Presenteei um sobrinho com “As aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain. Na escolha da edição, deparei com debates sobre Twain ter usado a palavra nigger, e qual foi o termo usado pelos tradutores. As traduções recentes oscilam entre pretonegro e escravo, e as antigas optavam por crioulo. As versões são variadas, mas menos variado é o juízo dos leitores, que defendem com ardor edições que suavizaram o termo. Fiquei sem saber o que é pior: as novas traduções ou os novos leitores. Leitor

2 COMENTÁRIOS

  1. REGURGITOFAGIA
    Leitor ruim e tradutor ruim implicam-se, mutuamente. E o pior: retroalimentam-se…

  2. Entre os muitos paradoxos dos identitarismos está o de querer suprimir ou atenuar os termos racistas ou sexistas usados no passado. Deste modo prejudicam a compreensão histórica desse racismo e desse sexismo, o que sob o ponto de vista dos identitários devia ser uma enorme estupidez. No caso de Mark Twain a estupidez é redobrada, porque Huckleberry Finn foi, até uma data recente, proibido em bibliotecas públicas de estados americanos do Sul precisamente por ser uma obra crítica do racismo.

    Lembrei-me agora de outro caso curioso. Durante a segunda guerra mundial, e apesar de depararem com um número insuficiente de combatentes, as chefias das forças armadas norte-americanas permaneceram hostis à ideia de um exército integrado e afastaram os negros do confronto directo com as tropas inimigas. Em geral, os negros formavam unidades separadas, às quais se atribuíam funções meramente auxiliares. O mesmo sucedeu na marinha, e também na força aérea o preconceito racial era a regra, começando por se vetar o recrutamento de negros, que acabaram depois por ser relegados para esquadrões próprios, na maior parte afastados do combate e limitados a serviços de manutenção. É certo que o alistamento de negros se ampliou à medida que aumentavam as baixas e as chefias militares se debatiam com falta de homens, mas apesar disto a sua participação nas frentes de combate restringia-se na esmagadora maioria dos casos a funções de apoio, por exemplo a remoção dos cadáveres de soldados brancos mortos em batalha. Porém, nos filmes americanos actuais sobre a segunda guerra mundial — e são muitos — aparecem soldados negros juntos com os brancos em acções de combate, devido à instauração de quotas que obrigam a uma certa percentagem de actores e figurantes negros.

    É a mesma purificação do passado que leva agora ao frenesi de derrubar estátuas. Com estas lutas no plano do simbólico, ou melhor, com estas lutas aparentes no plano das aparências, os identitarismos encarregam-se paradoxalmente de destruir aquilo que seria a sua justificativa.

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