Por Solidariedade

Nota do Passa Palavra: O documento traduzido a seguir é de autoria do grupo socialista libertário britânico Solidariedade: As we see it (Solidarity for workers’ power, vol. IV, nº 6, abr. 1967) serviu-lhes como uma espécie de “carta de princípios”, norteadora da ação do grupo. (Aliás, A coleção completa da revista já se encontra na internet. Atenção tradutores!) Existe também um segundo documento semelhante, na verdade um comentário extenso sobre aquele primeiro, publicado em 1972 com o título As we don’t see it na forma de um dos muitos panfletos produzidos pelo grupo. Existem também revisões posteriores aos dois documentos. A autoria do documento traduzido é comumente atribuída ao neurologista grego naturalizado britânico Christopher Agamemnon “Chris” Pallis (1923-2005), que assinava com o pseudônimo Maurice Brinton; como, entretanto, editoriais e “cartas de princípios” costumam passar por várias revisões internas e ajustes, é mais adequado dizer que a proposta de redação inicial foi, realmente, de Brinton, mas a autoria é do grupo Solidariedade como um todo. Há muito material disponível na internet sobre o grupo Solidariedade e sua atuação na Grã-Bretanha entre 1960 e 1992, mas pouco, ou nada, em português. (Atenção tradutores!) A obra-prima de Maurice Brinton é o livreto Os bolcheviques e o controle operário, cuja tradução pela editora Afrontamento, hoje esgotada, o Passa Palavra disponibilizou na internet em 2018 com autorização da editora.

1. Em todo o mundo, a maioria das pessoas não tem qualquer controle sobre as decisões que mais profunda e diretamente afetam suas vidas. Elas vendem sua força de trabalho enquanto outros, que possuem ou controlam os meios de produção, acumulam riqueza, fazem as leis e usam todo o maquinário do Estado para perpetuar e reforçar suas posições privilegiadas.

2. Durante o século passado, o padrão de vida dos trabalhadores melhorou. Mas nem esse melhor padrão de vida, nem a nacionalização dos meios de produção, nem a chegada ao poder dos partidos que afirmam representar a classe trabalhadora alteraram, em essência, o status do trabalhador enquanto trabalhador. Tampouco deram à maioria da humanidade muita liberdade fora da produção. No Oriente e no Ocidente, o capitalismo continua sendo um tipo de sociedade desumana, onde a maioria é comandada no trabalho e manipulada no consumo e no lazer. Propaganda política e policiais, prisões e escolas, valores tradicionais e moralidade tradicional servem para reforçar o poder de uma minoria e para convencer ou coagir a maioria a aceitar um sistema brutal, degradante e irracional. O mundo “comunista” não é comunista, e o mundo “livre” não é livre.

3. Os sindicatos e os partidos tradicionais da esquerda entraram no negócio para mudar tudo isso. Mas eles resignaram-se aos padrões de exploração existentes. Para dizer a verdade, eles são agora essenciais para que a exploração da sociedade possa continuar a funcionar sem problemas. Os sindicatos atuam como atravessadores no mercado de trabalho. Os partidos políticos usam as lutas e aspirações da classe trabalhadora para seus próprios fins. A degeneração das organizações da classe trabalhadora, ela própria o resultado do fracasso do movimento revolucionário, tem sido um importante fator na criação da apatia da classe trabalhadora, que por sua vez levou à maior degeneração tanto dos partidos quanto dos sindicatos.

4. Os sindicatos e partidos políticos não podem ser reformados, “tomados” ou convertidos em instrumentos de emancipação da classe trabalhadora. Não reivindicamos, todavia, a proclamação de novos sindicatos, que nas condições de hoje sofreriam um destino semelhante ao dos antigos. Tampouco pedimos que os militantes rasguem suas fichas de filiação aos sindicatos. Nossos objetivos são simplesmente que os próprios trabalhadores decidam sobre os objetivos de suas lutas, e que o controle e a organização destas lutas permaneça firmemente em suas próprias mãos. As formas que este fazer-se da classe trabalhadora pode assumir variam consideravelmente de país para país e de indústria para indústria. Seu conteúdo básico, não.

5. O socialismo não é apenas a propriedade e o controle em comum dos meios de produção e distribuição. Ele significa igualdade, liberdade real, reconhecimento mútuo e uma transformação radical em todas as relações humanas. É a “autoconsciência positiva do homem”. É a compreensão pelo homem de seu ambiente e de si mesmo, seu domínio sobre seu trabalho e sobre tantas instituições sociais quantas precise criar. Esses não são aspectos secundários, que se seguirão automaticamente à expropriação da classe dominante. Pelo contrário, são partes essenciais de todo o processo de transformação social, pois sem eles nenhuma transformação social genuína terá lugar.

6. Uma sociedade socialista só pode, portanto, ser construída a partir de baixo. As decisões relativas à produção e ao trabalho serão tomadas por conselhos de trabalhadores compostos por delegados eleitos e revogáveis. As decisões em outras áreas serão tomadas com base na discussão e consulta mais amplas possível em meio ao povo como um todo. Essa democratização da sociedade até suas próprias raízes é o que entendemos por “poder dos trabalhadores”.

7. Ação significativa, para os revolucionários, é tudo o que aumente a confiança, a autonomia, a iniciativa, a participação, a solidariedade, as tendências igualitárias e a atividade autônoma das massas, e o que auxilie em sua desmistificação. Ação estéril e prejudicial é o que reforça a passividade das massas, sua apatia, seu cinismo, sua diferenciação por meio da hierarquia, sua alienação, sua dependência de que outros façam coisas por eles, e o grau em que as massas podem, portanto, ser manipuladas por outros – mesmo por aqueles que supostamente agem em seu nome.

8. Nenhuma classe dominante na história jamais renunciou a seu poder sem luta, e nossos governantes atuais não parecem ser uma exceção. O poder só lhes será tomado por meio da ação consciente e autônoma da grande maioria do próprio povo. A construção do socialismo exigirá a compreensão e a participação das massas. Por sua rígida estrutura hierárquica, por suas ideias e por suas atividades, tanto as organizações de tipo social-democrata como as de tipo bolchevique desencorajam este tipo de entendimento e impedem este tipo de participação. A ideia de que o socialismo pode de alguma forma ser alcançado por um partido de elite (por mais “revolucionário” que seja) agindo “em nome” da classe trabalhadora é ao mesmo tempo absurda e reacionária.

9. Não aceitamos a opinião de que por si só a classe trabalhadora pode alcançar apenas uma consciência sindical. Pelo contrário, acreditamos que suas condições de vida e suas experiências na produção levam constantemente a classe trabalhadora a adotar prioridades e valores e a encontrar métodos de organização que desafiem a ordem social e o padrão de pensamento estabelecidos. Tais respostas são implicitamente socialistas. Por outro lado, a classe trabalhadora é fragmentada, desprovida dos meios de comunicação, e suas diversas categorias encontram-se em diferentes níveis de consciência e percepção. A tarefa da organização revolucionária é ajudar a dar à consciência proletária um conteúdo explicitamente socialista, dar assistência prática aos trabalhadores em luta e ajudar aqueles em diferentes áreas a trocar experiências e conectarem-se uns com os outros.

10. Não nos vemos como mais uma liderança, mas meramente como um instrumento de ação da classe trabalhadora. A função da [revista] Solidariedade é ajudar todos aqueles que estão em conflito com a atual estrutura social autoritária, tanto na indústria quanto na sociedade em geral, a generalizar sua experiência, a fazer uma crítica total de sua condição e de suas causas, e a desenvolver a consciência revolucionária de massa necessária para que a sociedade seja totalmente transformada.

Traduzido pelo Passa Palavra.

As imagens que ilustram o artigo são da exposição “This is Tomorrow” de 1956.

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