Por Felipe Catalani

Qual a possibilidade dos alguns milhões de trabalhadores de aplicativo no Brasil se tornarem algo como uma classe trabalhadora regulamentada, com CLT, próxima do que seria a classe trabalhadora de um capitalismo “civilizado” no molde keynesiano, com boa remuneração e todos direitos garantidos? Nenhuma. Zero. E os motoboys que se arrebentam na desgraceira da viração sabem disso. Não por uma “consciência de classe”, à moda lukacsiana, mas por algo que poderíamos chamar de “intuição de classe” (falemos em “classe” por não existir outro termo mais preciso, embora já não se trate exatamente da mesma classe à qual nos referíamos outrora, que vinha no combo “consciência”, “História” etc).

Poderíamos muito bem esboçar uma explicação dessa ausência de perspectiva por uma via teórica, “fria”, e que não é a mesma coisa que aquela “intuição”. Uma coisa bastante contra-intuitiva, aliás, que tem muitos meandros para que possa ser entendido, é que a maioria dessas plataformas (Uber, etc.) exploram as pessoas até o osso — mas não fazem lucro. A Uber entrou no mercado em 2010 e nunca gerou um trimestre de lucro sequer — mas abriu capital na bolsa em 2019, valendo 82 bilhões de dólares. Se pesquisarmos, vários outros apps têm dinâmica semelhante (Rappi, por exemplo, também nunca obteve lucro). Ora, capital fictício é o quê? Simplificando um tanto, é promessa de valorização futura, que aparece no presente como valor. Bom, essas plataformas, que não conseguem valorizar o capital de forma suficiente (para realizar reprodução ampliada), vivem disso. Mas como ocorre com várias dessas gigantes da tecnologia (como Google e Facebook), elas têm uma tendência à monopolização (quer dizer, elas praticamente só funcionam se formarem monopólio). E além disso elas têm um acúmulo gigante de informação, uma quantidade enorme de gente (consumidores e trabalhadores) vinculada a elas, e um monstruoso poder de controle que decorre disso, em cima do qual é possível especular. Capitalismo de plataforma e financeirização são intimamente irmanados. E financeirização como estruturante da economia é outra palavra para crise perenizada, em que o “horizonte de expectativa” (como horizonte de valorização) está abortado, de modo que o que se vive é um estado de exceção econômico, permanente, sempre à beira de um estouro. Embora isso só comprove que o capitalismo em crise não significa que ele tenha se tornado menos forte politicamente. E engana-se quem acha que ficcionalização da valorização tem a ver com um “tanto faz” se estão trabalhando ou não — pelo contrário, é aí que se dá o sinal verde para apertar o torniquete, para a intensificação sem limites da exploração. Afinal, junto com a “medida do valor”, desaparece aquele horizonte normativo que dava a régua para as negociações do “capitalismo sindical”.

Quem está na máquina de moer gente da viração “intui” que não há futuro, e a política que se faz a partir disso é outra. Os viradores sabem que o horizonte que a esquerda vende, de vasta acumulação e trabalho regulado, é fake. Por outro lado, a esquerda insiste em achar que os motoboys contra a CLT são “individualistas neoliberais” possuídos pelo discurso do empreendedorismo, e que seriam, portanto, incapazes de criar laços solidários e determinação para a luta. Uma visão que não poderia ser mais tacanha, além de falsa. Entre a “utopia” e a “Realpolitik”, a esquerda ficou com o lado ruim dos dois. Ela não defende nem algo utópico, pois é a manutenção do mesmo e um sistema de contenção, nem algo realista, pois não há lastro material para seus projetos. No entanto, nesse mundo do trabalho desregulado (como apontou recentemente o Leo Vinicius), há um potencial para lutas mais contundentes, e que tendem a escapar da gramática estabelecida da esquerda institucional (cuja imaginação, como propôs a Jacobin, atinge o máximo de uma “Rappi estatal”).

13 COMENTÁRIOS

  1. Aos incautos: contabilidade criativa, ou maquiagem contábil, está inserida na intencionalidade das empresas em aproveitar a existência da subjetividade, das alternativas existentes e da vaga (ou complexa, porque a complexidade permite vagarosidades…) regulamentação de alguns aspectos contábeis com a finalidade de obter demonstrações financeiras que representem a “IMAGEM DESEJADA”… seja ela de lucro ou prejuízo…

    Esta maquiagem contábil se estende, inclusive, aos Estados. João Bernardo diz que muito do que é contabilizado como importações e exportações na balança das nações, são transações que ocorrem, na verdade, no interior das companhias transnacionais…

    Enfim, a aparência nem sempre revela a essência…

  2. MINIMANUAL DE GUERRILHA PLANETÁRIA: AÇÃO DIRETA
    O lucro do capital fictício, embora muito real, é sobretudo financeiro: depende das volatilidades e turbulências que só a megaespeculação, exponenciada por informações privilegiadas, consegue monitorar nas bolsas de valores e outras parcerias público-privadas.
    Simples assim, pernambuco: quem não é cavalcânti é cavalgado. No bumba meu boi (era um tempo) keinesiano&social-democrata&tardobolchevique do movimento operário estatal-integrado (clt, carta del lavoro, v.g.), havia os garantidos (operários) e os caprichosos (proletários). Os primeiros (ditos aristocratas pelos leninistas) e os segundos (desprezíveis lumpens, no mesmo jargão) eram o topo e a base do exército industrial (ativos e reservistas, segundo Marx, que não era marxista…).
    Agora, o estado de exceção (contrarrevolução preventiva) é a regra. Na sociedade penitenciária, o tripalium (escravidão assalariada) é um turbinado coquetel de mais-valias (absoluta e relativa): o suadouro só faz aumentar e o salário tende aceleradamente a 0 (zero)…

  3. Se não me falha a memória a Ludmila comenta essa questão. Dizer que essas start ups não registram lucro não é a mesma coisa que dizer que essas empresas não estão em vantagem econômica. A questão é que essas companhias não tem tido o “hábito” de permitir a entrada de líquidos, sua importância tem sido ganhar o mercado e estabelecer um império, recorrendo sobretudo à tecnologia para centralizar e negociar dados dos milhões de usuários. O que a imprensa faz parecer é que a UBER, por exemplo, não registra lucro por conta das regulamentações e dos processos trabalhistas. Isso é em parte verdade, mas esconde que os CEOs não estão tão descontentes assim com os resultados econômicos a longo prazo.

  4. Olha, posso estar errado, mas não acredito que seja contabilidade criativa o caso dessas empresas não. A Uber inclusive abriu capital recentemente salvo engano.

    Ocorre que esses setores que tendem ao monopólio apostam de verdade, ainda mais num mundo de juros baixíssimos, que os prejuízos podem se reverter em lucros lá na frente, após dominarem o mercado.

    Não eh o mesmo caso, mas a Amazon começou com prejuízos seguidos.

    O softbank investe em centena de empresas startup deficitárias . Aí vai uma Alibaba da vida e vinga e compensa com dezenas de bilhões de lucros o prejuízo de todas as outras.

    A financeirizacao a juros baixos (negativos para alguns) faz parte disso tudo.

  5. Boa parte dessas empresas baseadas em plataformas digitais trabalham no prejuízo, caso da Rappi e Uber. Não terem lucro não significa que não há exploração e que não se apropriam de mais-valia.

    O capital de risco investido permite que trabalhem no prejuízo, expandindo mercado, subsidiando tarifas e investindo pesado no desenvolvimento de novas tecnologias.

    Agora, como Tom Slee aponta no seu livro lançado no Brasil com título Uberização, há empresas de plataforma digital que faliu quando tentou ser lucrativa, aumentando as taxas cobradas aos clientes, se vendo assim sem clientes.

    Há um bom livro sobre o contexto econômico dessas empresas chamado Platform Capitalism, de Nick Srnicek. Dá pra baixar no libgen.

  6. até onde tenho entendido, por textos e pelos comentários aqui, o que entendemos como empresa no caso destes aplicativos não tem como se igualar à unidade produtiva, ou a empresa capitalista unitária aos moldes daquilo que foi analizado n’O Capital.
    Se o que garante o aspecto de trabalho produtivo destes e destas trabalhadoras é o fato de que possibilitam o desenvolvimento de novas tecnologias, a expansão do mercado, etc, etc, etc, então parece ser um erro analisar o lucro (ou falta de) da Uber ou da Rappi de forma isolada, assim como não se entende a exploração dos entregadores sem vincular com a exploração da mão de obra barata de programadores e demais “infoproletários”. Seria como dizer que o almoxarifado de uma empresa é deficitário.

    A questão do horizonte de expectativas é complexa. Eu penso, de todas formas, que a CLT é o resultado de lutas passadas, já esquecidas pela maior parte da classe trabalhadora de hoje. Não é um símbolo de suas vitórias. Ao contrário, hoje em dia está vinculada com as estruturas já apodrecidas de vitórias do passado. Isso não impede, no entanto, que novas modalidades de regulamentação não possam surgir como resposta a estas lutas. Pois essa ideia de “exceção permanente” da economia (e eu já me perdo um pouco aqui. É uma repaginação do “estancamento das forças produtivas”??) teria como corolario a impossibilidade de que as empresas de aplicação cedam benefícios econômicos para seus trabalhadores. Então para que lutar por uma pauta econômica? Ou o fariam setorizando a categoria, beneficiando alguns e piorando as condições para outros. Então o destino desta luta é consolidar uma divisão na categoria?
    Penso eu que a recusa por incorporar a CLT na pauta só pode ter um conteúdo político. O de não entificar o Estado no conflito entre trabalhadores e patrões. A esquerda pede sindicatos e leis para ordenar o bom funcionamento da sociedade redistributiva. A extrema-esquerda trotskista pensa que pode forçar o Estado a cumprir funções progressistas, e pretende usar os sindicatos para este fim. Acredito que os grupos autônomos devem propôr formas de solucionar os problemas da classe trabalhadora sem recorrer ao Estado. Não por uma dada conjuntura econômica, mas por uma questão política.

  7. Outro aspecto pouco lembrado pelos jovens e “não jovens” da esquerda atual. A chamada conquista da CLT deve ser analisada dialeticamente. Historicamente, a CLT se inspirou na Carta de Lavoro de Mussolini, que embora seja muito mais sintética que a CLT, revela o caráter comum de ambas legislações de intervenção econômica e, acima de tudo, social, sobre a classe trabalhadora. Por isso a intervenção fascista de Vargas não se restringiu ao trabalho, mas se estendeu à toda a sociedade. Na Carta constitucional do Edtado Novo de 1937, a Polaca, havia o Art 140 – “A economia da população será organizada em corporações, e estas, como entidades representativas das forças do trabalho nacional, colocadas sob a assistência e a proteção do Estado, são órgãos destes e exercem funções delegadas de Poder Público”. Assim, os direitos dos trabalhadores era algo que protegia, primeiramente, o capital, mesmo que os capitalistas, por vezes, se opusessem a eles. Como diria Anton Pannekoek, os sindicatos são fundamentais para a normalização do capitalismo. Por isso a CLT era combatida pelos trabalhadores revolucionários, como Maurício Tragtenberg, até os anos 1980/1990.

    Acontece que hoje, similarmente aos discursos identitários, invoca-se um passado permeado por mitos ou ilusões, ou, minimamente, de meias verdades. A classe trabalhadora deveria buscar sua emancipação, e não sua sujeição às formas econômicas e sociais, pretéritas ou atuais, impostas pelo capital, mas é justamente esse caminho de sujeição que as esquerdas, identitárias ou não, acabam buscando ou almejando…

  8. Sobre as empresas darem prejuízo, penso que a insinuação de uma maquiagem para aparentar ter dado mais prejuízo do que dão de fato é absurda, posto que essas empresas têm que prestar contas (balanços) ao conjunto de acionistas (às vezes milhões de “donos”). Se há maquiagem contábil esta se dá para aparentar menos prejuízo do que de fato elas têm, acalmando os ânimos do mercado e dos acionistas que estão com o foco no curto prazo. A mais-valia extraída pela Uber, Rappi e demais empresas não é realizada em lucro e sim prioritariamente direcionada para o asseguramento de uma posição melhor na partilha global da mais-valia, no futuro, ou seja, o valor dessas empresas reside no número de consumidores fiéis, na infraestrutura que preparam (inclusive humana), na logística que dominam, nos dados que reúnem, enfim, no nome que fazem crescer como sinônimo de confiabilidade e que garantem à empresa se converter ou disputar com os monopólios do setor. Se vc é brasileiro e viaja para a Mongólia, duvido que utilizará qualquer meio de transporte local ao invés do Uber, que te dá a avaliação prévia do motorista, o rastreio da viagem, a placa e uma possibilidade ágil de direcionar alguma reclamação, ter reembolso etc. Nesse exemplo simples já se pode ver onde está o busílis da questão…

  9. Creio que a confusão deve ser devido ao costume amplamente sabido que muitas empresas e capitalistas têm, em algumas áreas de preço administrado pelo Estado, em maquiar a contabilidade para obter tarifas altas nas concessões, o que gerará ou ampliará o lucro (exemplo clássico: ônibus).

    No mercado acionário, a lógica é diferente. Aliás são famosas as empresas que, apesar dos prejuízos ou pouco lucro iniciais, vão ganhando valor de mercado acima de outras extremamente lucrativas (Walmart vs Amazon – embora não seja exatamente igual) ou com receitas e mercado muito maiores (Tesla X Ford/Ferrari/GM juntas). Estão de olho na mais-valia futura. Muitas vezes, dá ruim (as últimas empresas de Eike Batista, por exemplo).

    Outras vezes dão resultados imensos lá na frente. Tem sido a aposta de muita gente, vide, como já mencionei, os resultados do Softbank. Perderam dezenas de bilhões com WeWork. Ganharam mais que isso com o AliBaba (milhões aplicados inicialmentre que hoje são uns 200 bilhões de dólares). Aqui no Brasil investem na “Loggi” (um dos alvos da greve) e outras start-ups por aí. Administram um fundo para empresas do tipo de 100 bilhões de dólares. Têm boa parcela da UBER também (outra que só dá prejuízo, ao menos por enquanto e talvez um bom tempo).

    *** *** *** ***

    https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150715_amazon_20_anos_rb

    Essa notícia sobre Amazon é de 2015, por exemplo.

    Sobre a greve, obviamente o momento é de apoiar, ainda com as reflexões de sempre. De que modo será a organização e a luta? Como será a relação com o Estado etc.? Alguns links sobre a continuidade:

    https://www.istoedinheiro.com.br/entregadores-de-aplicativos-planejam-greve-no-dia-12/

    https://ponte.org/fomos-punidos-por-greve-denuncia-entregador/

  10. Pablo,

    Concordo que não faz sentido maquiar números pra dizer que dá prejuízo. Mas a maioria dessas empresas não tem ações na bola e não precisam prestar contas a acionistas. A Uber só entrou na bolsa em 2019. Elas não são, em geral, Sociedades Anônimas.

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