Por Alfredo Lima
Era umas duas da tarde quando eu assistia a um programa na Rede Globo sobre a experiência dos moradores de uma zona rural do Piauí, que se juntaram para montar uma barreira sanitária. Até repassei a ideia para alguns grupos de zap, porque vi que uns camaradas de Paraty tinham feito um manual sobre como montar uma barreira sem precisar do apoio da prefeitura.
Escrevi o texto primeiro como um informe, que depois acabou se tornando o artigo Barreira sanitária é vida, flexibilização é morte! A emoção e o debate no momento não me permitiram terminá-lo, mas agora o faço. Barreira sanitária é vida, mas a própria ideia de usá-la como tática se deu em contextos em que ela não pôde ser devidamente aplicada pelas prefeituras. Eu escrevia que prefeitos, governadores e governo federal estavam em desacordo sobre as medidas de isolamento social. Enquanto anticapitalistas românticos denunciavam um “Estado de exceção” motivado pela quarentena, trabalhadores reivindicavam a quarentena para si, ora aplicando sabotagens no trabalho, ora exigindo homeoffice, ora exigindo condições adequadas para continuarem na linha de frente, ou até mesmo impondo barreiras sanitárias quando gestores recusaram-se a fazê-las nos bairros.
O problema de apostar nas barreiras sanitárias como uma solução por si só é esquecer que profissionais da saúde são mais qualificados para lidar com os cuidados higiênicos, e sem um movimento forte de resguardo nos locais de trabalho e moradia, as barreiras viram uma preocupação com o externo, quando a ameaça do vírus muitas vezes já está no bairro. Não adianta olhar para fora e não olhar com cuidado para dentro, para nossos colegas à nossa volta. É com esse teor que gostaria de desfazer um tom elogioso da auto-gestão do amadorismo. As experiências proletárias podem e devem ser questionadas por uma educação coletiva para com as questões sociais.
Nesse sentido as barreiras podem ser vistas como uma das táticas a exigir dos gestores; mas sem pensarmos que a “organização popular”, muitas vezes descurando os cuidados sanitários, é a melhor das estratégias para o resguardo dos trabalhadores. Elas podem sofrer o mesmo dilema das cooperativas no capitalismo, em que, buscando eximirem-se da exploração, os trabalhadores trabalham ainda mais para as demandas do mercado. Ficam ainda mais precarizados, mas sem patrão. A necessidade de barreiras foi importante para municípios ou bairros com um número de casos relativamente pequeno. Onde o vírus já está se propagando, os anticapitalistas devem também prestar atenção a quais estabelecimentos estão reabrindo, para pensarem entre si como vão na contramão do abate; mas não necessariamente dissolver as organizações por bairro. Devemos acompanhar como trabalham os gestores com o ritmo da pandemia, para a partir disso impormos processos de luta, sem apostarmos em uma tática única. Assim como o capitalismo é dinâmico, as lutas dos trabalhadores também o devem ser.
Isto não significa que os moradores de Trindade não deveriam erguer barreiras sanitárias. Pelo contrário. O que eu quero dizer é que, para cada movimento dos capitalistas, os trabalhadores deverão ter uma saída criativa. Seja no bairro ou no local de trabalho, seja fora ou dentro de um contexto de pandemia. Mas não devemos esquecer que é em um contexto de pandemia que estamos, então não podemos repetir formas de luta ignorando essa gritante diferença.
Ilustram este artigo imagens do Centro de Mídia Independente (CMI) na ocasião da cobertura das ocupações estudantis e mostram a rotina do trabalho definido coletivamente.
Será que meus olhos estão a falhar?
Eu abri o artigo ansioso para saber qual a crítica que o Grogue tinha ao texto que eu escrevi. Ao invés de debater o tema proposto, preferiu debochar. Nesse caso não são os seus olhos que estão a falhar, mas os dedos das suas mãos que teclaram o comentário acima.
Acho que na verdade, pensar em “autogestão do amadorismo” nas organizações das barreiras sanitárias demonstra um certo desconhecimento da realidade dessas barreiras e do próprio intuito dessas ações. A realidade é que na maioria dos casos as barreiras são formas de pressão para as prefeituras e governos manterem e começarem certa forma de barreira e lockdown. E isso tem acontecido bastante no nordeste, Piauí, Bahia, Maranhão, em várias comunidades tradicionais. Onde talvez elas tenham o maior “desamparo” e “acabem como uma forma de ação por si só” são nas comunidades e territórios indígenas, mas isso tem um eixo histórico completamente distinto da própria forma de luta e resistência desses povos. Acho que amadorismo não é um termo que caiu bem, pois são contextos em que na maioria dos casos por exemplo, as demandas das barreiras são o apoio de agentes de saúde. E ai novamente uma contradição, em algumas comunidades indígenas que tem levado o vírus para dentro das aldeias são os próprios agentes de saúde da Sesai, o que fortalece ainda mais uma “autogestão do território” que, pode ser muitas coisas, mas não amadora.
https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/agentes-de-sa%C3%BAde-levaram-covid-19-a-povos-isolados-dizem-ind%C3%ADgenas-governo-nega/ar-BB15m6Pf esse link explicita um pouco da situação dos indígenas.
O comentário da Lira resume meu deboche. Mas peço desculpas pelo deboche. Não achei que você, Alfredo, ficaria tão sentido assim com meu comentário. Talvez a “autogestão do amadorismo” fizesse algum sentido em um exemplo mais material do que o que foi colocado no final do texto, sobre Trindade. A citação à Trindade dentro desse texto só reforça o amadorismo da crítica, ao invés do “amadorismo da autogestão” nessa experiência. O episódio da barreira em Trindade mais forçou o governo municipal a fornecer instrumentos de manutenção dessa barreira que ultrapassasse o amadorismo. Inclusive essa luta, e consequentemente a reivindicação dessa luta como forma de pressão frente à política de flexibilização da quarentena no município de Paraty, fez com que o prefeito lançasse audios desesperados em grupos de whatsapp dizendo que forneceria as condições necessárias para a manutenção dessas barreiras. Daí a penúltima pagina do “minimanual” (e o deboche presente nessa página) em defesa das barreiras sanitárias feitas pelo Assombroso e divulgado nesse site.
Grogue, eu não me preocupo com Deboche, eu me preocupo que o deboche substitua o debate. Eu te dou até razão ao chamar de critica amadora, porque eu desconsiderei as barreiras que foram colocadas por comunidades indígenas como a Lira mencionou. O que acontece é que tive UMA intenção ao escrever esse texto. Não adianta achar que é só barreira uma tática a se apostar. Tem que ter todo um contexto de debate em cima disso pra ver o que é mais viável para os militantes somarem esforços.
Por exemplo, colocando o bairro em que eu moro como exemplo, que diferente das barreiras em municípios do interior que apontei apresenta transito constante em direção e voltando da cidade e que tem dentro de si forte presença do comércio e indústrias, uma barreira é necessariamente um trancamento. O fluxo torna inviável a proposta e o que é muito provavel, não duraria mais do que uma hora de empreitada. A Ilha do Governador há umas semanas atrás era o quarto bairro com mais casos confirmados no município e dizer que só a barreira resolveria o problema seria no mínimo um delírio. Tivemos também coletivos de bairro fazendo limpeza nas vielas das comunidades da Ilha, tivemos isolamento social, distribuição de cestas básicas, entre outras coisas. Reintero, as ações da prefeitura e das instituições locais asseguraram (pelo menos por um tempo) o cuidado de dentro, não só a entrada dos de fora. Eu não entendo porque incomoda dizer que não é só a barreira que assegura a vida, fiz questão de dizer que esse texto não era um contraponto ao meu artigo anterior. Quando ambos dizem que as práticas dos moradores de Trindade assumem uma posição reivindicativa diante a prefeitura vocês não estão criticando o artigo, estão confirmando as minhas impressões. E estou certo de que se o número de casos se alastrar por Trindade, o pessoal vai ter que refletir como fazer algo além da barreira. Olhar pra fora e pra dentro. E meus esforços não vão no sentido de condenar as práticas dos envolvidos, mas pensar na medida do possível como podemos compartilhar aprendizado com eles e outros coletivos envolvidos em campanhas parecidas, como eu acredito que também seja de seu interesse e o da Lira.
Alfredo, talvez sua crítica fizesse mais sentido dentro da sua experiência na Ilha do Governador. Talvez fosse mais interessante até dialogar sobre a contradição entre a aplicação das barreiras sanitárias nas áreas urbanas e nas áreas rurais. Em resumo, seu comentário forneceu elementos muito mais interessantes para a investigação da tática abordada que seu texto original.