Por Invisíveis Goiânia

Para quem presta atenção apenas à alta política e às notícias, o que está acontecendo em reação à pandemia global no Brasil parece uma loucura impulsionada por políticos e empresários loucos. Uma grande maioria é a favor da quarentena desde o início, cerca de 73% da população. O percentual fica ainda mais alto quanto mais pobre é a população: 96% da população nas favelas defende a quarentena e 76% dos desempregados e trabalhadores em condições precárias defendem a quarentena mesmo sem renda garantida. Trabalhadores e pessoas pobres no Brasil estão bastante conscientes do valor de suas próprias vidas e do fato de que ninguém, a não ser eles mesmos, será capaz de garantir seu sustento. No entanto, estamos enfrentando um grande aumento de infecções, as taxas de mortalidade dobram a cada cinco dias e as ruas começam a ficar lotadas. Por quê? Será porque as pessoas pobres são ignorantes e não acreditam na pandemia, como algumas pessoas gostariam de pensar?

Esse não é o caso. A classe trabalhadora brasileira está prosseguindo uma luta desesperada no dia a dia, tentando proteger a si e a seus entes queridos da coerção econômica e psicológica, sem qualquer apoio dos sindicatos e da esquerda política. Por exemplo, um projeto que oferece um fundo de emergência para pessoas pobres de R$ 600,00 foi comemorado pela esquerda como uma grande vitória no início de abril, e até o final de abril havia pelo menos 45 milhões de trabalhadores que não haviam-no recebido ainda. 5 milhões de trabalhadores não podem se registrar para tentar obtê-lo porque não têm smartphones. Os outros quarenta milhões estão tendo de se expor à pandemia em longas filas nos bancos, que muitas vezes fecham as portas antes de poderem ver se conseguirão se registrar para ter a chance de obter o benefício devido a problemas burocráticos, como ter um CPF [Cadastro de Pessoas Físicas] “ativo”. O salário mínimo no Brasil é de R$ 1.036,00. Não há debate sobre outros fundos de ajuda. Se havia alguma medida de saúde e segurança em hospitais, locais de trabalho, comércio e em qualquer outro lugar, era por causa dessas lutas desesperadas, mas muito conscientes, de pessoas tentando o melhor possível para viver e preservar vidas.

O nosso pequeno coletivo de trabalhadores optou por traduzir e reproduzir essa saga de lutas em um call center em Goiânia, porque acreditamos que seja representativa de uma realidade vivida por muitos trabalhadores em nosso país — eles estão sendo privados de informações e recebendo instruções contraditórias e equipamentos ruins. No final do dia, se alguma coisa sobreviver, será devido à sua luta, e não por causa de qualquer esclarecimento de seus gerentes. Esperamos que, compartilhando suas vozes e pensamentos, trabalhadores e pessoas de outros países e lugares possam ouvir outra chamada deles — não apenas aquela em que oferecem um serviço ou cobram o pagamento de uma conta, mas sua chamada para poderem respirar livremente como todos os trabalhadores e seres humanos devem poder fazer. Este texto também representa uma forma de prática política e teórica que acreditamos ser importante ser compartilhada e discutida — esse texto foi produzido durante um mês de repetidas discussões coletivas sobre as batalhas do dia a dia e foi resultado de dor, angústia e alegria compartilhadas nas pequenas vitórias obtidas todos os dias. Esses trabalhadores precisaram de imensa coragem e resiliência para manter contato conosco e expor o que estava acontecendo, mesmo sob ameaça. A coragem desses trabalhadores foi uma inspiração para nós, seus colegas e camaradas, e — esperamos — pode também ser uma inspiração para outros Invisíveis [1].

As partes 1 e 2 deste texto podem ser lidas, respectivamente, AQUI e AQUI.

O grito pela vida na porta da empresa

Inicialmente, o que parecia uma ameaça distante, do outro lado do planeta, acabou batendo em nossas portas. Eu, como estudante do ensino superior, fui pego pelos rumores de professores que voltaram de viagem com a suspeita de contaminação. O terror começava a se alastrar rapidamente e temíamos pela nossa segurança e pela segurança de nossos familiares e amigos.

Foram noticiados os primeiros casos de contágio e/ou suspeitas, a faculdade logo parou, mas na empresa tudo continuava como antes… Até começarmos a nos organizar para cobrar providências.

Um grupo de mensagens foi criado em 17 de março “Atento pro Corona #2”, o primeiro de que participei até então. Isto foi decisivo para nossa organização. Um, talvez dois dias depois, fiquei sabendo que um supervisor estava no grupo, delatando e passando informações através de prints para o gestor, coordenador do nosso grupo (alguém acima na escala hierárquica da empresa). Colegas relataram que podiam ouvir, mesmo do seu ambiente de atendimento, partes das conversas, sussurros, e no entremeio gargalhadas sem nenhuma censura que ocorriam nas reuniões dos supervisores logo ao lado do atendimento, separados apenas por alguns metros, gargalhadas nítidas de escárnio. Os relatos me provocaram curiosidade e logo perguntei a um outro colega mais próximo o que estava acontecendo. Foi quando me respondeu “eles ficaram sabendo do nosso grupo do ‘Whats’, eles acham que estamos fazendo alarde, eles estão menosprezando os riscos que a gente corre na empresa”. Aquilo me indignou, mas não surpreendeu, me deu mais vontade de participar do ato. Era aquela necessidade de ser ouvido.

Finalmente, dia 19 de março, dia marcado para a manifestação. Chegando lá, o número de pessoas me surpreendeu. Não imaginava que pessoas com limitados momentos de pausas, que se privam até de ir ao banheiro, tirariam seus minutos de pausa para lutar por direitos. Sem contar os que saíram de suas casas, mesmo fora do seu horário de atendimento e pegaram ônibus, deixaram de estar fazendo qualquer outra coisa para estar participando, como era o meu caso. Eu percebi que havia outros na mesma situação que a minha, a preocupação com a situação do país e com nossas condições de trabalho era generalizada.

Os gritos da manifestação se estendiam pelo quarteirão, as pessoas saíam das sacadas dos prédios. Foi então que decidimos interditar parte do trânsito na rua. O que desejávamos era visibilidade! Não que aquilo fosse um empecilho para os que circulavam pelo local. Em momento algum alguém ficou “preso” no trânsito, nem por 10 minutos. Mesmo assim chamaram a polícia, e adivinhem? Foram os mesmos que outro dia se reuniram para zombar da gente. Olhei para o canto e reconheci pessoas do alto escalão da empresa, gestores, diretores, em resumo: pessoas que tinham poder para demitir ou admitir, punir ou perseguir quem quisessem naquele domínio. Eles, em conjunto, apontavam as câmeras dos celulares em nossa direção, nos filmavam. Para mim era explícita a tentativa de coerção, de intimidamento. Eu pensei por um momento se deveria acabar ali e me dispersar… Foi quando me lembrei dos meus motivos, de todo modo era minha integridade que estava em jogo. A questão era: “ser demitido ou infectado, o que poderia ser pior?” Permaneci! As viaturas chegaram, uma fileira incontável delas, devia ter mais de 15 viaturas, até mesmo do agrupamento de elite da PM. Logo o número de policiais se equiparava ao dos manifestantes. Fiquei bem tenso com a situação, mas estava convencido de que não fazia mais do que lutar pelos meus direitos. Começou a partir dali a segunda metade do ato, a polícia tentou dispersar os manifestantes, mas como não conseguiram (ou simplesmente não podiam fazer), partiram para as negociações. Foi quando apresentámos nossas pautas, nossas reivindicações e fomos ouvidos. O representante da empresa, de nome “Alessandro”, prometeu atender o mais rápido possível nossas exigências:

REIVINDICAÇÕES:
1 – disponibilização de álcool e gel em todas as partes das empresas;
2 – higienização constante das PAs e headsets;
3 – pedir o revezamento da quantidade de funcionários, com a distância de 1 metro entre as PAs, pelo menos (ou até mesmo o isolamento, como direito nosso para conter o problema de saúde);
4 – disponibilizar a equipe médica para exames de prevenção;
5 – liberar funcionários que estão dentro do grupo de risco.

Além dos idosos, pessoas com as seguintes doenças crônicas também estão dentro do grupo de risco:
– Diabéticos;
– Hipertensos;
– Pessoas com problemas no coração;
– Asmáticos;
– Doentes renais;
– Fumantes, que têm o pulmão mais prejudicado por causa do cigarro.

Coincidentemente ou não, naquele dia já havia alguns colegas com sintomas de gripe e fui mesmo assim para a manifestação, usando máscara. Até então não sabíamos distinguir se era uma gripe comum ou coronavírus. O fato é que não houve nenhuma ação preventiva. Eu sabia que havia sido aquele ambiente que sempre foi propício para isso que nos prejudicou, aquele ar condicionado sujo e as pessoas trabalhando expostas umas próximas às outras, sem nenhuma proteção. Um amigo se afastou com um atestado de uns 5 dias e durante esses 5 dias ficou em observação. Recebi uma mensagem sua pedindo para me cuidar e esclarecendo sua situação. Ele ainda relatou que o supervisor ligou diretamente no seu celular com um tom de voz de quem queria abafar o caso, não quis nem deixar mensagem, ele disse algo como “não precisa falar para todo mundo que você está doente, isso não ajuda em nada, acaba deixando as pessoas com medo (de vir trabalhar)”.

Alguns dias depois das manifestação, o espaçamento entre PAs tinha mudado e álcoois em gel já tinham sido disponibilizados; passou a haver limpezas mais frequentes, as dispensas para trabalhar em home office gradativamente também foram ocorrendo, mas nós nunca sabíamos como isso estava acontecendo. Nunca houve o mínimo de diálogo da parte administrativa com os demais funcionários a esse respeito, as pessoas simplesmente foram sumindo… A gente nunca sabia os critérios. Muitas pessoas de extremo risco ainda permanecem no presencial, cheguei a conversar com uma senhora na empresa, de 52 anos, que trabalhava e ainda cuidava do pai em casa, acamado, com doenças crônicas. Ela me reclamou que já havia perdido as esperanças de ser liberada. Isso, enquanto pessoas fora do grupo de risco estão em home office. Para não dizer das dispensas forçadas, quem estava em experiência foi demitido; outros, por medo de continuar trabalhando, pediram para sair por conta própria, a operação estava esvaziando. A insegurança permanece. E para alguns não têm saída, não podem abandonar o posto e arriscar o temido desemprego em época de crise. Estamos correndo riscos e esse texto é um pedido de socorro.

Talvez seja o conteúdo para outro texto, mas a situação para os que trabalham em casa também não é favorável. Eu não fui liberado e existem até áreas em que ninguém foi liberado, mas ouço de colegas que trabalham em casa que as condições também são péssimas. A rede de internet não funciona da mesma forma, o sistema como um todo não é suportado pelos computadores, que acabam danificados. Não existe assistência técnica para todos e temos a impressão que não há para onde correr: esteja onde estivermos, estaremos desassistidos.

As condições dos trabalhadores do call center da Atento, que presta serviço para a Vivo, BMG, Oi e Enel, continuam péssimas. Depois da manifestação, a empresa se comprometeu com os trabalhadores a liberar para trabalhar em casa e adequar as condições de trabalho na empresa, mas nada disso vem acontecendo conforme prometido. Seja na empresa ou em home office, os trabalhadores continuam sendo ameaçados de demissão, perdem benefícios, não recebem máscaras e álcool em gel de qualidade e continuam correndo risco de morrer.

Home office do medo e do salário reduzido

A Atento enrola e vem liberando lentamente alguns dos trabalhadores de algumas operações para o home office. Os trabalhadores vivem uma verdadeira odisseia da morte e vão sendo liberados aos poucos. No começo, foi para o home office só quem tinha computador em casa. Depois, começaram a liberar os computadores e headsets da empresa, mas apenas para os que já têm internet em casa. Para pegar os equipamentos, os trabalhadores foram obrigados a assinar um termo em que se responsabilizam por qualquer dano no equipamento, que será descontado do salário. Um trabalhador diz: “…caso ocorra algo, descontam do nosso ‘grande’ salário… seriam prestações. Não gosto nem de respirar perto deles”.

Mesmo para os que já conseguiram a liberação, o que parecia um alívio acabou por se transformar em pesadelo. O sistema, que já era ruim, ficou pior e os trabalhadores passaram a perder muitas ligações. E, apesar dos problemas técnicos, a cobrança com metas continua através de grupos de Telegram. Esses grupos têm mensagens 24 horas por dia e cobranças e feedbacks chegam a qualquer horário, como se o trabalhador tivesse de estar sempre à disposição da empresa. Além disso, antes os cursos de treinamento obrigatório tinham horário reservado. Agora não têm mais, os trabalhadores têm de se virar para atender todas as ligações e ainda fazer os cursos.

Para piorar, parte importante da renda dos trabalhadores em home office foi perdida, porque agora não recebe mais o vale transporte, que fica em torno de R$ 200,00. Em um salário que, com os descontos, chega a R$ 830,00 por mês, receber o vale é fundamental. O vale alimentação só ficou porque os trabalhadores lutaram para isso, mas havia ameaças de corte: “estando em home office ou não, os trabalhadores têm a necessidade de se alimentar!” O único auxílio prometido para o período em que vão trabalhar em casa é para cobrir gastos de luz e internet. Mas ninguém sabe qual será o valor e existem comentários de que seria de somente R$ 80,00. Quando perguntados sobre o valor do auxílio, os trabalhadores falam: “Não faço a mínima ideia. A supervisão disse que eles fariam uma estimativa de gastos de energia e internet e que pagariam em cima disso”.

Na empresa, com medo da morte e da demissão

Os trabalhadores ainda mais pobres, que não possuem internet em casa, ainda estão trabalhando na empresa e vivem com medo. Para esses, a ameaça de demissão é bem clara. Fala um trabalhador: “eu vi os supervisores ameaçarem o pessoal, disseram que iam suspender o contrato de quem não tem internet em casa. O pessoal ficou em pânico e começou a correr atrás de instalar internet rápido, para não ser demitido“. Esses continuam indo trabalhar desesperados, sob a ameaça de perderem o trabalho e ficarem doentes. “Tem algumas pessoas do ativo, umas delas tem um bebê”. Sabemos que um serviço de internet custa em torno de R$ 100,00 por mês e não é instalado assim de uma hora para outra. A empresa só enrola na liberação de modems e diz que os equipamentos que possui não são potentes o suficiente para fazer o trabalho de casa. Empresas milionárias não podem arcar integralmente com os custos do home office e estão repassando isso para trabalhadores pobres? Essa situação revoltante tem indignado os trabalhadores.

Em outras áreas da Atento todos os trabalhadores continuam trabalhando normalmente. Conta uma trabalhadora: “da minha área ninguém foi liberado”. E as condições de trabalho para quem ficou continuam péssimas. Os trabalhadores contam que desde o ato do dia 19 de março o espaço prometido de dois metros entre as PAs se transformou em no máximo um metro. Também não possuem máscaras e álcool em gel de qualidade, nem há limpeza adequada dos espaços de trabalho. Conta uma trabalhadora: “desde a manifestação, eles tomaram providências, algumas coisas mudaram, sim. Só que mudou e ficou… Não teve nenhuma outra adaptação além daquelas. Na verdade foi a gente que cobrou, não foram eles que propuseram nada. Só que parou nisso, não está tendo máscaras. Não houve distribuição de máscaras e não vai haver. Ontem eles passaram um informe… passaram um aviso da empresa sobre: Tragam as suas máscaras e a gente está incentivando vocês a se protegerem”. Então já ficou claro, eles não vão dar as máscaras, não. Quanto ao álcool, os trabalhadores recebem algo que não tem as mesmas características do álcool em gel 70% indicado para higienização das mãos e superfícies: “O álcool, deram um potinho para cada um, me deu para uma vez só… o resto do álcool está sendo distribuído como se fosse sabão… aquele sabão que fica na parede… literalmente sabão, porque tem gente que está dizendo que aquilo não é álcool, porque é um álcool que espuma como se fosse sabão”.

Até quando os trabalhadores da Atento serão ameaçados, demitidos ou submetidos a condições que podem causar a morte? Nossas reivindicações continuam! Queremos condições de trabalho adequadas no home office e na empresa para todos. Somos todos iguais, todos corremos riscos, todos precisamos e queremos sobreviver.

Nota

[1] Essa introdução foi feita pelo coletivo Invisíveis para a versão em inglês dos relatos, que está sendo publicada simultaneamente no 1º de maio no Reino Unido pela Workers Inquiry Network sob o título “Struggle in a Pandemic: A collection of contributions on the COVID-19 crisis from members of the Workers Inquiry Network”.

A gravura utilizada como destaque é de um anónimo italiano do século XVIII. As outras duas são, de cima para baixo, de Hendrick Goltzius e de Albrecht Dürer.

1 COMENTÁRIO

  1. Pandemia de teletrabalho. O que esse texto deixa entrever é o que já se suspeitava, a pandemia vai dar uma impulso à maior dispersão dos trabalhadores, e a terceirizaçao para a multidão vai ganhar mais fôlego… Sem vínculos empregatícios, tendo que possuir os instrumentos de trabalho, em condições prec´rias de trabalho nas suas casas.. uberização

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