Vidas: saídas dos trabalhadores diante da pandemia. A metáfora é inspirada no valoroso exemplo dos trabalhadores do HMS Titanic, que salvaram o máximo de vidas de pessoas vulneráveis à revelia da incompetência da direção da navegação. Impediram que os ricos pulassem a fila pisando nas cabeças das crianças, idosos e mais frágeis. Garantiram até o fim uma saída calma e ordeira de todos os possíveis, depois saíram. É a saída dos trabalhadores diante da catástrofe: tocar violino se for esse o seu talento, manter a calma, salvar vidas e não compactuar com a infâmia. Para fazer uma proposta à série, entre em contato com [email protected].
companheiro, é muito acertada essa iniciativa e muitas das colocações que você apresenta.
Espero que mais gente consiga ver as coisas sob esse ângulo, neste momento difícil e as vezes confuso.
“(…) estamos todos no mesmo barco
mas: quem é pobre afunda primeiro.”
Não foi diferente naufrágio do RMS Titanic…
1ª classe: 203 resgatados e 122 mortos.
2ª classe: 118 resgatados e 167 mortos.
3ª classe: 499 resgatados e 817 mortos.
Tripulação: 212 resgatados e 673 mortos.
Os versos e os dados estão em H. M. Enzensberger, O Naufrágio do Titanic: uma comédia, São Paulo, Cia. das Letras, 2000. As estatísticas variam ligeiramente, mas é inegável que, em números absolutos e relativos, a morte recaiu muito mais fortemente sobre a terceira classe. Como mostra uma rápida consulta à Wikipédia, enquanto quase todas as mulheres e crianças da primeira e da segunda classe sobreviveram, isso é verdade para apenas metade das mulheres e um terço das crianças da terceira classe.
Apesar de atitudes louváveis como a de um camareiro “que organizou três viagens ao interior do navio escoltando grupos de passageiros de terceira classe até o convés dos botes”, “ao menos em alguns lugares, a tripulação do Titanic parece ter impedido ativamente a fuga dos passageiros dos decks inferiores. Algumas das barreiras estavam trancadas e protegidas por membros da tripulação, aparentemente para evitar que os passageiros corressem em direção aos botes salva-vidas” (ainda segundo a Wikipédia).
Segundo o testemunho de uma sobrevivente, “antes de todos os passageiros dos decks inferiores terem uma chance de salvar suas vidas, os marinheiros do Titanic fecharam as portas e os corredores que levavam para cima a partir da seção de terceira classe (…). Uma multidão estava tentando chegar até um convés mais alto e lutava contra os marinheiros; todos batendo, brigando e falando palavrões. Mulheres e algumas crianças estavam lá rezando e chorando. Então, os marinheiros abaixaram as escotilhas que levavam à seção de terceira classe. Eles disseram que queriam manter o ar embaixo, então o navio poderia ficar de pé por mais tempo. Isso significava que toda a esperança havia desaparecido para aqueles que ainda estavam lá”. (S. Barczewski, Titanic: A Night Remembered, Londres, Continuum, 2006).
W. Lord (A Night to Remember, Londres, Penguin, 1976) também relata a dificuldade dos passageiros da terceira classe em chegar aos botes, e afirma que parte simplesmente permaneceu onde estava — alguns foram vistos orando no refeitório. Ainda segundo o mesmo autor, os trabalhadores do restaurante da primeira classe, que era terceirizado, não eram oficialmente parte da tripulação, mas também foram impedidos de se aproximar dos botes. Dentre eles, os únicos a conseguir foram o gerente, o chef e seu assistente, que não vestiam os uniformes.
A situação dos músicos da banda, todos mortos no naufrágio, era semelhante: eles eram contratados por uma agência de Liverpool, que atreveu-se a enviar uma carta cobrando supostas dívidas ao pai de um deles depois da tragédia. Não está claro quem deu a ordem para que a banda tocasse enquanto o navio afundava, nem se eles sabiam que não havia botes para todos (ver D. Butler, Unsinkable: the full story of the RMS Titanic, Mechanicsburg, Stackpole, 1998) — o que não impede alguns de exaltar até hoje, com um toque mórbido, a disciplina com que cumpriram seu dever de entreter e acalmar os condenados.
“Atenção Atenção! Mulheres e crianças primeiro! — Como assim?
Resposta: We are prepared to go down like gentlemen. —
Ah bom. — Mil e seiscentos ficam para trás. A calma a bordo
é inimaginável. — Aqui fala o capitão. São duas
em ponto, e eu ordeno: salve-se quem puder! — Música!
Para o último número o regente da orquestra ergue sua batuta.”
(Novamente Enzenberger, O naufrágio do Titanic.)
Há, ainda, indícios de que os botes foram sub-ocupados pela tripulação que coordenava a evacuação e que permitiriam resgatar mais cinco centenas de pessoas (ver, por exemplo, o livro de Barczewski).
Não deixa de ser interessante evocar o célebre naufrágio em meio à catástrofe atual — como se fez de uma perspectiva crítica aqui: https://feverstruggle.net/pt/2020/04/29/autogerindo-o-titanic/. Mas é a tripulação do RMS Olympic que fornece um exemplo realmente interessante: poucas semanas depois do naufrágio de seu primo mais novo em 1912, parte dos trabalhadores fez uma greve reivindicando a instalação de mais botes salva-vidas adequados, o que levou ao adiamento da partida do navio. 54 marinheiros deixaram a embarcação e foram presos por se amotinarem.
“CANTO DÉCIMO OITAVO
Com o que, disse a voz branca, eles se puseram a remar
o mais rápido que podiam, para longe
do impermeável ponto vácuo
em que o Titanic afundara, mas
dos gritos eles não escaparam. Cada
um daqueles gritos era diverso
do outro, o estridente berro de medo
diverso do bramido rouco, a súplica
lancinante claramente diversa do uivo sufocado,
e assim por diante, prosseguiu a voz na mesma toada,
e por aí afora, e não eram poucos
os que gritavam, mas milhares, considerem também
que o mar não estava agitado, vento nenhum soprava,
as vozes, disse a voz, alcançavam bem longe,
eram bem distintas, e assim foi que se ouviu
no bote, temos que dar meia-volta, ainda há espaço,
diziam uns, de jeito nenhum, eles vão se
agarrar a cada prancha, diziam outros,
e afogar todos nós em meio à gritaria, e assim foi que
se continuou a discutir e a remar, até que depois
de uma hora inteira bem longa, falou a voz
em surdina, as vozes minguaram, só esporádica,
fraca, ouvia-se ainda uma tosse aqui e acolá,
um guincho animalesco mal e mal perceptível que
afundava sem aviso na escuridão.”
(Enzensberger, O naufrágio do Titanic)
Quer dizer que se os trabalhadores gerissem o Titanic desde o projeto até o final – incluindo
– bote salva vidas para todos desde o projeto do barco
-uma resposta mais rápida para a situação do iceberg
-um tratamento igualitário pautado pela necessidade das pessoas
Poderia ter sido muito melhor? Eu concordo bastante. Aliás, também concordo que os trabalhadores realizam barbaridades quando colocados em situações absurdas sem terem poder sobre o que pode ser feito nem informações suficientes sobre as formas eficazes de salvar as vidas que merecem ser salvas (todas). Você confunde o comportamento dos patrões do Titanic com o dos trabalhadores. Mesmo no seu pior momento, eles fizeram o melhor para salvar vidas., todas as possíveis Os patrões queriam só salvar a própria pele mesmo. Teve alguns trabalhadores que fraquejaram, que foram enganados? Claro. Se os trabalhadores mandassem nesse mundo, essas catástrofes /não chegariam a acontecer/.
Se os trabalhadores do HMS Titanic conseguiram salvar esse tanto de vida mesmo quando o capitão ficou paralisado, nas piores condições possíveis, imagina se mandassem no navio e não houve terceiriziação, fossem todos iguais? Eu consigo imaginar. Não só consigo imaginar, mas acho possível criar uma situação assim e estou agindo para que seja possível. Para que não precisemos nunca mais ouvir súplicas irrespondíveis na história da humanidade.
Notem que a série fala da postura DOS TRABALHADORES, não das decisões dos patrões. Vocês precisam aprender a separar as coisas. Senão, vão começar a achar que são cúmplices… ou talvez sejam ou percebam que estão sendo sem querer? Ainda dá tempo de voltar atrás, companheiros. Vamos ajudar a organizar os botes salva vidas. E não a matar trancado quem nunca teve esperança.
Curioso que nada tenham a dizer a respeito do massacre dos idosos, também. Por certo na cabeça de alguns, já estão condenados a morte. Depois vem reclamar de metáforas mórbidas.
O comentário assinado como “a saída dos trabalhadores diante da catástrofe” me deixa perplexo!
O comentador se deu ao trabalho de fazer uma pesquisa de um tema completamente lateral ao artigo e ignorou por completo as trabalhadoras da saúde que tentam fazer com que trabalhadores idosos não morram!
Ainda fala o que os trabalhadores deveriam ter feito no passado “uma greve para garantir botes para todos”, parece indicar que agora que essses incautos trabalhadores não fizeram a greve preventiva não há nada para fazer diante da morte que se aproxima!
Enquanto o artigo, e a proposta de outros artigos mostra justamente o contrário. Ou seja, de que forma os trabalhadores buscam por meio da auto-disciplina, maneiras de impor aos capitalistas formas de garantir a sobrevivência de demais trabalhadores.
Além do absurdo da assinatura, se arrogando como o ilumidado que sabe a maneira dos trabalhadores se portarem diante da catástrofe, quando passa por cima das experiências concretas aqui narradas!
Parece que LL não entendeu nada, nem ironia da assinatura. O diabo mora nos detalhes. Aqui e ali, uma posição política se desenha entre alguns artigos publicados neste site. Lateralmente, é na chamada para a série “Botes Salva Vidas”, ao lado de informações incorretas, que se afirma “a saída dos trabalhadores diante da catástrofe: tocar violino se for esse o seu talento, manter a calma, salvar vidas e não compactuar com a infâmia”. Seja lá o que isso signifique, é macabro apresentar o sacrifício dos trabalhadores do Titanic, e em especial dos músicos da banda, no fim absurdo que tiveram, como saída para qualquer coisa.
O incômodo deve tê-lo feito ler apressadamente o final do comentário acima, porque em lugar algum se afirma que “os trabalhadores deveriam ter feito no passado ‘uma greve para garantir botes para todos'” (estranho que nem mesmo o trecho citado por LL exista no texto). Apenas se retoma um fato relegado ao esquecimento à sombra da mistificação do naufrágio e da glorificação de seus trabalhadores, a qual se limita a repetir a cantilena dos patrões e esconde que naquela noite, mais uma vez, os pobres afundaram primeiro, muitos deles impedidos de embarcar e condenados ao afogamento pelas mãos de seus iguais.
Não se trata de imaginar um passado alternativo, como tenta fazer o Victor. A greve da tripulação do RMS Olympic só aconteceu por causa da tragédia que se abateu sobre seus colegas. Esta luta, obscurecida por tantos filmes e livros sobre o Titanic, talvez tenha muito mais a ver com o exemplo de Catarina, que o artigo mal acompanha: ao contrário dos marinheiros do Titanic, essa trabalhadora da limpeza terceirizada em uma casa de repouso de Luxemburgo questionou as ordens que recebeu de cima, tornou-se delegada sindical e fez da quarentena um período de luta.
Caro “a saída dos trabalhadores diante da catástrofe”,
Sinto muito se ofendi seu tio avô que era violinista do Titanic e morreu lá. Mas fico feliz que você tenha entendido a metáfora. Não usei o exemplo do Olympic porque a tragédia FOI EVITADA. Nós estamos NO BARCO AFUNDANDO AGORA. Eu sou macabro mesmo. Assumo isso. Falo de morte, assassinato, extermínio. De novo, se seu tio avô violinista tá sendo ofendido pela metáfora, sinto muito. Mas o que você tá dizendo que “o artigo mal acompanha” é a tese central do artigo. Nâo falei mais de Catarina porque não entrevistei ela, evidentemente. Entrevistei trabalhadores que não estão ainda em luta, estão começando a se organizar. A proposta é começar o debate mesmo. No meio da catástrofe. Porque é o que tá dando pra fazer. Pode me considerar o violinista. Eu sei que vou morrer, mas prefiro que todos fiquem calmos, salvemos o máximo de vidas e depois a gente cobre justiça pelos erros que nos levaram até aqui. Inclusive do nosso lado. Depois cobre a conta dos meus pais e meus avós, porque eu vou garantir que eles fiquem vivos e foi por eles que escrevi esse texto: para que não ficassem mal cuidados EM HIPÓTESE ALGUMA.
Abraços macabros, porém solidários.
“Contra-revolução significa: sedução ao suicídio e envolvimento das vítimas na cumplicidade”, disse alguém certa vez. Começa a ficar mais claro, nas palavras de Victor, o elogio macabro ao suicídio levado a cabo no Titanic, onde, como hoje, o cumprimento calmo disciplinado das ordens não contribuiu para salvar o máximo de vidas e sim para privilegiar os mais ricos no resgate, e a tripulação foi cúmplice do afogamento de seus iguais.
O comentarista acima a cada nova intervenção reforça os sinais sobre seu caráter.
Primeiro, se esconde no anonimato para atacar companheiros. Não se trata de escapar da burocracia partidária, ou no contexto repressivo, é usar disso para tentar atacar os outros.
Segundo, faz acusações ao site sem mencionar nenhum artigo que proponha uma ausência de lutas, sem ter coragem de debater nos referidos artigos.
Terceiro, quando se tiram as consequências das posições defendidas nos seus comentários acusa aos outros de não entenderem as coisas.
Quarto, ignora por completo a defesa explícita de fazer lutas para que os trabalhadores sobrevivam, presente no texto e nos comentários. Para acusar os outros de ter uma fascinação pelo suicídio.
A atitude de ignorar o central do texto e distorcer as consequências práticas das lutas defendidas ali, é, indubitavelmente, canalha.
Quando se lê o que não se quer, parte-se para os insultos ao caráter do autor. Onde até este comentário de LL se havia atacado um companheiro?
Tento apenas colocar problemas e apontar confusões numa posição política que ora se ensaia aqui, ora aparece acolá, mas que ainda não diviso por inteiro, talvez porque não se definiu completamente. Quem sabe assim a tripulação desvia o navio.
Não sei a que artigos LL se refere, mas incomodo e incomodarei os camaradas sempre que puder ao me deparar com linhas como as que encontrei na nesta chamada breve e lateral para a série “Botes Sala Vidas”, cujas consequências talvez não se queira encarar. Mas, se importa mais saber quem escreve do que se dar ao trabalho de pensar sobre o que escrevo, talvez o esforço seja de fato em vão.