Por 01010001

Sempre que falamos de privacidade na internet aparece alguém com a mesma pergunta: “ah, mas eu não tenho nada a esconder… por que tenho de me preocupar tanto?” Sim, muita gente ainda pensa assim. Esta é uma postura louvável, de quem leva uma vida honesta e decente. De quem sabe viver sem causar mal a ninguém. Acontece que, muito por causa da informática e da internet, a vida não é mais assim tão simples. Vamos argumentar, neste e em outros artigos, que esta posição não se sustenta, e é perigosa para todos.

Há uma razão corriqueira a apresentar a quem pensa que não tem “nada a esconder” na internet: esta afirmação pressupõe que você tem total controle sobre as informações produzidas a seu respeito. Isto é absolutamente falso.

Veja os órgãos públicos, por exemplo. Todos os órgãos e repartições públicas com que somos obrigados a lidar durante nossa vida guardam algum tipo de registro e nos classificam de alguma forma, e todas estas informações são armazenadas em computadores.

Veja a rotina de um cidadão brasileiro. Quando nasce, tem de ter a certidão de nascimento – que fica registrada no banco de dados do cartório. Até os dez anos, tem de tirar a carteira de identidade – que fica registrada no banco de dados da secretaria de segurança pública. Se quer movimentar dinheiro, tem de tirar o CPF – que fica registrado na Receita Federal. Se quer trabalhar com um mínimo de direitos garantidos, tem de tirar a carteira de trabalho – que fica registrada no ministério do trabalho. Porque é obrigado a votar, tem de tirar o título de eleitor – que fica registrado no Tribunal Superior Eleitoral. Se vai estudar, tem de fazer matrícula – que fica registrada na secretaria de educação. Se vai ao posto de saúde, tem de fazer o cartão do SUS – que fica registrado no ministério da saúde. Se vai trabalhar como autônomo, tem de emitir nota – que fica registrada na secretaria municipal da fazenda. Se quer se aposentar, tem de contribuir com a previdência – que fica registrada no INSS. Se resolver morrer, alguém tem de tirar sua certidão de óbito – que fica registrada num cartório.

Mesmo que este cidadão nunca tenha tido um e-mail, mesmo quando pensa que computador é coisa do diabo, ainda que não saiba fazer uma ligação telefônica – mesmo assim, este cidadão tem sua vida inteira observada, inspecionada, espionada, dirigida, legislada, regulamentada, cercada, doutrinada, admoestada, controlada, avaliada, censurada, comandada… Todo movimento, operação ou transação que este cidadão faça é anotada, registrada, catalogada em censos, taxada, selada, avaliada monetariamente, patenteada, licenciada, autorizada, recomendada ou desaconselhada, frustrada, reformada, endireitada, corrigida. Isto porque, para ser cidadão, esta pessoa tem de consentir em ser tributada, treinada, redimida, explorada, monopolizada, extorquida, pressionada, mistificada e roubada; tudo isso em nome da utilidade pública e do bem comum.

Qual a consequência de tudo isto? Simples: mesmo quem está “fora” da internet não tem como controlar se já foi colocado “dentro” sem saber. Cada um dos documentos necessários para a vida de um cidadão é guardado pelo governo em computadores, dentro de enormes bancos de dados (ou seja, arquivos e programas gigantescos, que servem para guardar informação). Um dos grandes problemas atuais é a invasão de sites e bancos de dados, e estes invasores (que ainda tem quem chame, erradamente, de hackers) pegam todas as informações guardadas pelo governos no banco de dados que for invadido. Todas as informações pessoais necessárias para você ser um cidadão ficam com o governo, que por isto tem o dever de guardá-las em segurança – mas nem sempre o governo consegue proteger nossas informações pessoais contra ataques de invasores.

Você pode estar fora da internet, mas, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Sistema Único de Saúde (SUS) têm muita informação sua – e sentimos em te informar, mas os dois já foram invadidos várias vezes, comprometendo informações pessoais de milhões de cidadãos brasileiros. Só em abril de 2019 um único vazamento comprometeu informações pessoais – nome completo, data de nascimento, CPF, endereço completo com CEP – de cerca de 2 milhões de usuários do SUS. Não precisa nenhuma motivação forte para que invasores quebrem a segurança destes dados; ainda este ano foi descoberta a quebra da segurança do Cadastro Nacional de Usuários do Sistema Único de Saúde (CADSUS) para alterar dados pessoais de cidadãos, em que os invasores mexem nos cadastros por pura e simples brincadeira – diversão sem a menor graça que inclui a inserção de datas de óbito nos cadastros, prejudicando milhões de cidadãos que precisam provar que ainda estão vivos.

Além das invasões, há um outro problema. Quando o governo guarda muitas informações sobre um cidadão, elas podem estar desatualizadas, podem terminar se contradizendo, podem ter sido digitadas errado – em suma, quando o governo guarda muitas informações sobre um cidadão, ele pode errar ao administrar estas informações, e pode perder o controle sobre elas. É fácil de entender do que estamos falando: basta ver as cenas bizarras de idosos sendo carregados até agências do Banco do Brasil ou do INSS para fazer prova de vida. Como o governo guarda um mundo de informações sobre mais de 200 milhões de cidadãos (só no Brasil), ele não tem como saber o que é verdadeiro e o que é fraude, e por isto cria tantas situações constrangedoras. Outro exemplo, muito comum, é quando alguma informação sua está errada em algum cartório, sistema ou site do governo, e sua palavra não vale nada: a perda de tempo para provar aquilo que você já sabe é enorme, e constrange até mesmo os funcionários públicos que são obrigados a te fazer passar por essa via crucis.

Um último exemplo deste tipo de problema é o de pessoas com o mesmo nome, os homônimos. Existem pessoas que têm não somente o mesmo nome, mas também o mesmo nome do pai, como o polidor capixaba André Correa dos Santos, que por isso não consegue sacar PIS, pode perder o FGTS, teve de tirar RG e CPF novos e ainda corre o risco de perder outros direitos. Não são poucos os casos como o de Ezequias Francisco dos Anjos, parado numa blitz porque outra pessoa com o mesmo nome estava foragida e tinha três mandados de prisão contra ela. Pior é o caso de quem é preso por engano, como um policial civil aposentado de 81 anos preso em Copacabana por ter sido confundido com um foragido trinta anos mais novo, ou o pedreiro goiano Gilmar Henrique Viana, capturado no lugar de um homônimo foragido da justiça do Espírito Santo. A propósito, observem como a homonimia afeta pessoas de nome e sobrenome muito comuns: “Bispo”, “Silva”, “Oliveira”, “Ferreira”, “Santos”, “dos Anjos”, “Nascimento”, em qualquer de suas combinações, são sobrenomes que se prestam à homonimia.

Não bastassem as invasões, todos estes casos demonstram os riscos à privacidade, e mesmo à liberdade, causados pela má gestão das informações pessoais dos cidadãos por parte do governo e de seus agentes. E o cidadão que se vire para consertar o problema!

3 COMENTÁRIOS

  1. Estes textos do 01010001 merecem um dossiê. Fica a sugestão ao Passa Palavra.

  2. Caro Zé,

    Agradecemos a sua sugestão, mas todos os arquivos com essa assinatura já estão agrupados nos arquivos da coluna Cuidados Digitais.

    Cordialmente,
    o coletivo Passa Palavra

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