Por Leo Vinicius

Traduzido para o FRANCÊS.

Frequentemente a passividade operária pode ser superada, pois ela apenas traduz uma ausência de referências políticas e organizativas alternativas ao sindicato.
(Gianni Sbrògio, operário ativo nas lutas dos anos 1960 e 1970 na Itália) [1]

A greve (inter)nacional de entregadores de aplicativos, marcada por grupos de WhatsApp de motoboys de algumas cidades brasileiras para o dia 1º de julho, se tornou provavelmente a maior expressão de autonomia “operária” em centros urbanos brasileiros nos últimos quarenta anos. As aspas em “operária” é por não se tratarem de operários propriamente ditos, mas sim de trabalhadores da circulação, do setor de serviços. Aliás, se no pós-fordismo a cidade se torna uma fábrica difusa, podemos retirar as aspas e lembrarmos também que a circulação tem se tornado ponto de conflitos e revoltas de forma bastante nítida nos últimos anos.

Embora revoltas geradas por aumento de tarifas de transporte não sejam incomuns na história do século XX, tivemos os movimentos e revoltas protagonizados pela juventude em torno das tarifas do transporte público em grandes cidades brasileiras já na primeira década deste século. Mais recentemente tivemos os Coletes Amarelos na França em 2018 e as grandes manifestações e revoltas no Equador e Chile em 2019, todas elas tendo como estopim o preço dos combustíveis ou de tarifas de transporte. E com grande influência no imaginário dos entregadores de aplicativos, tivemos a greve dos caminhoneiros em 2018.

Por fora dos sindicatos, auto-organizada e iniciada pelos caminhoneiros autônomos, essa greve de 2018 no entanto produziu algumas ambiguidades, como a aparente adesão de empresas de transporte (lockout), uma vez que pautas como redução do preço do diesel também favoreciam as empresas. Os caminhoneiros autônomos, não prestando serviço coletivamente para uma ou poucas empresas, miravam o Estado e suas políticas de pedágio e preço de combustível, reivindicando também ao Estado uma tabela de frete mínimo, o que no contexto também dificultava um recorte de classe patrão vs. empregado. Já o movimento dos entregadores de aplicativos, que teve até agora duas paralisações nacionais (dias 1º e 25 de julho), mira diretamente as empresas de aplicativos, com um claro recorte de classe entre empresários e trabalhadores.

Se antes das empresas de aplicativos de entrega os motoboys trabalhavam (prestavam serviço) para inúmeros empregadores diferentes, mesmo que cada um individualmente trabalhasse para apenas um ou para poucos, agora centenas de milhares em todo o Brasil trabalham para essas poucas empresas de aplicativos. Em um sentido preciso, as empresas de aplicativo, através dos “algoritmos” e smartphones, facilitaram a concentração política dessa força de trabalho, até então relativamente dispersa. Essas empresas unificam nacionalmente e internacionalmente trabalhadores que seriam contratados por pequenos patrões, e que em situação de alto desemprego veem sempre alguém aceitar fazer o serviço por menos a esses pequenos patrões. Nas empresas de aplicativos a taxa mínima é ao menos (teoricamente) fixada, e há um “patrão” comum contra quem lutar. Para se usar conceitos operaístas, com a entrada das empresas de aplicativos houve uma mudança da composição técnica dos motoboys, repercutindo na sua composição política. Por outro lado a praticidade dos aplicativos para os consumidores tornaram os motoboys mais presentes e próximos à vida dos consumidores, criando maior potencial de empatia e apoio fora da categoria.

O processo de mobilização para a greve do dia 1º de julho foi em si já uma expressão da autonomia operária. Comunicação entre os entregadores de forma horizontal, e não de uma direção com uma base; os entregadores, em sua maioria motoboys, imprimindo cartazes e panfletos eles próprios e distribuindo entre colegas… O “é nós por nós” bastante presente no imaginário dos entregadores, com repúdio explícito e muito disseminado em cidades como São Paulo, onde o movimento era mais forte, em relação a sindicatos, partidos, políticos. Uma demonstração de repúdio à institucionalidade de uma forma geral que é expressão ao mesmo de uma autonomia de classe no sentido profundo da palavra e de sabedoria sobre o que unifica e constitui a classe: as demandas concretas vindas da experiência comum do trabalho.

A categoria se engajou na mobilização, ativamente, em várias cidades, diferentemente de lutas iniciadas por direções sindicais, nas quais os trabalhadores têm papel passivo. Essa forma autônoma e horizontal do movimento, ou pelo menos como ele era percebido, certamente foi fundamental para sua difusão e contágio, para dentro e para fora da categoria, e consequentemente para seu impacto. Sem os limites do enquadramento sindical/legal, a imprevisibilidade dessa forma de movimento é em si uma de suas forças. Ou melhor, a previsibilidade das greves convocadas por direções sindicais tornam as greves sindicais em geral um simulacro.

Esse processo de contágio transbordou não apenas para fora da categoria, com importante apoio da população, como também para cidades brasileiras em que os entregadores não possuíam organização prévia e para entregadores de aplicativos em diversas cidades da América latina, tornando o dia 1º de julho um dia internacional de greve de entregadores de aplicativos.

Quem esteve engajado na luta de São Paulo certamente pode trazer um relato mais acurado e detalhado, mas a expressão dessa autonomia operária ocorreu de forma ampla, plena e nítida exatamente numa das três maiores cidades do Ocidente. Inúmeros piquetes auto-organizados em shopping centers e outros locais por toda a cidade, impedindo de fato a retirada de produtos, deram o tom do dia 1º de julho em São Paulo. A adesão à greve, intensificada pelos piquetes, foi massiva na cidade. Apesar de a imensa manifestação de motoboys que percorreu a cidade e ocupou a Ponte Estaiada ter sido a imagem mais midiatizada e visível do dia 1º de julho, foram os literalmente incontáveis piquetes (também chamados de bloqueios) que foram a expressão mais acabada dessa autonomia, constituindo a forma mais importante da luta da categoria nesse dia.

Houve evidente refluxo para a greve do dia 25 de julho. Não cabe aqui especular motivos, mas o fato é que os entregadores demonstraram muito menos interesse na paralisação do dia 25, e não se viu a mesma atividade difundida na categoria nem a capacidade de contágio para dentro e para fora da categoria como na mobilização para o dia 1º de julho. De todo modo, ao menos na cidade de São Paulo a paralisação foi forte, embora com aspecto bem maior de greve de pijama. Piquetes que já quase não eram necessários em alguns lugares, pois havia poucos entregadores trabalhando.

O movimento, com sua organização informal, conseguiu surgir como uma referência alternativa ao sindicato. Um desafio agora, pelo menos nas cidades em que a greve foi mais forte, seria constituir uma referência organizativa e política mais estruturada, identificável e perene, alternativa ao sindicato. Uma referência que, ao contrário dos sindicatos, não visa representação, mas sim mobilizar a partir do reconhecimento e identificação por parte dos entregadores, pois sem mobilização dos entregadores qualquer estrutura termina na prática se tornando uma nova burocracia. Evidentemente, deve se ter como horizonte a construção de uma referência mobilizadora nacional e internacional, como se prefigurou no processo da greve do dia 1º de julho.

Certamente o maior impacto econômico às empresas não se deveu aos piquetes e à paralisação propriamente dita, isto é, à queda no faturamento nos dias de paralisação. O arranhão na imagem das empresas e de suas marcas com certeza foi o maior prejuízo que tiveram. Não à toa a maior e mais visível delas, iFood, realizou uma ampla campanha de relações públicas para tentar minimizar o dano. Enquanto ações como os piquetes, na forma como foram construídos, são importantes na constituição de relações de cooperação e solidariedade antagônicas às relações sociais que sustentam a exploração e dominação capitalistas, para conquistas mais imediatas não se deve deixar em segundo plano ações visando mais diretamente a marca e imagem dessas empresas. Por prestarem serviço aos consumidores finais e terem como ativo fundamental uma multidão de consumidores, elas são particularmente vulneráveis nesse ponto.

Obstáculos

Numa luta ativa e coletiva da classe trabalhadora, com a repercussão social que teve esse movimento dos entregadores de aplicativos, ficam mais ou menos claras as forças antagônicas e os obstáculos que aparecem para a continuidade e ampliação desse movimento de classe autônomo.

Da direita surgiu uma disputa de consciência dos entregadores, buscando alavancar um movimento contra a greve. Da esquerda, o risco de fragmentação do movimento veio fundamentalmente de duas fontes. A primeira, uma inserção descuidada de organizações políticas no movimento, buscando conduzi-lo e dessa forma inserindo elementos de enquadramento do movimento e de fragmentação; ainda mais que em muitas cidades e estados os entregadores possuíam aversão a discursos que remetessem a correntes políticas, potencialmente afastando-os assim da mobilização. A segunda, pelo identitarismo da esquerda, ou das pessoas de esquerda, que encontraram no discurso articulado do motoboy Paulo Galo um espelho das suas próprias convicções, ao mesmo tempo que encontraram na alcunha “antifascista” do grupo do Galo um símbolo evidente de identificação. Ao alçarem Galo e os Entregadores Antifascistas a lideranças do movimento, dando-lhes enorme difusão midiática quando na verdade possuíam influência insignificante entre os entregadores de aplicativos, ajudaram a criar uma tensão interna no movimento, inserindo elementos políticos (o “antifascismo”, por exemplo) que tendem a fragmentar a categoria. Ficou patente nesse processo que o grosso da esquerda já não reconhece nem busca mais um movimento de classe, mas apenas um espelho no qual possa ver refletida a sua própria identidade.

Não podemos esquecer também o papel óbvio das burocracias sindicais, que não podem aceitar que sua “base” aja autonomamente. Capitalizar em cima dessas lutas autônomas, “cavalgando o tigre”, para suas pautas e interesses próprios, além de minar o movimento, serão duas ações que devemos esperar das burocracias sindicais, e ambas estiveram presentes no movimento de junho e julho dos entregadores de aplicativos.

A desconfiança e aversão a sindicatos, políticos e partidos entre motoboys de algumas ou várias cidades e estados, se por um lado apontava para esse potencial de ação autônoma — que significa a tomada efetiva pela classe trabalhadora do seu destino nas suas próprias mãos —, por outro lado demonstrava uma fragilidade e um elemento de contínua tensão, uma vez que muitos trabalhadores confundiam apoio ao movimento por parte de sindicatos e correntes políticas com participação destes na organização.

Havia um nível alto e empírico de consciência de classe entre os entregadores, uma vez que discussões políticas eram mantidas longe, sendo o foco as questões concretas da experiência comum de trabalho. Se por um lado a falta de compreensão da complexidade política na sociedade gerava uma fragilidade que poderia ser usada por quem quisesse tentar fragmentar o movimento, por outro lado no processo ascendente de mobilização a unidade se manteve por essa consciência de classe prática, afastando totalmente das discussões temas que dividiriam a categoria e que não diziam respeito à luta contra as empresas de aplicativos. Nesse sentido, o movimento dos entregadores deu uma aula para o grosso da esquerda, que já não faz ideia do que seja uma unidade e consciência prática de classe. Para o grosso da esquerda, unidade de classe é todos me seguirem, adotarem minha ideologia ou votarem no meu candidato.

Ficou claro também que um movimento de classe que parte da experiência concreta do trabalho e vida no pós-fordismo terá de se deparar não apenas com a resistência dos empresários, mas também, de uma outra forma, com a resistência das instituições estatais e para-estatais (os sindicatos oficiais) constituídas no período fordista/varguista e de seus operadores e intelectuais. O poder constituinte de um movimento desse tipo terá de ganhar uma enorme dimensão e força de modo a superar todo esse poder constituído, abrindo o caminho de fuga da condição pós-fordista para a frente na história.

O cooperativismo

A ideia de cooperativa de entregadores começou a circular como resultado da ascensão-refluxo da luta dos entregadores de aplicativos. Aparece como uma consequência dos limites e dificuldades das lutas. Uma via de fuga da subordinação do trabalho, em busca de maior autonomia e melhores condições de trabalho e vida. Sobre isso, quem não está na pele desses trabalhadores não pode e não deve julgar suas escolhas. Mas cabe aqui um apontamento de possíveis consequências políticas de uma efetivação do cooperativismo de plataforma digital entre os entregadores, uma vez que a ideia tem aparecido entre entregadores bastante ativos na greve, com papel de liderança.

Deixando de lado todos os limites conhecidos das cooperativas em geral, operando em mercados capitalistas, não é difícil concluir que as cooperativas de entrega por aplicativo podem no máximo ocupar um nicho de mercado, existindo marginalmente. Crucial para empresas de entrega por aplicativos é o chamado efeito em rede (network effect), isto é, quanto mais consumidores e restaurantes usando, mais valor ela agrega, impulsionando mais usuários. Para alcançar esse efeito em rede seria necessário uma quantidade enorme de capital para investir, ainda mais que já existem empresas bem estabelecidas no mercado. Dito isso, pensando unicamente a luta dos entregadores de aplicativos como um todo, um provável efeito do cooperativismo seria retirar da força de trabalho do iFood, Rappi, Uber Eats, Loggi, James, os entregadores mais ativos e insubordinados, que tomam papel de liderança. Sem dúvida, algo que essas empresas gostariam de ver. Algo que, no entanto, pode acontecer também pela rotatividade dessa força de trabalho, independente de o cooperativismo se efetivar.

Notas

[1] Sacchetto, Devi; Sbrogiò, Gianni. Pouvoir ouvrier à Porto Marghera: Du Comité d’usine à l’Assemblée de territoire (Vénétie – 1960-80). Paris: Les Nuits rouges, 2012, p. 81.

As fotografias que ilustram este artigo são do primeiro Breque dos Apps no Rio cuja autoria é de Vinicius Ribeiro, do coletivo Fotoguerrilha.

1 COMENTÁRIO

  1. Um belótimo [sic] texto, apesar de algumas (pequenas) deficiências – claro, percuciente e sintético.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here