Por Isadora Guerreiro  & Leonardo Cordeiro

Aí, rapaziada, eu acho o seguinte: eu acho que a maioria aí vai se lembrar de quando começaram as manifestações cobrando da passagem de ônibus que estava alta. Se lembram disso? O negócio começou pequenininho, pacífico, sem político nenhum, entendeu? Os caras foram ganhando espaço, ganhando espaço, foi ganhando multidão, foi aumentando…
(Início de um áudio em um grupo de entregadores no Whatsapp)

Na manhã do dia 1º de julho, na grande São Paulo, aglomerações de entregadores na frente das docas de shoppings, restaurantes e galpões logísticos, impedindo pedidos de ser retirados, marcavam o início de uma intrigante jornada de mobilização. Em diversas outras capitais e cidades de médio porte, motoboys e ciclistas se juntaram em praças e rodaram as ruas em comboios barulhentos, aderindo ao “Breque Geral dos Apps” convocado por grupos de Whatsapp dos entregadores de todo o país. Ao longo do dia, manifestações de entregadores na Argentina e no Equador confeririam à paralisação uma dimensão internacional.

Organizando-se por fora das estruturas tradicionais do sindicalismo — afinal, trata-se de uma categoria cada vez menos regulada pela CLT ou outras normas (e que não quer necessariamente ser regulada) — a movimentação chamou a atenção das organizações da esquerda, que passaram a tentar traduzi-la em termos de uma reivindicação por direitos trabalhistas ou, de maneira ainda mais chapa branca, como mobilização “antifascista”. Em muitas cidades, os sindicatos de sempre tentaram assumir a frente do movimento e lideranças autoproclamadas foram abraçadas por partidos e entidades, assim como pela imprensa.

Nos noticiários, ganharam destaque os grandes comboios de motos, enfeitados com bandeiras desta ou daquela central sindical e capitaneados por carros de som. Alguns notaram, contudo, a novidade daqueles bloqueios móveis — verdadeiros piquetes, como há muito não se via por aqui — que se multiplicaram pelo espaço urbano da manhã até a noite. Num dos inúmeros grupos de Whatsapp em que se organizava a paralisação, logo no início de um áudio debatendo as táticas da greve, a referência à explosão de junho de 2013 talvez possa ajudar a encarar estes novos bloqueios dos fluxos da cidade sem recorrer à gramática à qual a esquerda insiste em se apegar — sem perceber que ela caducou desde aquele ato inaugural deste fim dos tempos que se vive no Brasil — e enxergar ali alguns dos desafios e contradições das lutas urbanas do tempo presente.

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À primeira vista, a greve de uma categoria “contra a precarização” e “em defesa dos direitos trabalhistas” — uma típica disputa trabalhista — tem bem pouco que ver com a revolta desencadeada pelos protestos contra o aumento da passagem, com uma reivindicação voltada para o Estado em uma conjuntura completamente diversa. Mas talvez as aparências enganem, pois partem de pressupostos estanques sobre as formas de luta.

Se mudarmos o ângulo de visão, no entanto, percebemos que nem aqueles manifestantes em junho de 2013 nem os entregadores de aplicativos mobilizados em julho de 2020 lutavam por mais direitos — não era nem “direito ao transporte” nem direitos trabalhistas que estavam em jogo. Parecem-nos, na verdade, conflitos ao redor da gestão centralizada dos fluxos urbanos em função da acumulação. Conflitos ao redor da catraca.

No centro das palavras de ordem do Movimento Passe Livre, a catraca é um dispositivo arquetípico de ordenamento dos fluxos: centraliza átomos dispersos, canaliza seu movimento, regula sua velocidade, seleciona, hierarquiza, cobra, define trajetos e representa, fundamentalmente, a potência de interrupção do movimento. Ela não apenas bloqueia, mas promove e canaliza as trajetórias — que já nascem, assim, sob controle, sob a ameaça da interrupção.

No ápice da “era das políticas públicas”, que transformava sujeitos políticos em cidadãos-consumidores, a luta contra o aumento da passagem tinha o poder de mobilizar setores à margem do assalariamento — afinal, o custo do transporte era coberto pelo vale-transporte para os trabalhadores formais e onerava diretamente “apenas” fluxos ligados ao trabalho precarizado e à reprodução da força de trabalho, campo dos chamados “direitos sociais” como educação, saúde, assistência social, lazer etc. A questão da tarifa do transporte chamava atenção ao fato de que estávamos sob um Estado de Direito ilusório e perverso, que proporcionava direitos (fluxos) já marcados de saída pela potência do seu bloqueio. E a explosão de 2013, nestes termos, era a expressão de que não ficaria pedra sobre pedra daquela “paz social” coberta de sangue.

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Poucos meses depois, a Uber chegaria ao Brasil, enquanto outras plataformas de transporte e entregas, como a Loggi, inauguravam suas atividades. Atropelando as regulações municipais e as normas trabalhistas, abria-se uma nova dimensão — virtual — do controle dos fluxos do espaço urbano, que, longe de substituir as catracas convencionais, reapropria-se delas e as reorganiza (uma espécie de “subsunção real da viração”, das formas cotidianas de se virar que marcam o trânsito — e as relações de trabalho — de uma cidade como São Paulo).

Pouco importa o destino do passageiro ou da mercadoria: o fundamental é que tudo se coloque em movimento constrangido, numa marcha forçada regulada pelo medo do bloqueio — da catraca, do aplicativo, da blitz policial. A aceleração das motos nas ruas, sempre na iminência do choque — fora o risco de contágio na pandemia — é a contraparte da desaceleração da catraca, expressa na espera encaixotada nas filas nos terminais, nos ônibus lotados, nas salas de esperas de hospitais sem leitos disponíveis, nas salas de aula de escolas públicas e faculdades particulares sucateadas, nas prisões, na fila dos programas de habitação popular ou dentro dos apartamentos padronizados desses mesmos programas — e é também a contraparte da quarentena “esclarecida” e “civilizada”. A mercadoria, atualmente, parece precisar de fluxo, não de realização.

O trabalho vivo atomizado desses usuários/parceiros aparece como energia cinética canalizada ou capturada pelos dispositivos físicos e virtuais de controle do fluxo — os nossos cercamentos atuais. Nesse sentido, vale pensar se está em jogo a exploração direta do trabalho ou uma nova forma de extração de renda de propriedades móveis dispersas acionadas por trabalho precário: pois é necessário atentar para as condicionantes urbanas deste novo tipo de exploração, que não se explica apenas do ponto de vista estrito das relações de trabalho produtoras de mais-valia, como adiantou Felipe Catalani.

Apagam-se, assim, as distinções entre as “lutas nas empresas” e as “lutas nas ruas”, relacionadas à produção da cidade: a dinâmica urbana está implicada e implica relações de trabalho, cada vez menos fixadas a um “lugar”. Enquanto o trabalho perde forma, o mesmo ocorre com a circulação urbana (no que o crescimento vertiginoso da frota de motocicletas nas últimas duas décadas não deixa de ter um papel importante): os grandes fluxos de trabalhadores concentrados e centralizados que estavam no horizonte da modernização conservadora da cidade — algo que nunca chegou a se completar por aqui, porque a circulação sempre foi caótica e atomizada — combinam-se com fluxos motorizados e descentralizados de átomos que gerenciam individualmente a própria circulação (junto com a circulação daquilo que carregam).

O preço que se paga ou se recebe para manter o fluxo em circulação constante torna-se então o estopim de irrupções que o interrompem, explosões para fora dos canais de diálogo, dos dutos de circulação, das vias de aceleração, dos pedágios, das catracas. Não se trata de uma regressão ao confronto direto com o patrão dos primórdios do capitalismo, nem da reivindicação renovada de direitos trabalhistas ou das lutas territoriais e comunitárias das décadas de 1970 e 1980. Há algo nestas mobilizações explosivas que simplesmente nega o horizonte de azeitamento dos dispositivos de controle dos fluxos (e de gestão dos direitos): elas são parte de uma espécie de expressão pós-traumática do colapso daquelas expectativas, que a rigor nunca chegaram a se concretizar por aqui. A luta irrompe, então, também sem forma, numa agitação que escapa aos dispositivos de captura aprimorados no interior dos sindicatos e movimentos sociais ao longo das últimas décadas — que aparecem para os protagonistas do “breque” como… catracas.

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A explosão destas “catracas da democracia” libera, queiramos ou não, a guerra aberta. A violência parece ser o nexo social no lugar da sociedade salarial — algo que os moradores dos territórios populares da cidade sentem na pele há algum tempo. Agora, como a eleição de Bolsonaro deixa claro, os termos são outros. A militarização do espaço urbano — que remete às raízes militares da cidade, do urbanismo e da mobilização total para o trabalho promovida pelo capitalismo — encontra eco no léxico dos motoboys: para eles, a lógica militar da circulação é natural. O trânsito da metrópole é uma guerra e eles são soldados que arriscam a vida no front de batalha usando a moto como arma — um instrumento de trabalho cuja produtividade (e o valor) se mede pela velocidade, ou seja, pelo risco de morte iminente.

Será que estamos diante de uma revolta dos soldados rasos? Ao contrário do que podia parecer, a paralisação do dia 1º de julho tinha ainda muito em comum com uma greve de fábrica (tirando o fato de que foi a primeira greve de verdade nestas dimensões em anos no país): houve grande adesão passiva, de entregadores que simplesmente ficaram em casa sem ligar os aplicativos; os bloqueios de shoppings, restaurantes e mercados, que frequentemente não contavam com muito mais do que uma dezena de entregadores, eram belos exemplos de piquetes; os sindicatos fizeram o seu papel de sempre, enfraquecendo os travamentos e ofuscando as reivindicações com discursos insossos do alto de carros de som.

Apesar disto, nem tudo estava sob controle: entregadores seguiram até de noite bloqueando avenidas e restaurantes em aglomerações barulhentas que já não se pareciam em nada com mobilizações sindicais… “A guerra continua”, diz o chamado para prosseguir a mobilização. E talvez o grande desafio deste movimento seja romper definitivamente com formas de luta que colapsaram junto com as relações de trabalho e a cidade que elas imaginaram. Será que greve e revolta podem aparecer como uma coisa só dentro dessa “guerra total” em que conflui o futuro do trabalho e o da cidade?

2 COMENTÁRIOS

  1. Fetiche das lutas, ataque aos fantasmas de sempre, denúncia por meio da arma que condena, o mesmo horizonte idealista e impotente de outrora, pronto a alimentar análises futuras no eterno retorno do vazio romantizado, e o sono tranquilo sob trilha do Grupo Revelação.

  2. ÍON[password]XUCRO
    pandêmico surto autônomo-espontex premeditando o breque no mutante contrafluxo esadof verlan da contrarrevolução preventiva quotidianamente perenizada – algoritmo: beAMONGtween vaneigem

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