Por Victor Hugo Silva
Um crime que ainda não tem nome — e poucos números
São 433.238 casos de Covid-19 confirmados oficialmente até agora no Brasil. De acordo com estudo feito pela Universidade Federal de Pelotas, esse número pode ser até sete vezes maior. Um mês atrás não se sabia nem quantos testes haviam sido feitos. Hoje, sabemos: foram… em torno de 350 mil. Estima-se que 75% dos testes comprados são pouco confiáveis, não há inspeção de qualidade, então perdemos na finalidade primeira destas testagens, que seria uma averiguação mais fidedigna da contaminação da população. No fim saímos mais perdidos da utilização desses testes mal feitos do que entramos.
Fato é que com mais de mil mortes ao dia pela pandemia, o Brasil substitui os Estados Unidos como novo epicentro global da pandemia.
Dobra o número de mortes evitáveis oficiais a cada semana, orgulho nacional. 6.681 de assassinatos entre 20 e 27 de maio. O Reino Unido registrava 3.500 mortes evitáveis na mesma semana. Até agora foram pelo menos 35 mil. A pátria grande Brasil fica atrás apenas dos EUA, que registra o impressionante número de 11 mil mortes evitáveis… diárias. O total de assassinatos é 100 mil.
Por que chamo de evitáveis? Basta olhar outros países.
Nova Zelândia registrou zero mortes. Costa Rica registrou zero mortes. Durante toda a pandemia, o Vietnã registrou 26 mortos, sendo zero mortes essa semana. Grécia, depois de vinte anos de austeridade bruta e população idosa, registrou 175 mortes (durante a pandemia inteira). Portugal chegou a mais de mil mortes (totais não diárias… depois de pedirem reabertura precoce). Uruguai teve 22 mortes por Covid-19 (total, até agora). Já o Paraguai, 11 mortes, Argentina depois de três meses, chegou a 508, (menos da metade do que morre no Brasil diariamente).
Existe nesses países algo de diferente e especial que fez com que seja possível que um crime dessa magnitude seja cometido no nosso país e não neles? Um crime ainda sem resposta efetiva de uma sociedade que está sendo assassinada e prestes a sofrer um trauma sem proporções conhecidas? Melhor inverter a pergunta: o que existe no nosso país que permitiu isso?
A segurança dos criminosos no poder ficou tamanha que hoje podem publicar impunemente o que antes falavam nas entrelinhas. De acordo com reportagem publicada pela Reuters, Solange Vieira, importante articuladora da reforma da previdência ano passado, disse o seguinte quando pediram seu prognóstico econômico sobre a pandemia: “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos… Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso deficit previdenciário”. A Superintendência de Seguros Privados, gerida por Solange, apenas esclareceu que Solange participou da reunião a convite do então ministro da saúde Mandetta para “observar os impactos de vários cenários”, “sempre com foco na preservação de vidas”. Como assim?
Preservar vidas parece significar desaparecer com mortos, já que da base dos dados de óbitos no Brasil desapareceram até agora pelo menos 500 mil mortos, enquanto no Rio de Janeiro e vários outros lugares começou a conversão das mortes por Covid-19 em qualquer outra coisa. Já em Minas Gerais foram mais espertos e esconderam os rastros desde o começo. Pernambuco, por exemplo, teve um incrível crescimento de 7.361% de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) do ano passado para cá. Eles sabem a enormidade do crime que cometeram e estão a esconder seus rastros. Será que vai dar certo?
Não é o “capitalismo”, estúpido, são alguns capitalistas!
Houve um momento decisivo em que o destino da força de trabalho do Brasil, EUA e Reino Unido pendeu entre o abate e a engorda para os setores de capitalistas que disputam o controle desses países. Isto aconteceu entre fevereiro e o início de março deste ano, no debate da preparação de medidas de prevenção da pandemia.
Tudo indica que houve uma disputa entre os eugenistas que apostam no descarte acelerado e na redução do consumo dos trabalhadores enquanto outros capitalistas apostavam na qualificação de uma força de trabalho diversificada e no aumento da produtividade.
Os eugenistas venceram não apenas os outros capitalistas, mas derrotaram também e principalmente a classe trabalhadora que não queria ser descartada. Como foi possível?
Deixar eles pensarem que estariam vencendo…
Dj Urso Linguista explica em seu insight tático sobre a forma de ação que usaremos para explicar como fizeram para que não conseguíssemos reagir até ser tarde demais. Fez isso respondendo a um pobre cidadão enquanto este reclamava, em meio a centenas de mortes, que “não se podia ter um dia de paz no Brasil”. Dj Urso respondeu:
A ideia é ocupar o mais rápido possível o espaço público. Colocam-se os “blindados” na frente e vai avançando, sem dar tempo dos adversários sequer se organizarem para resistir.
Tenho chamado essa tática de “blitzkrieg discursiva”.
Como isso se deu na prática no Brasil? Soaram os trombones da guerra à pandemia! Foi em fevereiro/2020, quando o Brasil estava a cobrar da OMS que classificasse a Covid-19 como pandemia — na época a OMS considerava apenas uma “doença global”. Foi publicado em fevereiro um Plano de Contingência Nacional Para Infecção Humana pela Covid-19. No campo legislativo foi aprovada a Lei 13.979/20 de combate ao surto de coronavírus.
Ainda em fevereiro, o governo no campo prático, antecipa a campanha de vacinação contra a gripe, pois era sabido que o pico da Covid-19 poderia coincidir com o início dessa epidemia anual no Brasil. Mandetta, então Ministro da Saúde, seguiu seu trabalho miúdo, discreto, de preparação no Brasil a este embate, enquanto Bolsonaro ia a Miami (EUA) encontrar-se com Trump. Aqui, o Ministro da Saúde garantiu verbas para os estados que tivessem dificuldades de enfrentar o surto de corona, instituiu uma normativa proibindo cruzeiros, recomendando autoquarentena a viajantes, sugerindo que não houvesse eventos com aglomerações, o próprio Conselho Nacional de Saúde cancelou sua reunião seguindo tal orientação, normativas facilitando atestados digitais e uma recomendação para assegurar a saúde dos servidores terceirizados foram editadas. As datas posteriores das recomendações das normativas e recomendações para servidores têm a ver com o processo de tramitação de publicação dos documentos, mas a direção em que eles vão é evidentemente a dessa primeira fase.
Uma reportagem da revista saúde divulga com otimismo as medidas que seriam tomadas no dia 13 de março. Coisas comemoradas como já decididas até hoje estão sendo objeto de luta em locais de trabalho como os //call centers//. Ou seja, o que foi decidido não chegou a ser implementado.
Essas medidas estavam previstas desde fevereiro de 2020. O que aconteceu? Seja lá o que for as consequências eram sabidas: “Se não adotarmos nenhuma das medidas, o número de casos no Brasil pode dobrar a cada três dias”, ponderou Wanderson de Oliveira, então Vigilante em Saúde do Ministério da Saúde em coletiva de imprensa.
…até ser tarde demais
Mencionamos que enquanto o Ministro da Saúde fazia alguma preparação no Brasil, Jair Bolsonaro, presidente do país, estava em Miami (EUA). Para quem não lembra, haviam indícios fortes que um plano deliberado e compartilhado internacionalmente de extermínio eugênico citado na “Internacional Olavista”, como escrevi aqui e já foi detectado por jornais de direita como a Revista Crusoé. Vamos demonstrar como isso é transparentemente óbvio com os fatos com uma pequena linha do tempo. Para efeito de comparação e aferição, a linha do tempo brasileira pode ser conferida aqui. A do Reino Unido aqui. Já a dos Estados Unidos aqui.
Ao fim de fevereiro deste ano, Dominic Cummings, principal assessor de Boris Johnson, Primeiro-Ministro da Inglaterra, deixa vazar que a estratégia britânica de combate à pandemia seria “imunidade de rebanho, proteger a economia e, se isso significa que alguns pensionistas morreriam, que pena”. Trump, presidente dos EUA, se reúne com o Primeiro-Ministro Modi da Índia para debater medidas de combate à Covid-19. Em abril, Bolsonaro agradecia efusivamente ao premiê indiano pelo “gesto honroso” de providenciar insumos para produção de cloroquina em massa.
Ainda em março, em Miami, Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, que até então aparentava desinteresse pela questão da saúde, para além de alguns remédios “milagrosos”, lança algumas declarações estranhas em Miami após reunir-se com Trump. “Esse vírus está superdimensionado”, “muito do que falam é fantasia, isso não é crise”, “outras gripes mataram mais que essa”.
Enquanto isso, na Inglaterra, a assessoria técnica do governo de Boris Johnson aconselha não ser necessário um lockdown. Esse governo, então, permite um evento de grande importância para o povo inglês, o Festival de Cheltenham, reunindo mais de 60 mil pessoas entre 10 e 13 de março de 2020. Várias pessoas saíram infectadas desse festival.
Quando Bolsonaro volta ao Brasil, já sob pressão e influência dos brasileiros e de seus ministros, está aparentemente comportado, domesticado, sob controle das instituições democráticas. Ele até se reúne com máscara, desconvoca os protestos de 15 de março, não toca nos apoiadores no dia 14 que insistem no ato apesar de ir cumprimentá-los, como é seu costume, até o dia em que ele resolve mudar tudo!
Território ocupado, hora de mudar as regras
A reportagem de Stephen Eisenhammer e Gabriel Stargardter matou a charada… Uma vez chegado ao Brasil, Bolsonaro, coordenado e articulado com seus pares internacionais, tratou de desmontar tudo que foi feito até então. Dois meses de preparação, desfeitos em dias.
Quem quiser conferir, basta olhar a diferença entre a diretriz de 12 de março e 13 de março de 2020. Demorou um pouco para ficar perceptível a real intenção, mas conseguiram desmontar burocrática e politicamente toda a estrutura de cuidado e apoio de combate à pandemia. Em silêncio. Deixando Mandetta como a cara do Ministério da Saúde, a pessoa que havia reconhecidamente preparado várias medidas fortes e eficazes de defesa: a face da vida e da racionalidade contra a face da morte e da loucura.
Um futuro sem mortes que foi evitado…
Saiu em 27 de maio de 2020 um artigo de Fernando Reinach em que ele explica como prefeitos de cidades menores podiam evitar o pior com medidas simples e eficazes à revelia do Governo Federal. A receita não é dele: “é usada com pequenas variações pelos países que controlaram suas epidemias e estão reabrindo suas epidemias”. Esse futuro possível também pode ser vislumbrado, pelos que se interessam, nas ocupações e na rede de solidariedade organizada pelo Movimento de Luta de Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e sua rede de solidariedade. A outra opção — chamada de opção pela morte “é deixar a população se contaminar livremente, as mortes saírem fora de controle e esperar que a doença se vá quando 60 a 70% da população já tiver contraído o vírus e 0,5 a 1% da população tiver falecido”. Pelo menos 220 mil mortes — sendo muito otimista. Mas não foi esse o futuro que aconteceu, apesar dele ter sido possível.
De quem é a culpa?
Dos executores
Já sabemos que não foi esse o futuro que se realizou em sua maior parte. A partir do dia 15 de março, Bolsonaro se juntou à multidão em protesto. Houve um surto de infectados em volta do próprio presidente. Conta-se que ali ele teve contato com 272 pessoas. Responsabilidade pessoal, direta.
Vamos às responsabilidades indiretas. Além da sabotagem interna no Ministério da Saúde que foi revelada pela reportagem da Reuters, há indícios fortes de que as manifestações convocadas pelo negacionismo bolsonarista aumentaram os índices de infecção e diminuíram o isolamento social onde aconteceram. Essas manifestações também podem ter infectado mais de 5 mil policiais apenas em Niterói, que, por sua vez, espalharam a infecção por onde mais poderiam ter circulado. Fatos que se repetiram provavelmente no resto do país. A situação chegou a tal gravidade que o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso decide proibir Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, de fazer campanha para a população furar o isolamento.
Bolsonaro ignorou solenemente a tutela judicial. Logo após essas manifestações iniciais para tentar impedir a resistência dos trabalhadores e dos fiéis a se infectarem, Bolsonaro decretou um número crescente de atividades essenciais: desde call centers até academias de ginástica, barbearias e igrejas.
Ao fim Bolsonaro sai vitorioso e declara: “Nós sabemos que devemos nos preocupar com o vírus, em especial os mais idosos, quem tem doenças, quem é fraco, mas (sem) essa de fechar a economia”. Finis.
Dos cúmplices
Mas Bolsonaro fez tudo isso sem resposta? E a heroica resistência de Mandetta, o ainda Ministro da Saúde? Dos governadores? Dos militares razoáveis? Como foi isso? Vamos ser sinceros a respeito dessa questão. Não houve, por parte do Estado restrito, isto é, das instituições “democráticas”, nenhuma tentativa séria de quarentena real. Não houve fechamento forçado de estabelecimentos, multas pesadas para empresas que desobedecessem, nem lockdown de nada.
O que houve foi uma maior ou menor leniência ou reforço (pequeno) a uma quarentena organizada por conta própria pelos trabalhadores contra seus patrões e gestores. Se não aconteceu ainda o pior no Brasil, foi única e exclusivamente por luta dos trabalhadores. As aparições televisivas de Mandetta, os decretos dos governadores, as tentativas de quarentenas de prefeitos, todas essas tentativas só conseguiram algum efeito contra a sabotagem deliberada do Governo Federal quando conseguiram alguma sintonia com as lutas e o nível de consciência do perigo dos trabalhadores de cada localidade. Durou pouco.
No “dia do fico” do Mandetta, ele abriu mão do apoio à quarentena enquanto ministro em prol do “distanciamento coletivo” (imunidade de manada) e agora os governadores também estão todos abrindo mão de qualquer teatro de resistência em prol da rendição incondicional com nomes criativos como quarentena inteligente ou o mais comum “flexibilização de quarentena”. Não se enganem: nessa rendição não foram as vidas deles que entregaram, mas as dos trabalhadores dos seus estados. Foram as nossas vidas que foram para a roleta russa em prol da paz democrática dos cemitérios.
E isso foi porque mesmo as “boas” medidas de Mandetta e dos governadores foram muito pouco e muito tarde. O editor do The Lancet, principal revista médica do mundo, já alertava que eram necessárias medidas eficazes e discussão com a população desde janeiro deste ano. Note que esse comentário do editor do Lancet estava sendo feito contra Boris Johnson, Primeiro-Ministro inglês, mas se aplica perfeitamente a nós brasileiros trabalhadores.
Se não devemos a resistência que existiu até agora ao “herói” Mandetta, nem aos governadores, será à esquerda? Tampouco foi por ali. A estratégia do campo oposicionista “democrático” foi de deixar as coisas darem ruim para desgastar esse governo com olho em 2022, como documentado aqui. A avaliação era a seguinte: no início da pandemia, que todos sabiam ser mortal, e, para os pobres e vulneráveis desse país, especialmente mortal:
Impeachment ou ofensiva contra Planalto estão fora do horizonte de líderes políticos; avaliação é que presidente, isolado entre radicais, verá popularidade cair com coronavírus, crise na economia e novas dificuldades no Parlamento.
Das vítimas
Assim que começou o debate a respeito do que fazer na pandemia, alguns números surpreenderam muita gente que projeta sua ignorância na classe trabalhadora. Surpreendeu ainda mais os trabalhadores, baixos gestores e elites fracassadas “intelectuais” que atribuem animalidade e pouco cuidado com higiene aos trabalhadores “pobres”. Nas favelas, 96% dos moradores defendia o isolamento social horizontal contra o coronavírus. 76% dos informais e desempregados concordava com isolamento horizontal também. Entre os assalariados sem registro, a taxa era de 79%. Entre os que procuram emprego, a aprovação do isolamento horizontal era de 75%. A concordância com o isolamento horizontal era contraposta ao vertical, então implicava numa recusa da estratégia do isolamento vertical, da “imunidade de rebanho”. A única categoria em que não havia um apoio claro ao isolamento horizontal era entre os “empresários” (que na pesquisa vão de MEI a empresários mesmo): 49%.
Existia, então, um amplo movimento na base da sociedade para tentar se defender da pandemia de forma mais ou menos autônoma, como aconteceu em Paraisópolis (comunidade paulista). Foi o exemplo mais visível, mas houve vários outros: redes de vizinhos em prédios, movimentos de favelas, redes de solidariedade entre ocupações urbanas como as do MLB
(Movimento de Luta de Bairros, Vilas e Favelas) e até movimentos empresariais. Diante de uma ação fraca e contraditória do governo, predominou uma quarentena através da autodisciplina.
Foi esse movimento que impulsionou Mandetta para ter o dobro da popularidade de Bolsonaro, situação visivelmente percebida por ele ao manter coletivas-comícios televisionados diariamente para animar um movimento ativo, coordenado e integrado. Logo, porém, essa “frente ampla” foi se desfazendo.
A ponta empresarial da “revolução solidária” não hesitou em externalizar os custos da pandemia e demitir seus próprios colaboradores, enfraquecendo o primeiro elo. A esquerda cancelou não apenas os atos, mas qualquer ação política, colocando-se em quarentena e deixando os trabalhadores isolados em luta pela sua saúde.
Restou, entre os democráticos, Mandetta. O que ele fez? Num dia em que concentrava atenção positiva de 60% do twitter, que caminhava para ter a mesma popularidade que Sérgio Moro, Mandetta… desaba e cede. Troca a recomendação da quarentena pela utilização responsável de máscaras. Com isso, se encontra totalmente desarticulada a resistência.
Isso porque a maioria da população Brasileira confia em cientistas, coisa que estava personificada na figura do ministro. Além disso, também confiavam em suas empresas e a “cobertura” do Mandetta per
mitia esse movimento de autonomia proletária parecer obediência inofensiva às diretivas de um ministro. Tudo isso desabou quando o Ministro desmentiu a si mesmo e deixou na mão todos que precisavam dele para conseguir se proteger. Os patrões que estavam sendo “conscientes”, obedecendo a OMS, puderam agora convocar seus trabalhadores sem peso na consciência de estar provocando mortes e os trabalhadores não estavam organizados para conseguir resistir.
Não foi apenas a esquerda “pelega”, mas também a dita antiburocrática que ficou oscilando perigosamente, perto de afirmar que a pandemia era uma farsa ou que era apenas o capitalismo “normal” e, com esse “diagnóstico” em mãos, passou a fazer um ode aos trabalhadores coagidos a ir para a “correria” para sobreviver em corridas cada vez menos lucrativas e perigosas, serviços para “garantir” o emprego cada vez mais pautados na humilhação explícita ou no desespero básico pela necessidade de alimentação em busca de um auxílio emergencial. Em todos esses sinais de uma “revolta que se aproximava”, não viram que foi o fortíssimo movimento inicial de solidariedade dos trabalhadores que estava dando sinais de estar sendo derrotado pela coalização de pequenos patrões, pequenos gestores, colaboracionistas “democráticos” e Governo Federal assassino.
Esse movimento de base dos trabalhadores que, apesar de não ter nenhum apoio, muitas vezes ser atrapalhado, abandonado ou sabotado, inclusive pela esquerda política, chegou a realizar ações importantes como a paralisação nacional dos call centers. Essa ação demonstra sinais de continuidade, como a de arrancar conquistas no caso da terceirizada da Empresa Oi, a Atento, em Goiânia/GO. É apenas um exemplo entre vários que devem ter ocorrido. Essa movimentação social proletária foi tão forte que chegou a emparedar Bolsonaro em meados de abril e fez sua popularidade despencar quando demitiu Mandetta. Mérito do covarde e traidor que abriu mão da política que sabia ser a única para combater a pandemia? De forma alguma. O poder que esse desconhecido conseguiu do nada vinha desse amplo e solidário movimento proletário de base, de autodisciplina no combate à pandemia.
A derrota e o que vem pela frente
“Estou dentro de casa, seguro”, mandou para sua mãe João Pedro, 14 anos, antes de ser baleado em operação policial em São Gonçalo. A casa onde ele estava foi alvo de mais de 70 disparos. Sua comunidade estava em quarentena eficiente há muitos dias por uma situação política peculiar entre o poder local e a comunidade.
João Vitor Gomes Rocha, 18 anos, também morreu em uma “troca de tiros entre policiais em bandidos”. A Agência Pública diz que:
No mesmo momento da ação e em que o jovem saiu de casa, voluntários da Frente Cidade de Deus, um coletivo criado para ajudar às vítimas da crise econômica provocada pela pandemia, entregavam cestas básicas a moradores afetados pela pandemia do coronavírus. Foram surpreendidos por tiros.
Jota, colega de João Vitor, postou um desabafo:
“Ele faleceu. Estamos cansados. A gente não tem direito de entregar comida, a gente não tem direito a cuidar dos nossos. A gente não tem direito a nada”.
Não é de hoje. De acordo com estudo publicado pelo NOIS – Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, a maior parte dos mortos até agora pela pandemia são negros, pobres, com baixo grau de instrução. Quem quiser conferir o estudo pode olhar aqui. Parece familiar? São os mesmos números dos afetados pelos “homicídios”, na verdade em sua maioria assassinatos policiais do mapa da violência, como pode ser conferido aqui.
No dia 28 de maio ocorreram 1.156 óbitos por Covid-19, com a maiori
a já descrita. Em 2017 morreram 65.602 por homicídio — 75% negros. São 133 pessoas negras mortas por dia. Não é à toa que são essas que estão correndo para se defender. Também não é à toa que estão sendo alvo por tentarem se organizar contra este e o outro genocídio. Esses assassinatos seletivos, associados a outras medidas repressivas, estão tendo efeito. Apesar de a maioria ainda ser a favor do lockdown, a adesão ao isolamento social voluntário, isto é, a autodisciplina fundamentada na solidariedade, diminuiu significativamente.
A única estratégia que garantiu e ainda pode garantir agora bolsões de qualquer sobrevivência proletária no Brasil foi a autodisciplina — individual e coletiva. Essa estratégia contou no máximo com a tolerância das forças que se dizem “democráticas” no território brasileiro e agora contam com sua aberta hostilidade. Os capitalistas que apostavam em outra saída estão pulando fora do país e estão ficando apenas os eugenistas do descarte acelerado.
Agora, realmente, é apenas só nós por nós. E, se não lutarmos pelas nossas vidas, se apresenta um futuro realmente sinistro, bem pior do que o nazismo que conhecemos no século XX.
As imagens utilizadas na ilustração desse artigo são do escultor George Segal