Por Zé Antônio

O texto abaixo foi escrito durante as mobilizações na pandemia de covid-19, em junho de 2020, no formato de carta para discussão entre grupos de trabalhadores interessados em se organizar. Inicialmente, não era a ideia publicar como polêmica, mas ao ler a “Carta aos Invisíveis: investigação, cotidiano e insurreição“, escrita por “um Grupo de Militantes”, entendi que seria importante esclarecer algumas confusões sobre o trabalho desenvolvido por essa perspectiva de atuação. Apesar de tudo, a resposta não é para a “discussão entre grupos de militantes”, não é uma resposta do Invisíveis como grupo de militantes – pois isso não existe. É uma discussão para os trabalhadores invisíveis: da cultura, da saúde, da limpeza urbana, dos cuidadores, os entregadores, atendentes, funcionários do comércio, demitidos e desempregados que estão começando a se organizar. E também para os militantes que mantém a página durante esses mais de dois anos de existência, com o endereço de Invisíveis Luta. Essa é uma expressão de minhas preocupações com a vida e as lutas de pessoas concretas, partilhada com esses militantes. E também vai para os leitores desse site que se preocupam com as mesmas questões e que precisam entender melhor o trabalho que vem sendo feito pelo Invisíveis. Espero que essa discussão sirva para esclarecer pontos e que seja útil para todos.

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Talvez seria melhor perguntar ”O que é o Invisíveis?”. Porém, o mais importante é saber para que serve. Para que serve aos trabalhadores? Qual a utilidade disso na vida de alguém? Para uma pessoa trabalhadora comum que vê seus direitos serem reduzidos? Ou para aqueles que não podem alcançar o aumento deles ou sequer podem ter acesso aos que existem? Ou até acham que os poucos direitos que existem já bastam, por medo de exigir mais?

Qual forma de conquistar melhorias? Falar mal da empresa? Reclamar no sindicato, com a gerência? Nesses meios, sempre tem o risco de “se queimar” e não conseguir nada.

Fazer isso sozinho é pior. É quase o mesmo que não fazer nada. Então, a melhor forma é conseguir apoio de amigos. Ter apoio de pessoas que possam te ajudar. Elas precisam ser do mesmo local de trabalho? Seria o ideal, mas se fosse fácil assim as pessoas já estariam se juntando, fazendo greves ou enquadrando o patrão.

A verdade é que todo mundo tem medo de represália, ser desligado, perder o emprego ou sofrer assédio. Por isso é difícil juntar todo mundo num local de trabalho. Cada pessoa sozinha tem medo. Dizer que “juntar todo mundo, todos ficam mais fortes” nem sempre é verdade. Até todo mundo acreditar nisso, cada um está sozinho.

Sem falar que, desse medo, tem outros trabalhadores que acham que dedurar os colegas que reclamam e exigem melhorias estão se dando bem. Aí que a coisa fica pesada, mesmo que algumas pessoas se juntem, tem os “X9”, os “dedo-duro”, para piorar a vida de colegas e conseguir vantagem. Assim, o medo de reclamar fica mais forte. Quem quer fazer isso acaba deixando para lá com medo de fazer as coisas piorarem. E ser “cagoetado”.

Tem jeito de se juntar e exigir direitos? Talvez, se a voz de quem estiver sozinho não tiver nome, nem RG ou CPF, fica difícil identificar. E é possível divulgar em jornal impresso ou na internet um relato anônimo. Isso pode funcionar como denúncia. De primeira, isso pode servir para constranger o patrão. Ele fica com medo de queimar a empresa quando reduz direito, atrasa pagamento ou impede circulação em certos espaços. Essas coisas que causam revolta e indignação em quem descobre. Quanto mais um patrão sentir vergonha é melhor. Aí um problema invisível vira uma denúncia. E a empresa não tem como demitir ou perseguir quem explanou. Porque é anônimo, então ninguém sabe quem falou, já era.

Depois, esse relato pode ser lido pelos colegas. Cada situação relatada fica na memória, as coisas que a gente passa depois de saber delas não mais as mesmas. Se a gente toma uma pressão do patrão, a gente sabe que colega passou por situação parecida. As nossas dores, coisas que parecem bobas, são parecidas com de outros colegas. Fica importante a gente responder os relatos de cada um, para conversar e ser ouvido.

Quem publica os primeiros relatos pode ver os problemas que amigos passam e aconselhar que esses publiquem seus relatos também. E essa publicação pode virar mais uma que inspira outros a saber dos problemas e denunciar os seus. Quanto aos que conversam com outros sobre seus relatos, eles podem conversar sobre suas necessidades e usar as divulgações para se ajudar. Desde necessidades, pedidos de doação, até trocas entre si de problemas no trabalho. Nisso podem fazer um grupo que conversa no WhatsApp ou outra rede social qualquer, para pensar junto os problemas. Para falar dos patrões, para pensar no que fazer se pagamento atrasa, se falta adicionais, etc.

Esse pequeno grupo pode servir para fora do local de trabalho. Podem falar de problemas de moradia, das contas, da escola dos filhos. Se o problema ficar brabo, como teve agora com a pandemia da covid-19, esse grupo pode servir para fazer uma paralisação e exigir liberação dos trabalhadores com salário. Ou buscar apoio, como exigir e se inscrever em programas do governo, tipo o Auxílio Emergencial. Se alguém for demitido, ou tiver salário reduzido, dá para pensar em paralisações e denúncias contra isso. Se não conseguir evitar, ficar de olho na rescisão, aviso prévio, FGTS, seguro desemprego. O benefício emergencial para quem é suspenso ou tem salário reduzido. Ou então se ajudar para conseguir melhoria no trabalho, como grupos de entregadores ou outros trabalhadores.

O Invisíveis

O Jornal, a página e a internet são instrumentos que os trabalhadores podem usar para fazer esse caminho. O Invisíveis é um espaço para gente pensar em como usar as denúncias e relatos a favor dos trabalhadores. Como a favor dos trabalhadores? Ora, a gente vai se ver, falar de nós mesmos e pensar. Nós somos o nosso laboratório, vamos cuidar de nós mesmos. Vamos olhar nossa autoestima, olhar no ESPELHO. O Invisíveis coloca esses relatos e essas experiências em evidência, para fazer o pessoal se organizar como achar melhor. O principal é a organização criada pelos trabalhadores. É cada um trocando experiências e relatos, criando laços de confiança, para usar o Invisíveis como arma contra os patrões.

Mas sabemos do nosso limite. Nenhuma organização é suficiente. O Invisíveis é um grupo, não representa os trabalhadores com quem atua. Acreditar que representa ou que é suficiente para ser uma força social, seria sustentar uma mentira que leva a substituir trabalhadores como protagonistas. Mesmo que bem intencionada, age enfraquecendo pois mantém os trabalhadores sozinhos e isolados. A ação deve ser do “Nó Invisível” entre os trabalhadores, pois é a força nos grupos e locais de trabalho que garante qualquer conquista. Pois é ali que se pode parar a produção e botar medo nos patrões.

O Invisíveis não é a força de organização dos trabalhadores, é um esforço de juntar as experiências. Para fortalecê-las e pensar junto. Essa honestidade é dura e realista, assume a fraqueza. Estamos fracos e precisamos ficar fortes. Pois a cada luta, cada greve, cada denúncia, cada esforço de solidariedade podem ser vencidos por um patrão esperto. Então, o Invisíveis insiste não somente nas experiências invisíveis. Mas também no que fica invisível entre elas para superar essa esperteza. Porque isolados a gente não percebe que nessa correria do dia a dia não podemos ficar desprevenidos. Então a forma de analisar e pensar é pela relação coletiva do “Nó invisível” para criar novas formas de ação.

É preciso que a experiência dos relatos e denúncias façam a gente se entender para multiplicar a experiência. formar outros “Nós Invisíveis” nos locais de trabalho e moradia. São trabalhadores se apoiando, ajudando uns aos outros no dia a dia. Falando dos seus problemas. Para fazer cada caso invisível ficar forte, a gente usa essa forma de trocar experiências e relatos. Coloca no jornal ou na internet como anônimo para outras pessoas verem e formarem outros nós. Desses vários se multiplicando e entrando em contato, a gente fortalece a rede de solidariedade.

Daquela organização no trabalho, para resistir aos patrões, a gente pode conseguir se organizar em redes de solidariedade para conseguir sobreviver. A gente pode buscar os organizações no trabalho e juntar nos locais de moradia. Buscar relatos de apoio, trocar doações, cestas básicas. Problemas com empresas, patrões ou aplicativos, para pensar junto no que fazer. Para divulgar apoio se alguém fizer alguma paralisação no trabalho. Denunciar problemas de outros setores.

O que exigir dos patrões? Eles não têm as mesmas necessidades que as nossas, mas sem o nosso trabalho eles não existem. Então, precisamos mostrar que mesmo que ameacem entrar em falência, a nossa vida vem primeiro. Mesmo que digam que somos lixo ou que somos descartáveis e podemos ser trocados no trabalho. Podemos nos unir e parar de trabalhar para mostrar que eles não vivem sem isso. E quem não consegue trabalho, a gente pode se unir para se apoiar e exigir renda do governo. Sabemos que os DE CIMA têm muito dinheiro, que eles guardam tudo para si para não deixar a gente ser livre. Mas toda essa riqueza foi a gente que produziu e depende de nós para ficar na mão deles. Então, podemos tirar dessa mão quando a gente quiser e quando a gente se unir.

A mudança do conflito e da organização

Sabendo para que serve o Invisíveis, a gente sabe o que é o Invisíveis. E sabendo das necessidades dos trabalhadores, conforme os problemas e as lutas mudem, o Invisíveis deve mudar. Não é a representação dos trabalhadores, é um esforço de diálogo e exercício constante de fazer trabalhadores se enxergarem e se organizarem. Isso varia conforme o movimento do inimigo: os patrões e governos. Sim, se falamos de conflito é porque estamos de um lado e temos opositores. Esses são quem usufruem da exploração dos trabalhadores e querem manter seu enfraquecimento, sua desorganização e seu desconhecimento sobre si mesmos.

Como os patrões se movem para tentar explorar mais os trabalhadores, cabe a eles se movimentar também. Não dá para seguir roteiros, é preciso ser criativo como são os trabalhadores. Novamente… Os relatos, as pequenas dores, as resistências no dia a dia são importantes para serem elaboradas e colocadas para outros trabalhadores verem e pensarem novas formas de resistências, seja nas derrotas ou vitórias.

Assim, o Invisíveis visa estimular essas ações e organizações de trabalhadores. Não para centralizar ou domesticá-las, mas para servir como ponte e fonte de elaboração. É preciso estar próximo, no dia a dia, para saber como elaborar formas de se organizar e tirar dúvidas. Perguntar aos motoboys, aos padeiros, faxineiros, ascensoristas, motoristas, operárias, etc.

Não é porque se organiza uma luta, uma greve, uma paralisação, um piquete, ocupação, etc., que não haja pessoas feridas ou adoecidas no caminho. Seja uma dessas lutas vitoriosas ou não, precisamos cuidar dos enfraquecidos. A gente precisa buscar novos relatos. O “Nó Invisível” já formado e fortalecido, precisa formar novos nós com categorias de trabalhadores de uma vendinha, por exemplo, para se fortalecer. Ou os demitidos e desligados de uma empresa, depois de uma greve, precisam ser apoiados. Aqueles que adoecem no serviço podem ser ajudantes. Sem isso, sem esses pequenos conflitos, as lutas perdem seu sentido. E a projeção delas como vitória cega, sem pensar, pode servir para esconder e silenciar trabalhadores.

Por isso, o Invisíveis não pode substituir a força concreta da experiência dos trabalhadores. Se seguir o “caminho fácil” de se colocar como um modelo pronto, vai fazer as pessoas acreditarem que isso basta e que caso um patrão seja “bonzinho”, faça a exploração parecer algo bonito. Pois acaba vindo como uma “conquista” que acaba não sendo de verdade. Vai fazer cada trabalhador achar que pode depositar confiança em alguém distante, numa página, num partido ou num sindicato. E é nessa confiança que a gente é feito de “otário”, pois os patrões se aproveitam. Seja promovendo como líderes ou mediadores ou aproveitando que os trabalhadores não estão trocando experiências dos seus conflitos, não vão perceber quando as peças do jogo mudarem.

Uma greve de entregadores autônomos pode gerar oportunidades para uma empresa de aplicativos que não tira porcentagem do dinheiro pago nas entregas e viagens. Mas retira uma contribuição mensal. Isso elimina a exploração da empresa de aplicativos, mas mantém o trabalhador isolado e refém de outro aplicativo. Uma onda de demissões sem as verbas rescisórias pode vir com resolução jurídica, conquistando a anulação delas. Mas enquanto comemoramos a vitória, uma decisão dos patrões mantém a redução de salários. Em outros lugares coloca assédio para intensificar trabalho. Essas experiências acabam pegando de surpresa quando permanecem invisíveis. Precisam ser trazidas e tratadas da mesma forma dinâmica com que os patrões trazem meios de exploração inovados para pensar em novas formas de resistir.

Não dá para ter padronização. Por isso, o Invisíveis não pode ser uma entidade que representa os trabalhadores como se fosse uma central que defende seus interesses. Aqui cabe somente fazer uma aglutinação de forças e conversa constante com os relatos e as denúncias dos trabalhadores. Criar ilusão de que podemos substituir as organizações e a criatividade necessária de cada conflito instalado é manter a forma que cria a dependência às cúpulas de instituições que pretendem usufruir da exploração e da miséria.

Não foi possível encontrar os autores das fotografias utilizadas.

3 COMENTÁRIOS

  1. Texto excelente! O melhor que já li nos últimos 20 anos sobre luta de trabalhadores!

  2. Senti falta da palavra ‘agitação’ que é exatamente a que se pretendem. Bom texto, dá pra entender os limites e abre espaço pra muito debate. Abraço Zé!

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